James Bond escapou de mais de quatro mil tiros, pulou de aviões, esquiou por penhascos e quase foi castrado por um raio laser. Agora, 007 enfrenta um desafio diferente.
Quase três anos após a Amazon adquirir os direitos de Bond ao comprar o estúdio MGM por US$ 6,5 bilhões, a relação entre a família que supervisiona a franquia e a gigante do comércio eletrônico está em colapso. O fracasso da parceria enterrou as esperanças de um novo filme no curto prazo — um revés para as ambições da Amazon em Hollywood, já que a franquia Bond representa parte significativa do valor pago pela MGM.
O poder sobre o futuro de Bond está nas mãos de Barbara Broccoli, que herdou o controle de seu pai, Albert “Cubby” Broccoli. Há 30 anos, ela decide quando um novo filme pode começar a ser produzido. A executiva confidenciou a amigos que não consegue confiar um ícone do cinema a uma empresa guiada por algoritmos — James Bond é um personagem que ela ajudou a construir através de narrativas cinematográficas e instinto puro. Recentemente, descreveu a situação: não há roteiro, história ou novo Bond no horizonte.
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Para pessoas próximas, Barbara teria resumido sua visão sobre a Amazon: “Essas pessoas são idiotas.”
A disputa chegou a um impasse: a Amazon precisa que Barbara apresente ideias para um novo filme, mas ela se recusa a trabalhar com a empresa. O conflito, segundo fontes de ambos os lados, reflete um choque entre a Hollywood tradicional, dos grandes cinemas e das cenas de ação, e uma nova indústria do entretenimento controlada por empresas do Vale do Silício, que priorizam dados, algoritmos e assinaturas de streaming.
O controle da família Broccoli sobre James Bond é único na Hollywood atual, onde personagens populares são absorvidos por conglomerados ansiosos para explorá-los em filmes, brinquedos e parques temáticos. Durante décadas, executivos sonharam em fazer o mesmo com Bond.
Barbara, 64 anos, já havia recusado séries de TV, jogos e até um cassino temático antes da chegada da Amazon. Durante boa parte de sua carreira, dividiu essas decisões com seu meio-irmão, Michael Wilson, 82 anos. Recentemente, assumiu as rédeas da franquia, com Wilson próximo da aposentadoria.
Para ambos, Bond é mais que um personagem que arrecadou US$ 7,6 bilhões nas bilheterias. É uma herança familiar lucrativa que exige cuidados especiais.
No set, colegas dizem que Barbara exerce uma autoridade maternal sobre acrobacias, explosões e egos. Ela comanda um império britânico com regras próprias (informações sensíveis não podem circular por e-mail) e garante que os princípios narrativos sejam respeitados (Bond raramente atira primeiro).
É um trabalho que a obrigou a navegar pelo complexo cenário de fusões e aquisições de estúdios. Com o impasse atual, a franquia não avançou desde o lançamento de “007 – Sem Tempo Para Morrer” em 2021, atrasado pela pandemia. Este é um período excepcionalmente longo para uma série que costumava lançar filmes a cada um ou dois anos, desde “007 Contra o Satânico Dr. No” em 1962, raramente ficando mais de três anos sem novidades — uma pausa arriscada no atual mercado de entretenimento.
Barbara avalia a Amazon como um lar inadequado para Bond, argumentando que o negócio principal da empresa é vender produtos do cotidiano, de papel higiênico a aspiradores — visão que os executivos da Amazon consideram injusta. Mas, como detém as decisões criativas (roteiro, elenco, história), ela pode manter Bond em espera pelo tempo que considerar necessário.
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Sua postura ecoa uma frase atribuída a seu pai, um agente de cinema que vendia secadores de cabelo antes de garantir os direitos de adaptar os romances de Ian Fleming:
“Não deixe que pessoas temporárias tomem decisões permanentes.”
O nome é Bond… James Bond
Poucos negócios poderiam unir a velha e a nova Hollywood como a parceria MGM-Amazon. A fusão colocou um estúdio conhecido por “E o Vento Levou” e “O Mágico de Oz” sob o mesmo teto de um serviço de computação em nuvem e vendas online.
A Amazon pagou US$ 6,5 bilhões pela MGM visando sua biblioteca de títulos para streaming: de “Rocky” a “Legalmente Loira”. Mas uma propriedade em particular seria a joia da coroa: James Bond.
A influência tecnológica da empresa chegou à franquia desde o início das negociações. Executivos da MGM temiam pelo futuro dos lançamentos cinematográficos na era do streaming, como o Prime Video. Antes de fechar o acordo, a MGM garantiu o compromisso da Amazon com estreias nos cinemas, ponto crucial para Barbara, que esperou 18 meses de lockdown na pandemia para exibir “Sem Tempo Para Morrer” nas telonas.
Barbara e Wilson foram informados sobre a venda antecipadamente. Ela tinha ressalvas, mas não quis complicar o que muitos em Hollywood viam como um excelente negócio para os donos da MGM — além disso, sua família manteria a palavra final sobre questões criativas, incluindo a escolha do próximo Bond.
Mike Hopkins, responsável pelo Prime Video, disse a investidores que estava otimista em conquistar a confiança de Barbara para expandir a franquia. Internamente, a Amazon discutia possibilidades: uma série de TV? Um spin-off sobre Moneypenny? Uma agente 007 mulher?
A resposta de Barbara a esse entusiasmo, segundo fontes próximas, era sempre a mesma: “Vocês leram o contrato?”
Hopkins atribuiu a delicada tarefa de gerenciar o relacionamento a uma de suas principais executivas de entretenimento, Jennifer Salke, ex-executiva da NBCUniversal que dirige a Amazon Studios desde 2018.
Barbara ficou irritada logo em uma das primeiras reuniões, quando Jennifer se referiu a James Bond com uma palavra temida: “conteúdo”. O uso de um termo tão estéril, nas palavras de um amigo da herdeira, refletiu para Barbara como uma “sentença de morte” para Bond.
Além disso, a abordagem inicial teria sugerido que Barbara não teria nenhuma decisão mais relevante do que determinar quem interpretará James Bond. Daniel Craig, por exemplo, era relativamente desconhecido quando conseguiu o papel, começando com “Casino Royale” em 2006. A decisão, disse ela, é tão séria quanto a escolha de um cônjuge.
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Executivos ex-Amazon criticaram a visão da empresa no desenvolvimento do projeto, afirmando que a companhia depende excessivamente de dados e métricas, como o desempenho anterior de um ator ou o que títulos semelhantes conquistaram no mercado. Para esses ex-executivos, a ideia de escalar um ator desconhecido para um papel principal como Bond é praticamente impensável na Amazon.
Apesar dos sonhos de spinoffs e repaginadas de Bond, os executivos da Amazon perceberam melhor a situação depois que o acordo com a MGM foi fechado, a de que tais ideias exigiriam a bênção de Barbara.
Em uma reunião em maio de 2022, semanas após o fechamento do negócio, os executivos circularam um memorando de cerca de dez páginas listando ideias para novos programas e filmes com base nos títulos de sua biblioteca recém-adquirida da MGM.
O objetivo era “maximizar as oportunidades de conteúdo apresentadas pela MGM e pela aquisição da sua biblioteca”, afirmava o memorando. Ao lado do nome Bond, o status era “TBD” (sigla para “to be decided”, ou “a ser decidido”, em tradução livre): “Em espera, aguardando discussões mais amplas”, dizia o documento.
O amanhã nunca morre
Desde que assumiram o negócio de James Bond na década de 1990, Barbara e Wilson se acostumaram com os protocolos e a deferência que definiam o sistema de estúdio tradicional.
Quando eles ligavam, os chefes do estúdio atendiam diretamente — no caso da MGM, Mike DeLuca e Pamela Abdy, dois executivos veteranos famosos na indústria por serem os mais amigáveis com os cineastas. Barbara disse a amigos que ficou chateada quando a dupla saiu após a venda.
Wilson, seu meio-irmão, reclamou com amigos que não conseguiu uma reunião com ninguém na Amazon acima de um “L6”, a designação interna de um cargo sênior que, no entanto, está seis degraus abaixo do presidente-executivo Andy Jassy, um L12. Uma pessoa próxima à empresa disse que Wilson se reuniu com vários líderes seniores.
A Amazon mais recentemente contou com a ajuda de outra executiva de produção, Courtenay Valenti, que agora é conhecida como a “encantadora de Barbara” dentro da Amazon. Além de ter experiência em desenvolvimento de filmes, Courtenay é uma ponte entre a velha Hollywood e a nova. Seu pai, Jack Valenti, foi o chefe da Motion Picture Association of America entre 1966 e 2004.
Valenti também foi contemporâneo do pai de Barbara, Cubby Broccoli, que transformou Bond em um fenômeno global e morreu em 1996.
Para Barbara Broccoli, o legado de Bond é, na verdade, o legado de seu pai. Ela tinha 2 anos quando “Dr. No” estreou em Londres, e duas semanas antes da crise dos mísseis cubanos transformar as façanhas de Bond na tela em um reflexo cinematográfico de eventos do mundo real.
Nos EUA, o charme e a arrogância de Bond lembravam o novo presidente, John F. Kennedy, cuja aprovação dos romances de Fleming já havia feito as vendas dispararem. No Reino Unido, os fãs britânicos viram em 007 um emblema do antigo domínio imperial de seu país.
“Estendemos o melhor momento britânico por mais de sessenta anos por causa dele”, disse Broccoli em uma biografia de Fleming publicada no início deste ano por Nicholas Shakespeare.
A economia de Bond cresceu, com creme de barbear, pasta de dente e até lingerie para fãs do sexo feminino que queriam “se preparar para James Bond”.
Barbara começou a trabalhar nos filmes quando adolescente, e ela e seu meio-irmão comandram uma era de sucesso de bilheteria, começando com a estreia de Pierce Brosnan em “007 Contra GoldenEye” de 1995 e continuando com a série de cinco filmes de Craig. Em 2012, “007 – Operação Skyfall” se tornou o primeiro — e ainda o único — filme de Bond a arrecadar mais de US$ 1 bilhão em todo o mundo.
Barbara e Wilson começaram a explicar o processo à próxima geração. O filho de Wilson, Gregg Wilson, ajudou a produzir filmes recentes.
Essa passagem de bastão trouxe consigo algumas divergências sobre quem deve ser o próximo James Bond. Para pessoas próximas, Gregg Wilson parece ser mais simpático aos pedidos de uma atualização de Bond, papel que até agora pertenceu a atores brancos do sexo masculino.
Alguns argumentam que um ator negro no smoking de Bond refletiria melhor a mudança demográfica do Reino Unido e até amenizaria sua controversa história de colonização. Vá além, dizem outros, e escale uma mulher ou um homem gay.
Barbara disse a amigos que não tem escrúpulos em escalar um ator não branco ou gay, mas acredita que Bond deve sempre ser interpretado por um homem e sempre deve ser interpretado por um britânico.
Os vilões também apresentaram um desafio criativo, já que Bond despachou muitos deles.
Em um mundo onde apenas 1% tem mais poder do que nunca, sugeriram alguns, um autocrata bilionário apátrida pode parecer a escolha óbvia para um bandido de Bond.
A resposta de Barbara a essas sugestões: isso já foi feito. Vilões recentes incluem um banqueiro rico de grupos terroristas que chora sangue de um olho (“Cassino Royale”, de 2006); uma rica herdeira do petróleo (“O Mundo Não é o Bastante”, de 1999); e um rico magnata cujo império de mídia global inclui uma rede de satélites (“O Amanhã Nunca Morre”, de 1997). Este último surgiu mais recentemente, quando alguém faz relação com o mundo real. “Elon Musk?”, disse Barbara a um amigo. “Fiz isso em 1997.”
Sem pressa
Nos quase três anos desde que o acordo foi fechado, a Amazon produziu um produto relacionado a Bond: um reality show, “007: Road to a Million”, que apresenta equipes competindo em desafios com temas de espionagem. (Barbara trabalhou com a Amazon em projetos que não são relacionados a James Bond, incluindo o drama “Till: A Busca Por Justiça” e uma atualização de “O Calhambeque Mágico”.)
O reality show de Bond já tinha o apoio de Barbara e estava em desenvolvimento antes da venda da MGM para a Amazon.
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Barbara queria um impulso de marketing completo, com outdoors e comerciais de TV do tipo que um filme de Bond normalmente recebe. Na Amazon, o algoritmo geralmente faz o trabalho, exibindo programas para usuários Prime com base em seus hábitos de visualização.
Os executivos da Amazon reclamaram que a primeira temporada do programa perdeu uma parcela significativa de espectadores após seis minutos. Sua maior onda de atenção veio quando seu apresentador, o ator de “Succession”, Brian Cox, admitiu em uma entrevista que concordou em fazer o programa porque erroneamente pensou que iria participar de um filme de James Bond.
Mesmo assim, o trabalho para uma segunda temporada começou. E sem uma direção clara da estratégia cinematográfica de Bond, o programa se tornou um local de discussão dentro da Amazon sobre o futuro do personagem e se a valorização de um agente secreto perigosamente violento e mulherengo é o que seria melhor para a sociedade hoje.
Durante uma reunião da empresa sobre a segunda temporada, uma funcionária da Amazon admitiu suas próprias dúvidas.
“Tenho que ser honesta”, disse ela. “Não acho que James Bond seja um herói.”
A sala ficou em silêncio.
Barbara não tem problemas em paralisar a franquia por um longo tempo. Houve um período de seis anos entre “Licença Para Matar” e “GoldenEye”, de 1989, quando a família tentava achar alguém para interpretar Bond depois de Timothy Dalton, e como seriam suas aventuras na era pós-Guerra Fria.
“Muitas pessoas e organizações tentaram colocar sua própria marca em Bond”, disse Daniel Craig em um discurso em homenagem a Barbara e Wilson ao receberem o Oscar honorário em novembro. “Admiro sua integridade em manter sua visão singular ao trazer Bond para o século XXI.”
Em seu discurso, Wilson reconheceu o apoio da Amazon e da MGM.
Em seu discurso, Barbara agradeceu à Academia por homenagear os produtores e a seu pai por permitir que ela tivesse “a melhor vida imaginável”.
Ela não mencionou a Amazon.
Escreva para Erich Schwartzel em [email protected] e Jessica Toonkel em [email protected]
Traduzido do inglês por InvestNews
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