A Netflix ganhou as manchetes há quase uma década quando revelou um dos benefícios de licença parental mais generosos dos EUA corporativos, prometendo dar às novas mães e pais uma folga ilimitada no primeiro ano de seus filhos.
Foi uma promessa que a empresa não conseguiu cumprir.
A política estava alinhada com um valor central: “liberdade e responsabilidade”, a ideia de que é possível confiar que os funcionários vão estabelecer seus próprios limites. Porém, mais funcionários que o esperado aproveitaram ao máximo o benefício, e a Netflix acabou achando isso insustentável.
A empresa passou os últimos anos voltando atrás na política de licenças, emitindo orientações vagas e às vezes conflitantes sem explicitamente cancelar o benefício de um ano, de acordo com comunicações internas revisadas pelo Wall Street Journal, além de entrevistas com funcionários atuais e antigos. Tirar mais de seis meses de licença agora é amplamente entendido como um passo imprudente na carreira.
O recuo na licença parental aponta para uma tensão central que agora agita a Netflix. A gigante do streaming credita sua cultura e princípios fundamentais, como a liberdade dos funcionários, por promover grande parte de seu sucesso. Ela há tempos é conhecida como um local de trabalho competitivo que adota transparência radical e feedback direto, ao mesmo tempo em que permite que os funcionários tomem suas próprias decisões sobre gastos e afastamentos, confiando que trabalharão pelo interesse da empresa. Os executivos acreditam que foi essa atmosfera “sem regras” que atraiu os melhores talentos.
Mas, à medida que cresce, a Netflix vai revisitando esses mantras de longa data, preocupada que não sejam mais práticos para uma empresa que tem cerca de 14 mil funcionários — um salto de mais de 60% em relação a antes da pandemia. Também mudou seu foco para a lucratividade, sob pressão de Wall Street, em vez do crescimento do número de assinantes.
A evolução da empresa, que incluiu maior controle dos gastos e das críticas dos funcionários ao conteúdo, gerou ansiedade e confusão nas fileiras da Netflix sobre a possibilidade de que sua cultura única não esteja mais intacta.
A equipe aproveitou a política de licença parental como um exemplo gritante de como eles acham que a Netflix está perdendo o que a torna especial. “A Netflix sempre teve uma abordagem diferente de outras empresas, pois dizia ser importante que os funcionários estivessem com seus bebês”, disse Clara Guimarães, ex-funcionária de produção da Netflix em São Paulo, Brasil. “Agora parece que a ideia tem mais a ver com as necessidades de negócios.”
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Sergio Ezama, diretor de talentos da Netflix, disse que a empresa não recuou em sua política de licença parental. Um porta-voz da empresa disse que a política de licença “sempre foi ‘cuidar de seu filho e de si mesmo’”. Ele acrescentou que “os funcionários têm liberdade, flexibilidade e responsabilidade para determinar o que é melhor para eles e sua família”.
O porta-voz acrescentou que, nos últimos quatro anos, a licença parental média se manteve estável em 6,3 meses para funcionários dos EUA e 7,5 meses para aqueles fora dos EUA. A empresa não forneceu uma divisão entre pais biológicos e não biológicos.
Em junho, após uma reunião anual de executivos, a seção “liberdade e responsabilidade” foi removida do memorando de cultura original — documento amplamente citado que consagra os valores centrais da Netflix.
Ted Sarandos, co-CEO, disse em uma entrevista em outubro no WSJ Tech Live, evento do jornal em Laguna Beach, na Califórnia, que a Netflix nunca quis que sua cultura fosse estática e que ela precisa mudar à medida que o negócio evolui.
Sarandos disse que o memorando de cultura original foi criado quando a empresa tinha algumas centenas de funcionários, então atualizá-lo faz sentido. “Provavelmente havia um pouco mais de ênfase na liberdade do que na responsabilidade, e achamos que as duas são necessárias”, disse ele. “Mas os valores centrais que constam do novo documento estão todos no documento antigo.”
A cultura da Netflix deve “refletir como trabalhamos, não ditar como trabalhamos”, disse ele.
Maior foco nos lucros
A reavaliação da política de licença faz parte de uma redefinição cultural mais ampla na Netflix. Não há mais e-mails internos para toda a empresa para explicar por que alguém foi demitido, um ritual que alguns achavam desagradável, mas que foi concebido como um exercício de transparência, valor valorizado na empresa, disseram funcionários atuais e antigos.
Os trabalhadores não são mais incentivados a compartilhar documentos corporativos sobre tudo, desde a estratégia até o desempenho, “de forma ampla e sistemática”, como orientava o memorando de cultura. No passado, a ideia era que o fluxo de informações gerasse feedback e debate sinceros; hoje, a empresa limita quais documentos estão disponíveis para a maioria dos funcionários.
A Netflix há muito diz que valoriza o debate interno, mas que, uma vez tomada uma decisão, espera que a equipe aceite. Ela adicionou aspectos a seu memorando de cultura em 2022 dizendo que decisões sobre a programação que os funcionários consideram ofensivas foram incluídas. Isso ocorreu depois de uma greve de funcionários por causa de um especial de comédia de Dave Chappelle que alguns disseram insultar pessoas transgênero.
Desde então, vários ex-funcionários afirmaram ao WSJ que se sentiam desconfortáveis em falar sobre suas preocupações sobre diversidade ou racismo e tinham medo de participar de reuniões de grupos de recursos de funcionários minoritários.
Amy Reinhard, então chefe de produção da Netflix, reconheceu esse problema, especificamente para funcionários negros, em um memorando interno no ano passado. Ela disse que esse tipo de experiência é “inaceitável” e explicitou as medidas que estava tomando, incluindo a realização de mesas redondas trimestrais entre ela e funcionários negros nos EUA e no Canadá.
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Embora a política de despesas da Netflix permaneça simplesmente “Aja no melhor interesse da Netflix”, o foco intensificado nos lucros — em comparação com os primeiros dias, quando a adição de milhões de clientes era suficiente para impressionar Wall Street — levou a novos controles de custos.
A Netflix costumava liberar os gerentes para que definissem salários bem acima do mercado para recrutar e reter talentos. Nos últimos meses, pediu-lhes para manter os salários na faixa de 50% a 95% do de colegas dos funcionários, de acordo com e-mails analisados pelo WSJ, alinhando a Netflix com a remuneração em todo o setor.
A empresa até impôs limites à quantidade de brindes da Netflix, incluindo canecas de café, moletons e macacões de bebê, que um funcionário pode pedir depois que o benefício pareceu estar sendo usado em excesso, de acordo com pessoas familiarizadas com a situação. Depois de anos de pedidos descontrolados, os funcionários agora estão limitados a US$ 300 em mercadorias por ano.
Na reunião anual de revisão no primeiro semestre, quando centenas de executivos da Netflix se reuniram no J.W. Marriott no centro de Los Angeles, mudanças propostas para o memorando de cultura foram discutidas em pequenos grupos, de acordo com os participantes. Uma pergunta comum surgiu: se tirarmos a liberdade de nossa cultura, o que somos?
Alguns reconheceram que a mudança era necessária. Internamente, executivos começaram a brincar que o pilar de “liberdade e responsabilidade” deveria ser chamado de “liberdade e responsabilidade sem responsabilidade”.
No final, a empresa acabou fazendo a mudança.
A nova mentalidade de consciência de custos, que controlava o aumento dos gastos com operações e pessoal, ajudou na recuperação da empresa de um período lento há alguns anos, que abalou os investidores. No primeiro semestre de 2022, a Netflix perdeu mais de um milhão de assinantes, seu primeiro declínio em mais de uma década. Sus ações caíram mais de 50% naquele ano.
As ações da empresa agora estão sendo negociadas em máximas históricas, e o crescimento e a receita de assinantes se recuperaram fortemente. Novos desafios podem surgir quando o crescimento que a empresa garantiu com a repressão ao compartilhamento de senhas de usuários for abalado.
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O risco de longo prazo para a Netflix é que as características que tornaram seu local de trabalho distinto sejam afetadas, dificultando a atração e retenção de talentos, disse Harry Kraemer, professor de administração da Escola de Administração Kellogg da Universidade Northwestern.
A Netflix conta com seus executivos de tecnologia, produtos e conteúdo para manter sua liderança sobre as empresas tradicionais de entretenimento.
“A cultura influi na confiança, no engajamento e na capacidade de os funcionários se sentirem parte de uma empresa”, disse Kraemer. “Se você começar a brincar com cultura e confiança, corre o risco de perder essas pessoas.”
A Netflix afirmou que não teve problemas para atrair ou reter talentos, dizendo que sua taxa de aceitação de ofertas de emprego é de 93% e a taxa de demissão voluntária é de apenas 3%.
Vantagem de recrutamento
A Netflix revisou sua orientação oficial sobre licença parental para funcionários várias vezes, mais recentemente em outubro, quando removeu um trecho dos documentos de cultura do local de trabalho em seu site, que afirmava que “os novos pais geralmente tiram de 4 a 8 meses de licença”. A nova linguagem nesse documento não se refere a um número de meses, mas incentiva os funcionários a conversar com seus gerentes sobre o que é melhor para eles e para a empresa.
A página de benefícios internos da Netflix, um documento separado, afirma que os funcionários assalariados podem tirar licença parental no primeiro ano de vida ou adoção de filhos, sem especificar um período de tempo.
A lei federal exige que empresas do tamanho da Netflix forneçam 12 semanas de licença parental não remunerada, e os estados têm requisitos variados, alguns exigindo várias semanas de licença remunerada. As leis que regem os escritórios internacionais da Netflix também variam.
Os concorrentes da Netflix nos setores de tecnologia e entretenimento geralmente oferecem uma faixa de oito a 24 semanas de licença parental remunerada.
Inicialmente, a ideia por trás da política de oferecer licença parental ilimitada no primeiro ano era ser mais generosa que os rivais e obter uma vantagem competitiva no recrutamento, de acordo com pessoas familiarizadas com as discussões.
“Queremos que os funcionários tenham flexibilidade e confiança para equilibrar as necessidades de suas famílias em crescimento sem se preocupar com trabalho ou finanças”, escreveu a diretora de talentos da empresa na época, Tawni Cranz, em 2015 no blog da Netflix.
Cranz disse a outros executivos que não previa que muitas pessoas tirariam um ano inteiro de licença. Mas os pedidos começaram a chegar 24 horas após o anúncio da política. Alguns funcionários que haviam acabado de voltar da licença parental começaram a perguntar aos gerentes se poderiam obter uma extensão.
Em 2018, a Netflix estava tomando medidas para controlar a forma como as pessoas usavam a política, reformulando o texto para esclarecer que a maioria dos funcionários tira de quatro a oito meses de folga, já que alguns gerentes tinham dificuldade para substituir vários funcionários em licença.
“O plano não era que os funcionários tirassem um ano como ponto de partida para avaliar quanto tempo precisariam, nem presumimos que os funcionários veriam isso como uma licença de um ano”, escreveu um funcionário de recursos humanos aos gerentes.
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Houve uma reação imediata de funcionários e gerentes. “Embora não seja intencional, esta nota dá a entender que estamos limitando um benefício existente sem dizer abertamente que é isso que estamos fazendo, o que parece altamente incongruente com nossos valores”, escreveu um gerente.
A empresa respondeu que estava simplesmente tentando fornecer mais orientação aos funcionários.
Apesar da resistência, a equipe de recursos humanos adotou as mudanças e enviou orientações para os gerentes sobre como ter essa conversa com os funcionários. Entre as instruções, a Netflix aconselhou-os: “primeiro, diga parabéns”, de acordo com duas pessoas familiarizadas com a orientação.
Cortes pós-pandemia
As preocupações dos funcionários com as políticas de licença se intensificaram em 2022, depois que o boom da pandemia na Netflix diminuiu. A empresa começou a se concentrar no corte de custos, que incluiu milhares de demissões.
Ao mesmo tempo, tentava gerenciar os crescentes pedidos de licença. O cofundador e então co-CEO Reed Hastings instruiu os principais assessores a dizer que os líderes seniores haviam mudado o memorando de cultura para determinar que a maioria dos funcionários seguiria normas locais ao tirar licença parental.
“É bom esclarecer essas velhas simplificações excessivas”, escreveu Hastings em um e-mail de novembro de 2022 sobre as mudanças.
“Estamos enfrentando um número crescente de licenças e de afastamentos remunerados por problemas mentais”, escreveu a diretora de comunicações da época, Rachel Whetstone, em resposta. “Questões difíceis de enfrentar.”
Alguns executivos expressaram preocupação em reuniões de liderança dizendo que parecia que muitos funcionários que estavam em licença parental ou que haviam acabado de voltar da licença estavam sendo demitidos, de acordo com pessoas envolvidas nas discussões. A preocupação era que pudesse parecer que a Netflix estava mirando nessas pessoas.
A Netflix disse que os funcionários não foram alvo de demissões porque estavam em licença parental. Um porta-voz disse que a empresa fez uma análise e descobriu que apenas uma porcentagem muito pequena das pessoas afetadas pelas demissões estava em licença parental.
Em muitos casos, a empresa concordou em pagar a esses trabalhadores demitidos pelo restante de sua licença, além de indenizações, de acordo com pessoas familiarizadas com o assunto.
Guimarães, a funcionária de produção do Brasil, foi demitida em uma reorganização no ano passado, poucos dias antes de retornar de uma licença-maternidade de sete meses. A ambiguidade em torno de quanto tempo os funcionários realmente podem tirar afeta sua decisão, disse ela.
Vários funcionários contaram que o pessoal de recursos humanos disse a eles nos últimos dois anos que seis meses é a duração real para a licença e que, além disso, os gerentes teriam que aprovar um tempo estendido.
“Na Netflix, geralmente honramos seis meses de licença maternidade”, disse um gerente de recursos humanos a uma funcionária no início deste ano, de acordo com uma gravação revisada pelo WSJ. “Qualquer coisa acima disso é realmente baseada na decisão do líder do negócio. Mas em geral são seis meses de licença maternidade.”
Um porta-voz da Netflix disse que não é exatamente assim, e que a política de licença não é um tempo definido de seis meses, e enviou a descrição da política de licença parental da declaração inicial ao WSJ.
Quando um funcionário disse a seu gerente que sua parceira estava grávida, o gerente disse: “Você não vai tirar um ano, vai?”, de acordo com uma pessoa familiarizada com a situação. O emprego do funcionário foi eliminado em uma reorganização este ano, pouco antes de ele retornar da licença paternidade de seis meses.
Uma ex-executiva que teve um natimorto disse a pessoas próximas a ela que encurtou sua licença planejada de seis meses em um mês em 2022 porque estava preocupada em perder o emprego devido às iniciativas de reestruturação da empresa, disseram pessoas familiarizadas com a situação. Cerca de um ano depois, seu cargo foi eliminado como parte de uma reorganização.
Vanessa Hughes, que era gerente de marketing da Netflix em Sydney, na Austrália, processou a empresa no início deste ano por supostamente eliminar ilegalmente seu cargo durante a licença parental, de acordo com documentos judiciais. A empresa nega as acusações, de acordo com os documentos. O advogado de Hughes não quis comentar.
No início deste ano, Becca Leckie, que estava na empresa há mais de cinco anos, foi demitida um dia antes de retornar de uma licença-maternidade de seis meses, de acordo com seu post no LinkedIn, que já foi deletado. Leckie disse que ingressou na Netflix em grande parte por causa de sua generosa política de licença parental, de acordo com o post.
Escreva para Jessica Toonkel em [email protected]
Traduzido do inglês por InvestNews
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