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Para fugir da guerra, russos se refugiam em praias e cafés do Brasil e da Argentina

Os imigrantes estão se estabelecendo em Florianópolis e Buenos Aires, comprando apartamentos e abrindo salões de beleza e restaurantes

Por Ryan Dubé The wall street Journal
Publicado em
10 min
traduzido do inglês por investnews

No Bucarest Gastro Bar, os garçons falam russo enquanto os clientes deixam de lado a costela local e optam pela carne no espeto chamada shashlik.

Os russos que deixaram sua terra natal desde que o país invadiu a Ucrânia curtiam o som de uma banda russa. Outros tomavam vodca e fumavam tabaco em um narguilé, popular em sua terra natal. 

“Aqui, meus filhos são livres. Eu sou livre”, disse o coproprietário do bar, Dmitrii Prianikov, em um espanhol hesitante. O homem de 42 anos tem uma história muito familiar para contar: chegou à Argentina há dois anos com sua esposa e filhos, vindos de uma região russa que faz fronteira com a Ucrânia — que é frequentemente atacada por drones.

Com a economia da Rússia isolada e o regime autoritário de Vladimir Putin em busca de recrutas, centenas de milhares de russos fugiram desde que a Rússia invadiu a Ucrânia em fevereiro de 2022. Eles foram primeiro para a Armênia, Turquia e países vizinhos, nações onde o alcance dos serviços de segurança de Moscou parecia próximo. 

Agora, muitos desses imigrantes estão aproveitando as regras de entrada menos exigentes e as leis de imigração benéficas para se estabelecerem na Argentina e no Brasil, principalmente na capital argentina e na cidade costeira brasileira de Florianópolis, uma coleção idílica de ilhas cobertas por florestas exuberantes no sul do país. Ambas as cidades, localizadas a milhares de quilômetros da Rússia, há muito tempo são ímãs para imigrantes europeus que fogem de conflitos e da pobreza. 

Na Argentina, o centro da nova comunidade russa está espalhado por Palermo, Belgrano e outros bairros de Buenos Aires conhecidos por seus restaurantes badalados e moradores jovens. Os recém-chegados abriram salões de beleza, restaurantes, creches e pequenos teatros de língua russa. Outros são nômades digitais, trabalhando em russo e pagos em moedas estrangeiras ou criptomoedas.

Já Florianópolis é parcialmente composta por uma grande ilha onde há bares com muita caipirinha e restaurantes de praia da moda. A postura neutra do Brasil sobre a invasão da Ucrânia, juntamente com a notável falta de interesse dos brasileiros na guerra, facilitou a adaptação.

“As pessoas são muito gentis, essa é a melhor parte”, disse Alexey Yushko, desenvolvedor de sites e ávido surfista de Moscou que agora vive em Florianópolis. Alguns dos melhores surfistas da Rússia estavam entre os primeiros de seu país a chegar à cidade brasileira de 500 mil habitantes, contou ele.

Cerca de 60 mil cidadãos russos entraram no Brasil entre o início de março de 2022 e o final do ano passado, segundo dados do governo. Eles investiram mais de US$ 300 milhões, principalmente em imóveis, de acordo com estimativas baseadas em dados oficiais da Hayman-Woodward, empresa global de consultoria sobre imigração.

Cerca de 36 mil ucranianos também entraram no Brasil durante o mesmo período, muitos se estabelecendo no sul.

Os recém-chegados da Rússia dizem que são atraídos pelo clima mais frio da cidade e por uma taxa de criminalidade menor que a de São Paulo e do Rio de Janeiro. Os estados do sul do Brasil já abrigam descendentes de muitos judeus russos e outros de origem alemã que imigraram após as duas guerras mundiais do século passado.

“Eles estão procurando um lugar que tenha algumas semelhanças com seu país”, disse Leonardo Freitas, executivo-chefe da Hayman-Woodward, explicando por que a maioria escolheu o sul do Brasil, que agora está no meio do inverno. 

A primeira onda de russos incluiu mulheres grávidas para a Argentina, já que o país garante cidadania imediata a recém-nascidos, além de residência temporária e autorizações de trabalho para os pais, sendo este um caminho rápido para a cidadania. 

Mas o Brasil também oferece vantagens para os novos pais, permitindo que os imigrantes solicitem a cidadania após o parto no país e que tenham um passaporte, a fim de contornar as crescentes restrições de viagem para os russos. A União Europeia restringiu a visita de cidadãos russos ao bloco de 27 nações, endurecendo os requisitos de visto. Mas argentinos e brasileiros entram na Europa sem visto.

A facilidade de obter a cidadania nos países sul-americanos chamou a atenção de autoridades ocidentais depois que espiões russos foram descobertos com identidades falsas na Argentina para espionar a Europa.

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O Ministério da Justiça do Brasil disse que o direito à cidadania nesses casos é garantido pela constituição do país, acrescentando que a nação sempre se esforça para integrar os migrantes. O Ministério das Relações Exteriores da Argentina não respondeu a um pedido de comentário. 

Na Argentina, mais de 75 mil russos entraram desde o início da guerra, mostram dados de migração do governo. Durante o mesmo período, cerca de 11 mil ucranianos também entraram na Argentina, que tem uma grande comunidade ucraniana com raízes que remontam ao século XIX. Essa comunidade envia remédios, roupas e outras ajudas para a Ucrânia desde o início da guerra. 

Em Buenos Aires, os recém-chegados russos têm pouco contato com a comunidade ucraniana estabelecida, disse Jorge Danylyszyn, chefe de uma associação cultural ucraniana na Argentina. Embora alguns tenham se juntado a protestos contra a guerra em frente à embaixada russa, a maioria dos imigrantes não quer se envolver, disse ele.

“Eles param em frente à porta da nossa organização, leem os cartazes de protesto que colocamos e continuam andando”, contou. Mesmo assim, não há tensão entre os grupos, disse ele. “O conflito é na Ucrânia, não na Argentina.”

Grigorii Mikhailov soube que sua esposa estava grávida de seu primeiro filho dois dias antes do início do ataque. “Quando a guerra começou, ficamos em choque. Sabíamos que tínhamos que deixar a Rússia. Eu estava com medo de ser convocado ou acabar na prisão.”

Mikhailov explicou como o casal pegou seu cão e fugiu para a Tailândia para ficar com amigos. Depois de lutar para obter autorização para morar lá, um amigo em Florianópolis os avisou sobre as generosas leis de imigração do Brasil. O casal logo tomou um avião para a América Latina.

Ksenia Romantsova, jovem de 28 anos de São Petersburgo, na Rússia, deu à luz uma filha no ano passado depois de se mudar para Buenos Aires. 

Ela e o marido, um chef, abriram um restaurante chamado Musgo, que usa ingredientes da Patagônia em pratos de inspiração escandinava e asiática. Eles estão em processo de obtenção da cidadania argentina. 

“Nós nos sentimos muito bem aqui”, disse Romantsova.

No caso de casais do mesmo sexo, tanto a Argentina quanto o Brasil são acolhedores. Aliás, a Argentina foi o primeiro país latino-americano a reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo sexo, enquanto que na Rússia, a Suprema Corte considerou o movimento LGBT internacional como extremista. Lá, as pessoas são multadas por exibir a bandeira do arco-íris.

“Foi um choque cultural ver casais do mesmo sexo de mãos dadas em público”, disse Baghir Kutlugildin, jovem de 27 anos de Moscou que se mudou para a Argentina com seu parceiro. “Quando se é gay na Rússia, ninguém pergunta sobre sua vida pessoal e você não conta a ninguém, apenas para amigos muito próximos. Mas aqui, posso dizer a qualquer um que tenho um namorado.”

No dia seguinte à invasão da Ucrânia pela Rússia, Kutlugildin sacou suas economias. Preocupado com um possível recrutamento, ele considerou se incapacitar prendendo a mão em uma porta ou quebrando uma perna.

Em vez disso, Kutlugildin e seu parceiro partiram para a Armênia, onde passaram alguns meses trabalhando em um albergue antes de se mudarem para Buenos Aires. Antes de chegar em dezembro de 2022, ele sabia pouco sobre a Argentina além de sua reputação como potência global do futebol e berço do tango.

“Sabia que era um país na América do Sul”, disse.

Mas estabelecer raízes na Argentina é uma aposta arriscada, dada a história de décadas de turbulência financeira do país, incluindo sua atual crise econômica. Os russos chegaram no momento em que a nação enfrenta uma inflação anual de 272%, uma das mais altas do mundo, e uma taxa de pobreza que atingiu 56% da população.

O presidente Javier Milei, um libertário que herdou uma economia em ruínas de seu antecessor, apoiou fortemente a Ucrânia. Uma de suas primeiras reuniões como chefe de Estado foi com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, que veio para sua posse em dezembro.

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Os imigrantes russos, muitos dos quais não falam espanhol, tiveram que se adaptar rapidamente ao aumento dos preços. Mariya Azimova, de 38 anos, verifica regularmente a taxa de câmbio do peso em relação ao dólar para definir os preços para fazer mão e pé em seu salão de beleza, o Mint Lounge, onde suas seis funcionárias são russas.

Azimova, que chegou de Moscou com o marido e a filha de nove anos, disse que sua família raramente viaja ou compra roupas novas.

“Nada de excesso”, disse ela. “Entendemos que agora precisamos trabalhar muito.” 

Quando Alexander Ivanov chegou à Argentina no ano passado, contou que os jantares eram tão baratos que ele e sua esposa podiam comer fora uma vez por semana. Agora, só uma vez por mês.

Ainda assim, o moscovita de 35 anos diz que está feliz em Buenos Aires, onde sua filha nasceu em agosto passado.

Apaixonado por arquitetura e história, ele ganha a vida como guia turístico, levando outros imigrantes russos em passeios a pé por Buenos Aires, discutindo a arquitetura ornamentada de inspiração parisiense. Suas estruturas favoritas da cidade são as brutalistas, como a imponente Biblioteca Nacional Mariano Moreno.

“Amo esta cidade”, disse ele. “Não dá para ficar entediado aqui.”

A crise econômica da Argentina proporcionou a alguns russos a oportunidade de comprar apartamentos a preços reduzidos. Agentes imobiliários locais dizem que os russos estavam entre os principais compradores estrangeiros no ano passado. 

Olga Ellinskaya, que tem 41 anos e é natural de Sochi, comprou um apartamento perto do famoso Teatro Colón, em Buenos Aires. Ela agora mora lá com seus dois filhos, sua mãe e seu parceiro. 

Ela deixou a Rússia depois que sua filha adolescente foi brevemente detida pela polícia por criticar a guerra nas redes sociais. Acabou escolhendo a Argentina depois de ler críticas positivas nas redes sociais de outros imigrantes russos. 

Em Buenos Aires, ela agora dirige um centro de recreação para crianças russas, que em um dia recente estavam aprendendo a conjugar verbos em espanhol. 

Ela disse: “Nunca quis deixar a Rússia, nunca quis morar no exterior, mas a situação estava muito perigosa”.

Escreva para Ryan Dubé em [email protected] e Samantha Pearson em [email protected]

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