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As filhas indesejadas da China cresceram — e agora rejeitam a maternidade

Deixadas de lado em favor dos meninos, algumas mulheres dizem que o trauma da política do filho único destruiu seu senso de família

Por Shen Lu The wall street Journal
Publicado em
10 min
traduzido do inglês por investnews

Em 1992, logo depois que nasceu na China rural, Simona Dai foi morar com uma família adotiva, escondida para que seus pais pudessem tentar ter um menino. 

O que provocou essa decisão foi a política do filho único do país, em vigor de 1980 a 2015. Simona era a segunda filha de seus pais, nascida graças a uma exceção que permitia que as famílias rurais tivessem um segundo filho caso o primeiro fosse uma menina. Ela só voltou a fazer parte de sua família biológica depois que seu irmão nasceu, quatro anos depois.

Seu destino como filha não reconhecida era comum entre as meninas nascidas naquela época, onde o decreto para limitar os nascimentos muitas vezes ia contra a pressão familiar para se ter um filho. Nas aldeias e pequenas cidades chinesas, muitas mulheres se escondiam dos agentes do Estado para evitar abortos forçados caso sua cota de filhos tivesse sido ultrapassada, ou brigavam com parentes por causa da ideia de que deveriam esconder ou abandonar meninas “ilegais”. 

Agora com 32 anos, Simona decidiu não ter filhos. “Nunca senti o tipo de amor incondicional da minha mãe”, disse ela. “Não sei como conseguiria oferecer isso a outro ser humano.”

Com o fim da política do filho único, o Partido Comunista agora está defendendo o termo “valores familiares” e pressionando as mulheres a terem mais filhos, pois agora há a ansiedade gerada pela redução da população do país. Essa pressão colide com um peso emocional persistente — e nunca mencionado — de décadas da restrição draconiana de natalidade.

Simona e inúmeras outras mulheres não apenas testemunharam a dor de seus pais pelas crianças abandonadas ou não nascidas, mas também foram levadas a sentir que eram obstáculos na busca da família por um filho. Algumas delas agora dizem que a sensação de não terem sido amadas e de não terem recebido os cuidados necessários destruiu seu conceito de família, uma reação daquelas que não querem se casar ou ter filhos.

Simona mostra uma foto em seu telefone de quando era criança na casa de sua família adotiva no início dos anos 1990. Foto: Tina Hsu/WSJ

“A política do filho único criou um trauma geracional”, disse Mei Fong, autora do livro “One Child: The Story of China’s Most Radical Experiment” (em tradução livre “Filho Único: A História do Experimento mais Radical da China”). “E isso deixou uma cicatriz tão profunda que as mulheres hoje relutam em constituir famílias felizes. Por que fariam isso? Elas tiveram famílias muito infelizes.”

A maioria das chinesas ainda se casa e tem filhos. Mas a porcentagem de solteiras de 30 a 44 anos aumentou de menos de 1% em 2000 para 5,6% em 2020. E um estudo de 2023 sobre a ausência de filhos realizado por cinco demógrafos do país estimou que cerca de 5% das chinesas de 49 anos não tinham filhos, um número que por décadas ficou abaixo de 2%.

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A Comissão Nacional de Saúde da China, que supervisiona as questões de nascimento, não respondeu a um pedido de comentário.

Trisha Zhu, de 40 anos, lembra-se de sua mãe desaparecendo repetidamente por meses de sua casa em uma pequena cidade no centro do país, aparentemente para visitar parentes. Mais tarde, Zhu percebeu que sua mãe estava grávida e se escondendo de autoridades e de vizinhos intrometidos. Foram necessárias oito tentativas para que finalmente desse à luz um filho. 

Quando adolescente, Zhu soube que tinha uma irmã mais nova que havia sido doada a outra família quando recém-nascida. Outra irmã não foi registrada para evitar uma punição do nascimento fora da cota. Houve também abortos e, em um caso, um parto induzido que resultou na morte de um bebê. Zhu diz que sua mãe desmaiou quando descobriu que era um menino.

Não foi possível entrevistar a mãe de Zhu. Em uma conversa que ela gravou em vídeo, sua mãe relata ter sido desprezada por seus sogros por não ter dado à luz um filho e também que tinha medo de ser forçada a interromper a gravidez.

Zhu se lembra da mãe dizendo a ela e a suas irmãs que às vezes sentia vontade de tomar pesticida, um dos métodos mais comuns de suicídio entre as mulheres das zonas rurais naquela época. “Não conseguíamos entender o que ela passava”, disse Zhu.

A pesquisa sobre o impacto psicológico da política geralmente se concentra nas crianças que cresceram sem irmãos — ou nos pais que perderam seu único filho. Poucas pesquisas abordam o impacto na saúde mental das mulheres da época.

A política do filho único foi apenas um fator de estresse na vida difícil das mulheres rurais em idade fértil, grupo que, no final do século passado, tinha uma das maiores taxas de suicídio do mundo, de acordo com um estudo de 1998. As taxas de suicídio entre elas caíram nas últimas décadas, o que alguns pesquisadores atribuíram em parte ao desenvolvimento econômico da China. 

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Quatro décadas depois que o partido lançou a política do filho único, o número de nascimentos no país está em queda livre. Houve pouco mais de nove milhões de recém-nascidos em 2023, em comparação com cerca de 16 milhões em 2013. A Organização das Nações Unidas projeta que a população da China caia dos 1,4 bilhão de habitantes que tem hoje para 639 milhões até 2100. 

“Por favor, venha, irmãozinho”

Nas grandes cidades da China, onde a maioria das famílias tinha apenas um filho, muitas meninas tiveram acesso à educação e oportunidades semelhantes às dos meninos. Na China rural, o limite de nascimentos reforçou a preferência confucionista por meninos. 

Uma prática nada sutil que enfatizava o status de segunda classe dessas filhas extras e indesejadas era dar-lhes nomes como “Zhaodi” ou “Laidi”, que significa “por favor, venha, irmãozinho”.

Nos últimos anos, algumas mudaram de nome. Uma delas postou nas redes sociais sobre como se sentia envergonhada toda vez que seu nome, Zhaodi, era dito em público. Sua postagem recebeu milhares de comentários e histórias de outras zhaodis.

Nos casos em que um irmão mais novo acabou nascendo, a família geralmente parava de ter filhos e direcionava recursos para o menino.

Pesquisadores da Universidade de Ciência e Tecnologia de Huazhong, examinando dados coletados para uma pesquisa da Universidade da Carolina do Norte, do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças e outros, descobriram que, entre 1991 e 2009, nas áreas rurais, quatro em cada dez meninas e mulheres de seis a 30 anos tinham um irmão mais novo, o mesmo acontecendo com apenas dois em cada dez homens da mesma idade.

Ter irmãos muitas vezes prejudicava as oportunidades educacionais das mulheres durante a era do filho único. 

Nanfu Wang, cineasta que codirigiu “One Child Nation” (A Nação do Filho Único), documentário crítico dessa política, disse que seu sonho de cursar uma universidade foi destruído quando sua família a mandou para uma escola vocacional em vez do ensino médio aos 13 anos. 

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A esperança era que, após a formatura, ela pudesse ajudar a diminuir o fardo financeiro da família para que seu irmão mais novo pudesse continuar seus estudos. O irmão, Wang Zhihao, disse que só soube disso no ensino médio. “Eu senti muita culpa”, disse ele. “Gostaria que as coisas tivessem sido diferentes.”

Um estudo de 2017 baseado em dados nacionais de 2010 por pesquisadores da Universidade de Jinan e da Academia de Filantropia de Guangzhou mostrou que ter irmãos reduziu a média de anos de educação das mulheres em seis meses. Muitas meninas também foram prejudicadas em sua escolaridade pelo simples fato de terem sido escondidas por seus pais ou de não terem sido registradas.

Simona explora as experiências de sua família em um podcast que ela criou. Foto: Tina Hsu/WSJ

“É um sentimento muito difícil”

Depois que Wu Yaping nasceu em 1992, a terceira filha da família, seus pais a abandonaram na calçada em frente ao hospital. Porém, o pai voltou para buscá-la, esperando que ela ajudasse nas tarefas familiares.

Segundo Wu, na infância, ela estava “à disposição de todos”.

Wu não questionava o amor e a atenção dispensados ao irmão nascido depois dela. Ela e suas irmãs se amontoavam em escolas públicas úmidas e lotadas, enquanto seu irmão ia para a escola particular, tinha seu próprio lanche, material escolar novo e uma mesada sete vezes maior que a das irmãs. Quando ele se casou, os pais pagaram a entrada de um apartamento e compraram um carro para ele.

Wu achava que era assim que tinha de ser. Mas também sempre teve um relacionamento tenso com os pais. “Disse inúmeras vezes à minha mãe que realmente gostaria de não ter nascido”, contou ela. “Fico preocupada que, se eu tivesse um filho, ele se tornaria um outro eu.”

Wu agora é advogada de propriedade intelectual em Shenzhen. Ela presumiu que um dia se casaria e se tornaria mãe, mas foi gradualmente abandonando essa ideia, dizendo que percebeu que tem opções. “Ninguém depende de mim. Vivo para mim mesma”, disse ela. 

Não foi possível entrar em contato com os pais ou o irmão de Wu.

Assim como Wu, Zhu e Simona passaram grande parte da vida tentando compreender sua formação.

Em 2015, Zhu começou a reunir histórias pessoais de mulheres que foram abandonadas ou cresceram como filhas não reconhecidas. Ela postou mais de cem histórias em sua conta em uma rede social chinesa. “Era um trauma coletivo”, disse ela.

Depois de testemunhar a dor de sua mãe, Zhu nem pensava em casamento e maternidade. Isso mudou depois que ela deixou a China para fazer pós-graduação nos EUA. 

Agora, está casada e tem uma filha de quatro anos. “Se eu tivesse ficado na China, não faria isso”, disse ela.

Uma noite, no final de 2019, Simona decidiu entrevistar sua mãe sobre suas experiências durante a era da política do filho único. Ela ficou chocada ao saber que a mãe teve uma indução de parto forçado quando estava grávida de oito meses no início dos anos 1990. O bebê, que morreu, era outra menina.

“Ainda me pego pensando nisso à noite. Eu realmente me arrependo”, disse sua mãe em uma gravação da conversa. “É um sentimento muito difícil.” Simona mais tarde usou a história de sua mãe como a primeira parte de um podcast que criou para falar sobre casamento e nascimento. Não foi possível entrar em contato com sua mãe.

Simona se casou quando tinha 26 anos. Durante anos, resistiu às demandas persistentes de ambas as famílias para engravidar e finalmente chegou à conclusão de que a única maneira de parar com isso era terminando seu casamento. No ano passado, ela pediu o divórcio.

Escreva para Shen Lu em [email protected]

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