Como o Brasil se tornou prioridade para a BYD e GWM na América Latina — e no mundo
O Brasil é o maior mercado externo da BYD, agora que a China afasta as montadoras ocidentais do “quintal dos americanos”
Quando a Ford Motor fechou sua fábrica de Camaçari, na Bahia, em 2021, depois de mais de um século no país, Uelcson Alves e milhares de outros trabalhadores da montadora nesta outrora próspera cidade brasileira entraram em pânico.
“Foi devastador. As lojas começaram a fechar, e depois os postos de saúde e as escolas”, disse Alves. Era o meio da pandemia, e sua família, como muitas outras, de repente não tinha mais plano de saúde, contou ele. As ruas da cidade ficaram assustadoramente vazias, pois muitas pessoas partiram em busca de trabalho em outro lugar.
Mas hoje as coisas estão melhorando na cidade baiana: os chineses chegaram.
No ano passado, a BYD, uma das maiores produtoras de veículos elétricos do mundo, comprou a fábrica abandonada e está transformando rapidamente o terreno de 550 hectares da Av. Henry Ford em seu hub latino-americano.
Basicamente excluídas dos EUA e enfrentando tarifas punitivas na Europa, as fabricantes chinesas de veículos elétricos e híbridos inundaram a América Latina e outras regiões com carros baratos depois de aumentar a produção doméstica — uma estratégia que ameaça algumas das maiores montadoras do mundo em um momento de aprofundamento das tensões comerciais globais.
A América Latina e o Caribe — lar de cerca de 650 milhões de pessoas e grande parte do lítio de que os fabricantes de veículos elétricos precisam para as baterias — estão entre os mercados no topo da lista. A BYD disse estar pensando em construir uma fábrica no México, onde cerca de 10% das vendas de carros novos são de marcas chinesas, ao mesmo tempo em que expande rapidamente sua frota de ônibus elétricos da Colômbia até o Chile. Outras empresas chinesas, como a Great Wall Motor, também estão se mudando para o Brasil, assumindo uma fábrica da Mercedes-Benz que foi fechada depois que a empresa alemã encerrou a produção de automóveis no país.
“É uma grande mudança de paradigma”, disse Ricardo Bastos, diretor de relações institucionais da Great Wall no Brasil, em entrevista. “Eram duas fábricas que produziam veículos a combustão e que encerraram as operações, demitindo todo mundo, e agora serão reabertas para produzir novas tecnologias.”
Com mais de 200 milhões de habitantes, o Brasil já é o maior mercado automotivo da BYD fora da China, disse Alexandre Baldy, vice-presidente sênior da BYD no Brasil, em entrevista.
O Brasil colocou cerca de 51 mil carros da BYD nas ruas entre janeiro e setembro deste ano, representando cerca de 72% de todos os carros importados emplacados durante esse período, de acordo com a Associação Brasileira dos Importadores e Fabricantes de Automóveis. Isso é mais de oito vezes o número de carros da BYD que entraram em uso no mesmo período do ano passado. Os números não incluem marcas populares como a Fiat, que pertence à Stellantis e é produzida no Brasil, e que viu cerca de 370 mil de seus veículos emplacados durante o mesmo período.
“O Brasil nos surpreendeu positivamente”, disse Baldy. Custando cerca de US$ 1 bilhão, a fábrica de Camaçari começará a operar em dezembro, produzindo inicialmente 150 mil carros no ano que vem e 300 mil até 2028, com cerca de 10% dessa produção programada para exportação para o resto da América do Sul, disse ele.
Alguns economistas locais questionam a dependência de Pequim. Desde que ultrapassou os EUA como o maior parceiro comercial do Brasil em 2009, a China inundou o mercado local com importações baratas, contribuindo para um processo de forte desindustrialização. A produção industrial do Brasil encolheu de uma participação de 36% do PIB em 1985 para apenas 11% no ano passado.
Autoridades do governo esperam que o Brasil colha os benefícios desta vez, mesmo que parte da força de trabalho construindo a fábrica seja chinesa. Davidson Magalhães, secretário estadual de Trabalho na Bahia, disse esperar que a fábrica da BYD gere cerca de 15 mil empregos formais e informais na região. Isso é muito mais do que os nove mil perdidos com a saída da Ford.
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A Great Wall Motors, fabricante chinesa de SUVs e picapes elétricos, disse que planeja investir US$ 1,8 bilhão até 2032, convertendo uma pequena ex-fábrica da Mercedes-Benz em Iracemápolis, no Estado de São Paulo, em seu próprio hub sul-americano.
A Mercedes-Benz fechou a fábrica em dezembro de 2020, um mês antes de a Ford fechar sua fábrica de Camaçari e sair do Brasil, citando condições econômicas difíceis. Cerca de 370 trabalhadores perderam o emprego na pequena cidade onde a cultura básica é a cana-de-açúcar.
As montadoras tradicionais do Ocidente têm lutado para acompanhar a produção chinesa de carros convencionais com motor a combustão, além dos veículos elétricos em alguns dos principais mercados em crescimento do mundo.
O CEO da Ford, Jim Farley, disse ao Wall Street Journal que as montadoras chinesas representavam uma “ameaça existencial” para a companhia. E no início deste ano, ele identificou a América do Sul, assim como a África, como mercados decisivos para a Ford.
O governo Biden impôs uma tarifa de 100% sobre os veículos elétricos chineses, enquanto a União Europeia impôs na semana passada tarifas de até 45%. O ex-presidente Donald Trump, caso seja eleito, prometeu altas tarifas sobre os veículos chineses.
O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva introduziu suas próprias medidas para proteger a indústria local — estimulando os fabricantes chineses a investir e oferecendo incentivos às montadoras, como a BYD, para construir fábricas no país.
“A esperança é que a BYD intensifique seus investimentos para produzir carros elétricos no Brasil, gerando empregos e renda no país”, disse o Ministério da Indústria do Brasil em comunicado.
De acordo com as regras estabelecidas pelo Mercosul, o bloco comercial sul-americano, as montadoras que produzem pelo menos 40% de seus carros em solo brasileiro podem exportar para o resto da América do Sul sem impostos de importação nesses países. Foi um fator importante por trás da decisão da Great Wall de produzir seu SUV, o Haval, em São Paulo, disse Bastos.
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A BYD tem lutado para compensar os efeitos das medidas protecionistas nos EUA e na Europa, expandindo-se agressivamente em todos os lugares possíveis, sempre que possível. Ela já possui fábricas na Tailândia e no Uzbequistão e anunciou planos para unidades na Turquia e na Hungria.
Especialistas do setor estavam inicialmente céticos sobre a disposição dos brasileiros de dirigir carros elétricos. Mas o fato é que consumidores migraram para os modelos de baixo custo da BYD, como o Dolphin Mini. Os proprietários de carros elétricos estão isentos de um imposto sobre veículos em muitos Estados, enquanto em São Paulo eles também estão isentos do rodízio.
A economia de gasolina vale a pena no Brasil, disseram os proprietários. Custa cerca de US$ 57 (R$ 320) para encher um tanque de 50 litros no Brasil, o equivalente a quase 9% do salário médio mensal do país.
“Você pode dirigir de graça! Não dá para não gostar”, disse Marcio Viana, vendedor itinerante, depois de testar o King, híbrido plug-in da BYD, em Salvador. Atualmente proprietário de um Chevrolet, ele contou que foi a primeira vez que pensou em comprar um carro de fabricação chinesa.
Em Camaçari, alguns moradores disseram que continuam céticos sobre o quanto a fábrica beneficiará a região. A BYD contratou uma empresa chinesa, a Jinjiang Construction Group, para ajudar a construir a fábrica, inundando a região com trabalhadores chineses que pouco se misturam com os locais.
“Estamos tão ocupados no trabalho que não temos tempo para ver a cidade”, disse Wu Lei, trabalhador da construção civil de 35 anos da cidade de Chengdu, no sudoeste da China, usando seu celular para se comunicar pelo Google Tradutor.
Bebendo um coco fresco, o único costume brasileiro que ele adotou desde que chegou em março, Wu disse que divide uma casa com uma dúzia de outros trabalhadores e o cozinheiro que eles trouxeram da China.
A BYD disse que é prática comum uma empresa trabalhar com uma construtora que já conhece para botar para funcionar uma fábrica tão grande, acrescentando que a maioria dos trabalhadores será brasileira.
Alves, o ex-funcionário da Ford, espera ser um deles. Usando parte do dinheiro da compensação que recebeu da Ford, começou a estudar eletrônica na esperança de conseguir um emprego na nova fábrica.
“Estou fazendo o que posso”, disse Alves. “Você precisa seguir em frente, se reinventar.”
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traduzido do inglês por investnews