Se correr uma maratona não é sofrimento suficiente para você, confira as ‘Backyard Ultras’
Os competidores dão uma volta de seis quilômetros a cada hora — até que ninguém mais esteja correndo
O novo evento de corrida de longa distância mais badalado do momento mais parece uma pegadinha. O corredor mais rápido nem sempre vence. Não há linha de chegada. E os adultos até comem papinha de bebê.
Eis a “backyard ultra”, ou ultramaratona de quintal. As regras são simples: corra uma volta de 6,7 quilômetros (4,167 milhas) em uma hora. Daí, faça isso de novo e de novo, a cada hora. A corrida continua — às vezes por dias — até que sobre apenas uma pessoa. Não há limite para a duração das corridas.
Corra rápido e você terá mais tempo para comer ou tirar uma soneca, mas também vai se cansar mais rápido. Corra mais lentamente e economizará energia, mas corre o risco de perder o início da próxima volta e ser desclassificado.
A ideia dessa modalidade começou na zona rural do Tennessee, e o formato peculiar desde então se espalhou pelo mundo. As backyard ultras podem ocorrer em fazendas, parques ou em qualquer outro lugar onde alguém consiga traçar um percurso de pouco mais de seis quilômetros.
Bo Shelby estava há 40 horas no Summit Backyard Ultra do ano passado em Marble Falls, no Texas, quando percebeu que apenas outro sujeito ainda corria. Shelby, então com 27 anos e morador de Denver, pensou consigo mesmo: “Oh meu Deus, estou prestes a vencer”.
Na verdade, ele teria de enfrentar mais 16 horas. O outro sujeito era Greg Fall, pai de três filhos, de 42 anos, de Carlsbad, na Califórnia, participante experiente de corridas de 80 e 160 quilômetros.
Como muitos outros ultracorredores, Shelby tinha seu planejamento. Trouxe uma barraca para descansar e um estoque de comida: frango enlatado, macarrão ramen, batatas fritas e pães de mel. Começou a comer papinha de bebê de mirtilo e banana “só porque desce fácil e tem um gosto muito bom”. Mas o alto teor de fibras causou um estufamento desconfortável. “Foi uma estratégia ruim”, afirmou ele.
Por volta do 320º quilômetro, Shelby estava em sua barraca com lágrimas de exaustão e insistindo para o casal de amigos que o apoiava — inclusive massageando seus pés — que não aguentava mais. Eles o convenceram a começar a próxima volta. E assim foi, mas aí ele se sentou em um toco de árvore e ligou para o pai para se queixar. O pai lhe disse que ele poderia desistir depois de terminar a volta em que estava, e que “Você termina o que começa”.
Shelby se recuperou. Completou a volta. Seus amigos tocavam música. Outro mostrou a ele um vídeo do discurso de Mel Gibson em “Coração Valente” e “ficou gritando comigo como um técnico de futebol”.
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Na barraca de Fall, seus pais e esposa o aplaudiram enquanto sua filha de um ano brincava com uma bola de futebol. Quando o dia se transformou em noite e tornou a amanhecer, Fall começou a alucinar. “As pedras estavam se transformando em pessoas”, disse. Mas, perseverou.
“Ele manteve o mesmo ritmo durante toda a corrida”, disse Shelby. “Eu estava tipo: ‘Esse cara é uma máquina’.”
Finalmente, sentindo muita dor na perna, Shelby desistiu. Fall terminou a volta final, como ditam as regras da backyard ultra, e garantiu a vitória. Ele correu quase 390 quilômetros em dois dias e meio.
Nas backyard ultras, homens e mulheres competem no mesmo evento. No Summit Backyard Ultra deste ano, que começou no sábado e terminou na segunda-feira, Megan Smyth, de 40 anos, de Dallas, superou ventanias e se tornou a primeira mulher a vencer a corrida.
A modalidade foi criada em 2011 por um ex-corredor de longa distância, contador aposentado e pedreiro de meio período chamado Gary Cantrell, para trazer amigos e alguns dólares para sua fazenda em Bell Buckle, no Tennessee. Cantrell batizou o evento em homenagem a seu pit bull adotado: “Big Dog’s Backyard Ultra”. A estranha distância 6,7 quilômetros (4,167 milhas) por volta baseou-se em 160 quilômetros (100 milhas) divididos por 24 horas.
O já falecido cão Big Dog agora assiste lá de cima a inúmeras backyard ultras que se espalharam pelos EUA e que chegaram até a Espanha e a Tasmânia.
“É como um sonho”, disse Cantrell, de 70 anos, falando por telefone durante sua caminhada diária de 16 quilômetros. “Sou apenas um velho caipira que vive na floresta.”
Cantrell — mais conhecido como Lazarus Lake, nome que usou em um de seus primeiros endereços de e-mail — também opera as extenuantes Maratonas Barkley. Essa lendária corrida de cinco voltas de mais de 160 quilômetros pelas montanhas do Tennessee atrai alguns dos corredores mais preparados do mundo.
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As backyard ultras, em comparação, são mais atraentes para quem gosta de pegar pesado e para os novatos. No ano passado, em Marble Falls, pai e filha deram duas voltas e pararam, contou o diretor de corrida, Tucker Edwards.
Na maioria das corridas, “Não terminou” é algo que pode envergonhar um competidor. Na backyard ultra, onde 99% dos competidores não terminam, isso é uma conquista. No ano passado, um evento em Long Island, em Nova York, distribuiu ímãs “Não Terminou” para todos os não vencedores, disse o diretor de corrida Mike Petrina, “e eles os colocaram nos carros quando saíram do estacionamento”.
A experiência de Meghan McDonnell, professora de música de 46 anos da área de Columbus, em Ohio, ilustra a loucura da backyard ultra. McDonnell participou de uma delas no sul de Ohio em 2019, percorrendo quase 128 quilômetros em 19 horas. Ela se lembra de receber abraços de apoio de estranhos, mas também de ouvir cachorros latindo ameaçadoramente na escuridão quando anoiteceu.
Com o passar das horas, as dores no corpo ficaram insuportáveis. A certa altura, McDonnell se lembra, “Eu estava tipo ‘Ou faço xixi ou corro mais uma volta’”. Ela tentou fazer as duas coisas, rapidamente saindo da trilha. Logo depois, acabou desistindo, pois a perna doía muito. (Os eventos contam com banheiros químicos, mas em geral eles ficam apenas na linha de partida.)
Embora os campeonatos mundiais de backyard ultra tenham conquistado prestígio (Cantrell promove corridas individuais e por equipes em anos alternados), eles não são exatamente lucrativos para os corredores.
No mês passado, no campeonato de equipes Big Dog’s Backyard Ultra, Megan Eckert, professora de educação especial do ensino médio de 38 anos de Santa Fé, no Novo México, percorreu cerca de 585 quilômetros. São mais de três dias de corrida contínua — aliviados por, segundo ela, um total de duas horas de sono, “no máximo”. A distância deu a Eckert o recorde mundial feminino com 80 quilômetros a mais.
Por seu feito, Eckert não recebeu nem um centavo de prêmio em dinheiro. Na verdade, teve que gastar US$ 250 para participar da competição.
“Nunca fui uma corredora super-rápida de 8 km”, disse ela. “Mas sou muito teimosa e realmente gosto de ver até onde meu corpo vai — e até onde minha mente vai também.”
Escreva para Rachel Bachman em [email protected]
traduzido do inglês por investnews