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Volkswagen e Stellantis, líderes no Brasil, vivem uma crise global. O que está em jogo?

Vendas fracas, custos altos e concorrentes chineses criaram a tempestade perfeita

Foto de busto de Carlos Tavares, CEO da Stellantis, multinacional fabricante de automóveis. Ele é um homem branco, grisalho, de cabelos curtos; usa óculos e um terno cinza com gravata azul claro.
Carlos Tavares, CEO da Stellantis, pediu demissão. Foto: Harold Cunningham/Getty Images

O CEO da Stellantis não aguentou a pressão e pediu o boné no último domingo (1º), deixando o comando do grupo que reúne Fiat, Jeep, Peugeot, Citroën e uma dezena de outras marcas a cargo de um comitê interino.

Na segunda-feira (2), foi a vez de os executivos da Volkswagen passarem sufoco: nove das 10 fábricas da empresa na Alemanha amanheceram com seus trabalhadores em greve. Foi a resposta dos funcionários da Volks às propostas da empresa, que incluiriam o inédito fechamento de plantas alemãs e um corte de 10% nos salários de 120 mil empregados.

Aqui no Brasil, no entanto, a situação das duas gigantes é mais confortável.

A Fiat é a marca líder do mercado nacional. Um a cada cinco carros zero vendidos por aqui são da fábrica italiana controlada pela Stellantis. A Volkswagen segue num pouco distante segundo lugar, 15,9% de market share. Além disso, as montadoras com fábrica aqui pegaram carona no Mobilidade Verde e Inovação (Mover), um programa de incentivos fiscais do governo federal, e anunciaram dezenas de bilhões de reais em investimentos no país.

Então as coisas estão ruins lá fora e aqui, um céu de brigadeiro, certo? Não é tão simples. As batalhas existenciais de Volkswagen e Stellantis refletem as transformações profundas da indústria automotiva nos últimos anos.

E não são só Volkswagen e Stellantis. Tem muita coisa dando errado na vida de diversas montadoras tradicionais – e o avanço de chinesas como BYD e GWM, inclusive no Brasil, tem tudo a ver com isso.

O papel da China

A indústria automobilística já não é mais o que costumava ser. E isso não tem nada a ver com qualidade ou saudosismo, mas com a transição energética. O aquecimento global começou a ser levado a sério por países desenvolvidos, que assumiram compromissos para eletrificar suas frotas.

Governos traçaram metas ousadas de descarbonização. Na Europa, anunciaram que na próxima década a produção de carros a combustão seria proibida. A direção era uma só: go eletric. As montadoras responderam com sucessivos anúncios de modelos movidos a elétrons e, às vezes, com alvos mais ambiciosos do que os estabelecidos pelos governantes.

Só que eletrificar significou aumentar a dependência da China. O país asiático investiu fortemente para ser o líder global em matéria de carros elétricos. E os resultados foram notáveis.

Só para dar uma ideia: em 2023, a empresa chinesa CATL ficou com quase 40% do mercado global de baterias para veículos elétricos, vendendo seus produtos – que são algo entre o coração e a própria definição de um EV – para dezenas de montadoras tradicionais, sem contar a nada tradicional Tesla, de Elon Musk, que fabrica em Xangai seus carros voltados para o mercado asiático.

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O domínio na produção de baterias automotivas – que representam até 60% do preço de um carro elétrico – colocou as ascendentes montadoras chinesas em posição de vantagem ante as competidoras. Hoje, líder global na fabricação de elétricos e eletrificados (a classe onde entram os híbridos), a BYD começou, veja só, como uma fábrica de baterias – em Shenzhen, nos anos 1990.

Além disso, a China deu generosos benefícios fiscais que incentivaram o surgimento e a multiplicação de montadoras especializadas nos elétricos. Elas aproveitaram as vantagens e melhoraram rapidamente a qualidade de seus carros, transformando em objeto de desejo marcas que inspiravam piadocas entre consumidores e concorrentes poucos anos antes.

Design, bateria e software. A China foi diligente na construção das indústrias que são a base para a produção dos carros elétricos. Ao fazê-lo, tornou boa parte da indústria automobilística global dependente de sua cadeia produtiva e, ao mesmo tempo, fez das marcas chinesas as protagonistas da eletrificação.

O que deu errado para a Stellantis?

Nascida da fusão entre os grupos PSA e Fiat Chrysler em 2021, a Stellantis surgiu com o objetivo de diminuir custos de produção, compartilhando plataformas (o “esqueleto” dos carros) entre as 14 marcas do grupo, com destaque para o processo de eletreficação.

A aposta nos carros elétricos, no entanto, virou um grande problema. A Stellantis demorou para apresentar modelos realmente eficientes e com preços capazes de fazer frente aos carros de marcas como Tesla e BYD. Perto dessas duas, as líderes globais em vendas de elétricos, a Stellantis – mesmo com sua multidão de marcas – ainda tem um portfólio bem limitado. E caro.

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Em mercados como América Latina e Ásia, as montadoras chinesas também estão fazendo a festa. Para os consumidores de países em desenvolvimentos interessados em carros movidos à bateria, o “meu primeiro elétrico” tende a ostentar um logo de montadora chinesa.

E nos Estados Unidos? Bom, lá a questão não é com os carros chineses – praticamente banidos do país. Houve um problema de timing. A Stellantis lançou seus elétricos e híbridos por lá num momento em que as vendas desses veículos já não subiam tanto. Para piorar, chegaram com modelos caros num momento em que a Tesla cortou seus preços em até 30%. Não dava para concorrer.

E foi o desempenho ruim no mercado americano que enterrou a carreira do português Carlos Tavares como CEO da Stellantis. A montadora perdeu market share, viu os estoques ficarem cheios, deixou descontentes seus revendores e viu suas margens de lucro se espremerem.

O que deu errado para a Volkswagen?

A relação entre a montadora alemã e a China é relativamente antiga. Ela foi uma das primeiras das grandes empresas automobilísticas a entrarem no mercado chinês, ainda em 1984.

Botar o pezinho na China foi muito lucrativo para a Volks, por muitos anos. Modelos como o Santana, o Passat e o Jetta viraram os reis das estradas chinesas, mas a empresa não tem conseguido resistir aos avanços das concorrentes locais. Em 2023, a Volkswagen perdeu a liderança do mercado chinês para a BYD.

Além de perder espaço na China e também na Europa, a Volks tem sofrido no mercado americano – a empresa empilha frustrações com diferentes marcas e modelos por lá – e, recentemente, apostou US$ 5 bilhões na Rivian, marca dos Estados Unidos especializada em veículos elétricos.

É muita grana, mas a Volks cansou de perder dinheiro na tentativa de desenvolver as soluções de software necessárias para a produção de um bom carro elétrico – e que fazem o processo de fabricação de um EV ser muito diferente da produção de um veículo típico, a combustão.

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Símbolo da indústria e da engenharia alemã, a Volkswagen o país se tornar um pedra no seu sapato. De certa forma, a crise da Volkswagen é também a crise da maior economia da Europa: a dependência do gás da Rússia virou um grande problema para os alemães após a invasão da Ucrânia.

Os preços da energia dispararam, e com eles os custos de produção no país onde a Volkswagen concentra a sua produção. Além disso, os custos do trabalhador alemão são reconhecidamente maiores do que os custos do trabalhador chinês, para fazer a comparação que mais importa aqui.

Para a Volks, parece não haver muita alternativa a não ser um agressivo plano de cortes de custos – o mesmo que agora está motivando a grande greve entre os trabalhadores das fábricas alemãs.

E o Brasil com isso?

Sexto mercado automotivo do mundo, o Brasil não chega a ser essencial, mas passa longe de ser desprezível para as grandes montadoras. Volkswagen e Fiat, por exemplo, atuam há décadas no país e continuam firmes e fortes nas primeiras posições entre as marcas que mais vendem.

Para sorte delas, o mercado de elétricos no Brasil ainda não engatou como na Europa e nos Estados Unidos – e está bem distante da China, onde mais da metade dos novos veículos vendidos funcionam à bateria.

Ainda assim, a lista da Fenabrave não deixa dúvidas: elétricos e eletrificados, no Brasil, são territórios das marcas chinesas, com destaque para a BYD e GWM. Entre os 100% elétricos vendidos por aqui entre janeiro e outubro, 73,5% são da BYD. A GWM vem na sequência, com 10,3% deste mercado.

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As duas empresas chinesas estão prestes a inaugurar suas fábricas brasileiras, que vão produzir até carros híbridos (que misturam motores a combustão e a bateria) que podem ser abastecidos com gasolina e com etanol.

Stellantis e Volkswagen também anunciaram investimentos no Brasil, e bem maiores do que as somas prometidas pelos chineses. A dona da Fiat disse que vai investir impressionantes R$ 30 bilhões entre 2025 e 2030, o que seria o maior valor já aplicado por uma empresa na indústria automotiva brasileira.

A Volkswagen diz que vai aplicar R$ 16 bilhões até 2028 para ampliar o portfólio no Brasil e modernizar suas fáricas.

Tanto uma quanto outra dizem que foco está na eletrificação combinada com motores flex.

A questão é se esses investimentos vão de fato acontecer, claro. E se eles serão os bastante para fazer frente aos chineses.

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