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JBS recruta haitianos para fazer nos Estados Unidos o trabalho que ninguém quer

Trabalhadores contratados pela JBS encontraram condições de vida terríveis: “Pior que estar na prisão”

Por Patrick Thomas The wall street Journal
Publicado em
14 min
traduzido do inglês por investnews

A JBS, maior frigorífico do mundo, se autodenomina o caminho do sonho americano para os imigrantes que trabalham em seus matadouros e linhas de corte de carne.

A empresa construiu moradias para funcionários perto de algumas fábricas, onde até 60 idiomas são falados, e os trabalhadores podem aprender inglês após o expediente e fazer cursos gratuitos em faculdades comunitárias. 

Aqui no norte do Colorado, porém, em uma das maiores fábricas de carne bovina da empresa, trabalhadores recém-chegados do Haiti descreveram condições de vida terríveis. 

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Um supervisor de recursos humanos da JBS providenciou para que alguns dos trabalhadores imigrantes ficassem no Rainbow Motel, a um quilômetro e meio da fábrica, onde viveram por semanas. Eles dormiam no chão, até oito por quarto, e preparavam refeições em fogões de uma boca sobre o carpete. A JBS pagava a conta.

O supervisor, ele próprio um imigrante da nação africana do Benin, instalou outros em uma divisão de cinco quartos e dois banheiros que havia alugado em uma casa na cidade. Lá também, eles dormiam no chão. A certa altura, 30 ou mais pessoas estavam morando na casa, disseram os trabalhadores. Quando a energia acabava no inverno, tinham de fazer tudo usando casacos. Tinham de pagar US$ 60 por semana de aluguel.

Alguns trabalhadores temiam que, se reclamassem, perderiam o emprego.

Depois que o Wall Street Journal abordou a JBS com perguntas sobre o tratamento dos trabalhadores imigrantes em Greeley, a empresa abriu uma investigação. O diretor de recursos humanos da fábrica e outro funcionário de RH foram demitidos, mas não o supervisor.

Uma porta-voz da JBS, empresa brasileira cuja sede nos EUA fica em Greeley, disse em um e-mail que a empresa considerou “inaceitáveis e alarmantes os relatos sobre as condições de vida” e que quer que todos os funcionários tenham acesso a moradia segura e a oportunidades de uma vida melhor. A instalação de carne bovina em Greeley, disse ela, nomeou recentemente novos líderes de recursos humanos e criou novos programas de treinamento de recrutamento para garantir a conformidade nas políticas de contratação.

Este relato dos trabalhadores imigrantes da JBS em Greeley é baseado em entrevistas com dezenas de funcionários atuais e também com antigos colaboradores da JBS, além de outras pessoas envolvidas com os recém-chegados.

A indústria frigorífica há muito tem dificuldade para encontrar pessoas dispostas a fazer um dos trabalhos mais difíceis e perigosos nos EUA. Os trabalhadores ficam amontoados nas linhas de produção, abatendo o gado, partindo carcaças e fatiando carne. 

Muitos não permanecem. O setor de carnes tem uma das maiores taxas de rotatividade de qualquer setor nos EUA — mais de 30% ao ano, estimou a empresa de pesquisa Korn Ferry. Nos aviários, de acordo com uma pesquisa de 2018 com empresas da Associação Americana de Aves e Ovos, a rotatividade anual foi de 65%.

Frigoríficos como a JBS, que processa cerca de um quarto de toda a carne bovina americana, há muito recorrem aos imigrantes para manter suas fábricas funcionando. Em lugares como Greeley, não há americanos suficientes com disposição para aceitar esse tipo de emprego.

“Muitas pessoas simplesmente não fazem isso”, disse o prefeito de Greeley, John Gates, policial aposentado que sempre morou na cidade. “É um trabalho muito difícil.” 

Os imigrantes haitianos se tornaram um aspecto político crítico na eleição presidencial, mas a JBS os recebeu em Greeley. Aqueles que trabalham na fábrica têm autorização das autoridades de imigração dos EUA para trabalhar temporariamente no país, de acordo com o sindicato da fábrica. A JBS exige que os imigrantes contratados forneçam evidências de sua situação trabalhista.

Fábrica da JBS em Greeley, no Colorado. Crédito: Eli Imadali/WSJ

Nos últimos anos, algumas empresas de carne começaram a contar com gerentes de fábricas e funcionários de linha de processamento para ajudar a recrutar trabalhadores imigrantes, disse Debbie Berkowitz, ex-chefe de gabinete da Administração de Saúde e Segurança Ocupacional. Ela se referiu à prática como uma “rede de recrutamento subterrânea”, pronta para ser explorada.

Na JBS, Edmond Ebah, o supervisor do Benin, era um exemplo vivo das oportunidades disponíveis aos imigrantes. Ele veio para os EUA em 2017, começou a trabalhar na linha de produção de carne bovina em Greeley um ano depois e acabou se tornando supervisor de RH.

Em 2021, com a JBS e outros frigoríficos lutando para recrutar trabalhadores em meio à pandemia de Covid-19, ajudou a trazer pelo menos 30 novos trabalhadores do Benin. Ele recebeu bônus pelas indicações, que podem chegar a US$ 1.500 por trabalhador, e usou o dinheiro para comprar uma van para transportar trabalhadores para a fábrica. Alguns recém-chegados ficavam em sua casa.

A JBS alardeou as contribuições de Ebah em um vídeo de dois minutos postado em seu site, destacando o tempo que ele dedicava a ajudar os novos funcionários.

Uma faixa com sua foto e a palavra “humildade” estava pendurada no corredor principal da fábrica.

No ano passado, quando o aumento dos custos do gado começou a reduzir os lucros, a JBS cortou as vantagens de contratação, como os bônus e os reembolsos de mudança. Ao mesmo tempo, a companhia tentava contratar mais trabalhadores para fazer a limpeza no período noturno, depois de romper contrato com uma empresa terceirizada que foi acusada de explorar trabalho infantil. 

Conexão haitiana

Em dezembro, uma solução surgiu quando um imigrante haitiano chamado Mackenson Remy apareceu no portão da frente da fábrica. Remy morou em Boston e em Colorado Springs, onde era motorista de táxi e do Uber. 

Remy postou no TikTok um vídeo em língua crioula haitiana exaltando a beleza do Colorado. Os haitianos que assistiram ao vídeo começaram a lhe perguntar sobre empregos lá. Um conhecido mencionou uma empresa que estava sempre contratando: a JBS. 

Naquele mesmo mês, Remy postou um novo vídeo do TikTok dizendo que a JBS estava pagando US$ 23 por hora para as vagas em sua linha de processamento de carne bovina, o que ele afirmou ser o dobro do que empregos de nível básico em outros lugares pagavam. Seu telefone foi inundado de mensagens e logo ele tinha um novo negócio: trazer funcionários para a JBS.

“Todo mundo na JBS conhece o povo haitiano por minha causa”, contou ele em uma entrevista. “Eu os ajudo a vir para cá.” 

Remy não trabalha para a JBS. Ele é autônomo. 

Usando o recurso de mensagens do TikTok, ele fornecia instruções para imigrantes haitianos que viviam em outros estados sobre como comprar uma passagem aérea para Denver. Quando chegavam, ele cobrava US$ 120 pela viagem de pouco menos de cem quilômetros do aeroporto até Greeley. Os trabalhadores disseram que ele cobrava mais US$ 200 para garantir uma vaga na JBS. Remy lhes dizia que só passaria suas informações aos gerentes de contratação da empresa depois que lhe pagassem integralmente, contaram alguns trabalhadores.  

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Remy garantiu que ninguém nunca lhe pagou para ser contratado pela JBS e que os US$ 200 cobriam duas semanas dos serviços de transporte que prestava.

Alguns desses novos funcionários se hospedavam com Remy. Então, Ebah e a JBS criaram uma nova solução. A JBS fechou um acordo com o Rainbow Motel para fornecer aos trabalhadores recém-chegados e seus familiares duas semanas de acomodação gratuita. A empresa encarregou Ebah do controle desse acordo.

Ebah não respondeu a telefonemas e mensagens de texto solicitando comentários para este artigo, e a empresa não quis disponibilizá-lo para uma entrevista.

Rainbow Motel

O imigrante haitiano Remy Luc chegou ao motel de 16 quartos em março. Caminhões de gado subiam e desciam a rua. Por volta das 14h, os trabalhadores deixavam o quarto, capacete na mão, e se dirigiam à fábrica para o turno das 15h.

Luc, de 27 anos, estudou odontologia em Porto Príncipe, mas em 2023, depois que a violência das gangues aumentou, imigrou para a Flórida, onde conseguiu asilo. Depois de meses procurando emprego, descobriu Remy no TikTok. Ele logo embarcou em um avião para o Colorado.

Ebah era geralmente o primeiro da JBS a se encontrar com possíveis candidatos a contratações. Ele fazia a mesma pergunta: você quer trabalhar no “lado quente” da fábrica, onde o gado é abatido, ou no “lado frio”, onde as carcaças são cortadas? Luc escolheu o lado frio. 

No Rainbow, Ebah mostrou a Luc o quarto em que ficaria e que compartilharia com outros três novos contratados. Havia uma cama e um banheiro. Luc escolheu um lugar no chão. Ele acabou comprando um colchão de ar e levou o frigobar para o banheiro. 

Entre dezembro e abril, outros quartos chegaram a ser compartilhados por até oito homens, mulheres e crianças, de acordo com trabalhadores que lá ficaram. Mais tarde, funcionários do motel encontraram marcas de facas em uma banheira que era usada como tábua de corte e carpetes queimados pelos fogões de uma boca. 

Alguns trabalhadores disseram que não tinham coragem de contar a parentes no Haiti sobre as condições em que se encontravam, e que os EUA não deveriam ser assim. “Pior do que estar na prisão”, disse um deles. 

Ebah vinha regularmente para verificar os funcionários da JBS ou preencher a papelada do histórico médico exigida pela empresa. Os funcionários do Rainbow Motel disseram que tantas pessoas entravam e saíam que mal conseguiam acompanhar todos.

Em abril, o Rainbow e a JBS encerraram o acordo e o motel ordenou que os trabalhadores saíssem. A administração do motel estimou US$ 40 mil em danos, que foram pagos pela JBS em junho.

Ebah e Remy tinham um plano B. A cerca de um quilômetro e meio do motel, Ebah alugou parte de uma grande casa de dois andares em um bairro de classe média, pagando US$ 1.795 por mês. Eles cobravam US$ 60 por semana de cada trabalhador que ficava lá.

Michael Ciaglo/Bloomberg

Os trabalhadores usavam cobertores para marcar sua cama no chão. Em um momento durante o inverno, o aquecedor parou de funcionar. Outra vez, a água foi desligada.

Quando o proprietário descobriu quantas pessoas estavam hospedadas lá, Ebah teve de pagar cerca de US$ 4.400 pelos inquilinos não autorizados e contas não pagas. Ex-moradores disseram que Remy, o intermediário haitiano, coletou US$ 100 de cada um que morou lá para ajudar a cobrir a multa.

Às vezes, os trabalhadores confrontavam Remy sobre as condições de moradia. Ele respondia que estava lhes fazendo um favor. Alguns trabalhadores haitianos disseram que Remy os ameaçava, afirmando que sua esposa, que segundo ele fazia parte do Exército dos EUA, poderia prendê-los.

Em uma entrevista recente, Remy garantiu que sua esposa não tinha autoridade para prender ninguém, que nunca havia feito ameaças e que a casa era uma forma de ajudar as pessoas que não tinham para onde ir.

Após a multa, Ebah e Remy levaram os recrutas para outro imóvel alugado em Greeley. Alguns trabalhadores disseram que não era muito diferente — pouca ou nenhuma mobília, com a maioria dos ocupantes dormindo em colchões infláveis ou no chão. 

Sondas internas

Alguns dos trabalhadores começaram a reclamar com o escritório local do sindicato ao qual haviam se filiado — o United Food and Commercial Workers International. Kim Cordova, a presidente, contou que, em dezembro, o sindicato disse à JBS que Ebah estava cobrando dos trabalhadores o transporte para o trabalho e colocando seu nome nos bônus de indicação. Ela acrescentou que muitos novos contratados usaram o endereço residencial de Ebah nos pedidos de emprego, e ele recebia suas correspondências. 

A JBS abriu uma investigação naquele mês sobre as atividades de Ebah, suspendendo-o por vários meses durante o processo. Advogados do escritório de advocacia Spencer Fane, da área de Kansas City, conduziram mais de uma dúzia de entrevistas com funcionários, alguns dos quais descreveram morar na casa com cerca de 30 pessoas e pagar taxas a Remy.

Quando a investigação foi concluída, Ebah foi repreendido, mas voltou a trabalhar na fábrica da JBS. Cordova, do sindicato, disse que continuou a pressionar a empresa sobre Ebah e seu trabalho com Remy. Remy continuou trazendo novos trabalhadores para Greeley, e Ebah continuou instalando-os no Rainbow.  

“A empresa está bem ciente do que Edmond [Ebah] estava fazendo”, afirmou ela. “A JBS é responsável por isso. Ela desconsiderava o que os trabalhadores diziam.”

Em agosto, após contínua pressão sindical e uma investigação do WSJ sobre o recrutamento e tratamento dos trabalhadores de Greeley, a JBS abriu uma segunda investigação. 

A empresa disse que baniu Remy de sua fábrica quando soube da situação, que descreveu como “alegações alarmantes”. A porta-voz disse que a empresa notificou as autoridades locais sobre Remy e que vai cooperar com qualquer investigação.

Remy disse que era justo buscar compensação por seu tempo e pelo transporte que oferecia, e que seu trabalho promoveu uma comunidade haitiana em Greeley. Em maio, ele abriu um comércio de comida haitiana. Remy disse que Ebah deveria tê-lo apresentado a seus superiores na JBS para ajudá-lo a entender as regras da empresa. “Minha consciência está tranquila”, garantiu ele. 

A JBS disse que não cobra funcionários ou candidatos por serviços, incluindo transporte, aplicativos ou moradia, e que está adicionando requisitos de treinamento e políticas e processos aprimorados de direitos humanos.

O diretor de RH da fábrica — chefe de Ebah — foi demitido no mês passado, junto com outro funcionário de RH. A empresa disse que Ebah violou sua política de conflito de interesses e foi repreendido. Afirmou também que não encontrou evidências de que ele violara quaisquer políticas de recrutamento ou que estivera associado a quaisquer supostos maus-tratos a funcionários, acrescentando que a punição não estava relacionada a seu relacionamento com Remy. 

A empresa disse que Ebah ajudava os aspirantes a trabalhadores a preencher formulários de emprego, encontrar moradia temporária e entender os benefícios oferecidos pela empresa, sendo também seu tradutor. O banner com sua foto, no entanto, desapareceu.

Em agosto, segundo alguns trabalhadores, mais de 12 pessoas ainda moravam no imóvel alugado na cidade.

Alguns dos trabalhadores afirmaram que se arrependeram de ter vindo trabalhar para a JBS, desejando ter conseguido um emprego em um frigorífico diferente ou em um armazém da Amazon. Outros disseram que estavam gratos por ter um emprego nos EUA e que esperavam que seu trabalho valesse a pena no futuro.

Luc, o dentista, cortou a mão trabalhando na linha de processamento em maio. Está de volta ao trabalho, mas ainda sente dor.  

Ele disse que sente falta do Haiti, que ainda quer ser dentista, e que espera economizar dinheiro suficiente para aprender inglês e voltar a estudar. 

Embora as pessoas possam ter se aproveitado dele, continuou, elas o ajudaram a começar a vida nos EUA.

O trabalho árduo na JBS, concluiu, é “trabalho de imigrante”.

Escreva para Patrick Thomas em [email protected]

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