Neste primeiro ano de vigência do arcabouço fiscal, o governo parece estar mais próximo de evitar o que se temia meses atrás: a necessidade de alterar a meta fiscal para 2024. Há poucos dias, na divulgação do 3º Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, sugeriu a possibilidade de aumento da nota de crédito (“rating“) do país, enquanto o secretário-executivo Dario Durigan alegou “irracionalidade” nas críticas ao desempenho da política fiscal.
Poucas vezes houve tanta dissonância entre a visão triunfalista do governo e o ceticismo crescente de analistas econômicos e especialistas em contas públicas.
Para o governo, o cumprimento da meta fiscal primária é prova suficiente de que aqueles que previam o contrário estão errados e que a política fiscal em curso é exitosa. O foco da política fiscal deve ser circunscrito ao mero atingimento da meta de resultado primário?
Antagonismo entre as políticas fiscal e monetária
Com a economia brasileira continuando a superar as expectativas de crescimento e com o desemprego nos níveis mais baixos dos últimos dez anos, surpreende a esquizofrenia entre a política fiscal ultraexpansionista e a política monetária contracionista, em um ambiente de inflação desancorada.
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A política fiscal também deve levar em conta o contexto cíclico e atuar contra ele, e não a favor. No contexto atual, conter o gasto público ajudaria a reequilibrar a oferta e a demanda, beneficiando o combate à inflação sem a necessidade de aumento da taxa Selic, que ocorre na contramão do cenário global.
Deterioração institucional e irrelevância do resultado primário
Se o resultado primário é o instrumento de gestão da política fiscal, seu objetivo é controlar a trajetória da dívida pública. Nos últimos anos, seguidas PECs elevaram gastos e comprometeram a estratégia de garantir uma trajetória de estabilização e queda do endividamento público.
No período recente, a meta de resultado primário deixou de ser um guia confiável do grau de aperto da política fiscal, com o uso de diversos expedientes que fragilizam a institucionalidade fiscal: desonerações de tributos não compensadas por receitas de caráter permanente, contabilização de apropriação de recursos privados (PIS/PASEP, recursos esquecidos nos bancos) como receita primária, tentativa de expandir gastos públicos (vale-gás) por fora do orçamento, uso crescente e vultoso de créditos extraordinários, gasto parafiscal via fundos públicos, orçamento de Itaipu e conta CDE.
Em tempo: mudar a própria meta (como feito para 2025 e 2026) também faz parte do jogo.
Desequilíbrio estrutural do gasto obrigatório
A volta da política de aumento real do salário mínimo, a reindexação de gastos de saúde e educação à receita e o afrouxamento de critérios para concessão de benefícios sociais recolocaram a expansão do gasto obrigatório da União em uma trajetória de crescimento insustentável, em ritmo inclusive superior ao verificado antes da aprovação do teto de gastos, em 2016. Como resultado, observamos uma trajetória firme de crescimento da dívida pública, mesmo em um contexto de vigorosa expansão da receita.
Do ponto de vista dos mercados, a reação tem sido preocupante: as taxas de juros reais de longo prazo continuam em elevação e voltaram a patamares (em torno de 6,5%) somente vistos em 2015/2016, quando atravessamos a nossa última grande crise fiscal.
Aqueles que contestam o sucesso da política fiscal entendem que seu foco não deve ser o mero atingimento da meta de superávit primário. Ela deve se concentrar em sua atuação cíclica e interação com a política monetária; na busca por aprimoramento institucional, transparência e credibilidade; e, sobretudo, em uma perspectiva de médio e longo prazos, evitar novas crises fiscais e a imposição de sacrifícios crescentes às gerações futuras na forma de endividamento acelerado e aumentos da carga tributária.
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No ritmo atual, a dívida bruta promete atingir 85,0% do PIB ao final de 2026, próxima do nível máximo verificado durante a Covid-19, contra 71,7% do PIB ao término de 2022.
A fragilização da institucionalidade fiscal e a elevação do endividamento público não são exclusivas do Brasil. O temor é que sejam resultantes do alto grau de polarização política que vivemos globalmente nos últimos dez anos. Nesse cenário, o populismo fiscal não escolhe ideologia (como observa-se mesmo na eleição nos EUA), e a expansão do gasto público e/ou das desonerações tributárias são formas de dar alguma sustentação às sempre frágeis taxas de aprovação dos incumbentes. O ciclo político tradicional, de governos austeros nos anos iniciais e gastadores no ano eleitoral, não funciona mais.
A necessidade de derrotar o oponente a qualquer custo, para defender a democracia, acabar com a corrupção, preservar os costumes ou avançar com o identitarismo se sobrepõem à responsabilidade fiscal, podendo até contar com a complacência dos poderes legislativo, judiciário e órgãos de controle. No caso brasileiro, portanto, é difícil acreditar que algo estrutural será feito antes da eleição presidencial de 2026. Pelo contrário, se o verdadeiro foco da política fiscal é a missão de garantir a vitória contra o “mal”, cresce o risco de um vale-tudo.
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