Há 116 anos chegava no porto de Santos o Kasato Maru, primeiro navio com imigrantes japoneses – eram 793 pessoas.
Enquanto o Brasil precisava de mão de obra para trabalhar em suas fazendas de café, o Japão vivia uma tensão social, a da superpolução. Logo, a movimentação fazia sentido. Tanto fez que hoje, o Brasil abriga a maior população de origem japonesa fora do Japão, segundo o Ministério das Relações Exteriores do país asiático.
Estima-se que haja em terras brasileiras 2,7 milhões de nikkeis – aqueles que possuem ascendência japonesa. Os EUA vêm bem atrás (1,5 milhão), seguidos pelo Peru (200 mil).
A capital paulista foi o destino preferido. Não à toa, foi formado um bairro em São Paulo cujo nome sugestivo (Liberdade) mostra aos brasileiros as peculiaridades da cultura asiática, que nas últimas décadas tem agradado especialmente na gastronomia.
Prova disso é que na última seleção do Guia Michelin Rio de Janeiro e São Paulo 2024, dos dez novos restaurantes que receberam alguma estrela (uma ou duas), metade é japonês. Kazuo, Kuro, Murakami, Oizumi Sushi e Sam Omazake (o único do Rio) foram os novos entrantes no guia.
Já os 11 restaurantes que mantiveram as estrelas recebidas em anos anteriores, mais da metade (seis) também é japonês. São eles: Jun Sakamoto, Kan Suke, Kinoshita, Kuro, Huto e Mee (este, um pan asiático).
Em tempo: a premiação vinha de um hiato de três anos no Brasil por conta da pandemia. Ela começou por aqui em 2015.
Para Jun Sakamoto, 58 anos e veterano do Michelin (carrega uma estrela desde 2015), era natural que a gastronomia japonesa caísse no gosto do brasileiro. “Até um sushi mal feito é gostoso”, brinca, sem jamais se gabar de sua estrela. “Vejo alguns restaurantes que mereceriam uma, mas não ganham; e outros que ganham, mas são só cópias”.
Filho de um casal de japoneses que chegou ao Brasil pelo porto de Santos, em 1955, Sakamoto toca há 24 anos o restaurante que leva seu nome na rua Lisboa, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Ele saiu da sua cidade natal (Presidente Prudente) aos dez anos rumo à capital paulista.
O dom para a cozinha não veio do pai, um agrônomo, nem da mãe (dona de casa). Aliás, o pai queria que ele fosse engenheiro ou médico – não cozinheiro.
Talvez o seu lado prático, segundo ele, favoreceu o destino.
“Sempre tive problemas com estudos. Tenho TDAH (transtorno de déficit de atenção) relativamente forte e quando eu era pequeno, ainda tinha uma dislexia leve. Então estudar era muito mais árduo”.
Quando jovem, Jun manteve uma vida nômade entre São Paulo, Rio e Nova York (ele morou duas vezes lá; na primeira, ficou seis meses, na segunda, um ano). E foi na maior cidade dos EUA que teve seu primeiro contato com a cozinha, trabalhando como ajudante. O objetivo era juntar dinheiro e fazer cursos de fotografia – uma antiga paixão, mas que não evoluiu para o campo profissional.
De volta a São Paulo, teve sua primeira experiência com a gastronomia japonesa. Era um restaurante no bairro de Moema. Ali ele passou a enxergar o ofício sob outra ótica – como arte, não apenas como ganha pão.
No governo Collor, ele decidiu se mudar para os Estados Unidos de forma definitiva. Enquanto se preparava para imigrar, porém, conheceu a mulher que se tornaria sua esposa, e os planos foram por água abaixo.
Em 1994, aos 28 anos, Jun optou por fazer um cursinho a fim de estudar arquitetura na FAU-USP. Passou. Começou os estudos e durante uma das férias da graduação, apareceu um trabalho de consultoria para um restaurante japonês no Rio de Janeiro, o Sushi Leblon. Nesse interim, o chef do local pediu demissão, e o restaurante carioca fez a proposta de trabalho efetivo – com salário em dólar. Não deu outra: ele trancou a vaga na faculdade e aceitou a proposta.
Enquanto lidava com as facas do Sushi Leblon, Jun passou a gestar a ideia de abrir seu próprio restaurante. E em setembro do ano 2000, a ideia saiu do papel. Foi preciso R$ 20 mil da poupança da esposa, mais R$ 45 mil emprestados – no total, o equivalente a R$ 270 mil de hoje, levando em conta um quarto de século de inflação.
Jun não revela o faturamento. Mas o fato é que desde os anos 00 há fila de espera para ser atendido pelo chef – ou pelo seu braço direito, Ryuzo Nishimura. A média cobrada por casal para um omakase (menu degustação em que o chef escolhe o que vai servir segundo a sazonalidade) é de R$ 1,5 mil.
Ele mantém o zêlo gastronômico que tornou-o um dos chefs mais famosos do país – entre outras coisas, vai ao Japão regularmente buscar inspiração para novos pratos. E diz que de nada adiantaria oferecer o melhor sushi do mundo se o serviço for ruim. A fala uma máxima dita pelo pai: “As pessoas vão a um restaurante para serem restauradas”.
Tsuyoshi Murakami, 56 anos e que ganhou pela primeira vez sua estrela Michelin, concorda. “Eu achava que a comida vinha em primeiro lugar, mas meu filho me ensinou que não. Em primeiro lugar, o ambiente. As pessoas precisam se sentir bem onde estão. Em segundo, o atendimento, que precisa ser impecável. Em terceiro, a comida – e ela deve ser inigualável”.
Murakami compara a preparação dos pratos a uma dança, na qual cada movimento da equipe na cozinha proporciona ao cliente uma experiência para além da comida. Como é tradição nos restaurantes japoneses, afinal, todo o preparo é feito de frente para os clientes.
Para garantir o caráter “inigualável” que a comida deve ter, Murakami conhece toda a sua cadeia de fornecedores. Toda mesmo, incluindo os pescadores.
“Eu não quero 30 robalos, eu quero apenas um [ótimo] robalo, porque só vai uma fatia em cada prato que sirvo aqui. E eu preciso da melhor fatia”.
A intimidade com os pescadores, sejam eles de Santa Catarina, Angra dos Reis ou da região dos Lagos, no Rio, é o que garante a procedência dos peixes. “Eu posso comprar o lagostim ou a cavaquinha desse cara que tudo vai ter a barriguinha branquinha, porque acabou de sair do mar”.
Murakami nasceu na fria Hokkaido, a ilha mais ao norte das quatro principais que formam o Japão, e teve influência materna para a cozinha. Veio para o Brasil com os pais ainda pequeno.
Aos 18 anos, incentivado pelo pai, decidiu não continuar os estudos formais e partiu para Tóquio para aprender a culinária japonesa. Passaria 8 anos viajando e trabalhando em restaurantes nos EUA, Japão, Portugal, Espanha, Chile, até voltar para o Brasil, em 1994. A necessidade de constituir uma família bateu forte, ele diz.
Foi aí que ele entrou para o restaurante Kinoshita (de propriedade da família da então esposa) – primeiro na Liberdade, depois, no bairro da Vila Nova Conceição. O Kinoshita foi (e segue sendo) um sucesso; também tem sua estrela Michelin.
Em 2019, porém, Murakami decidiu alterar a rota. Optou por abrir o próprio restaurante, que carrega seu nome, na Alameda Lorena. O lugar é constituído por um único balcão, e atende apenas 12 clientes por vez – minimalismo à imagem e semelhança dos melhores restaurantes do Japão.
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