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Um segundo governo Trump pode refazer — radicalmente — o comércio mundial

As tarifas poderão subir para os níveis mais elevados desde a década de 1930 – e consequências vão desde uma guerra comercial global até um sistema liderado pelos EUA contra a China.

Por Greg Ip The wall street Journal
Publicado em
16 min
traduzido do inglês por investnews

Em seu primeiro mandato como presidente, Donald Trump ressuscitou as tarifas como uma ferramenta de diplomacia econômica, adotando-as regularmente como uma vantagem para garantir novos acordos comerciais com outros países. O resultado foi um sistema de comércio mundial com um pouco mais de atrito, mas que permaneceu praticamente intacto.

Se Trump cumprir o que promete na campanha, seu possível segundo mandato seria radicalmente diferente. Mais do que apenas uma ferramenta de negociação, tarifas mais altas seriam um fim em si mesmas. Segundo estimativas, elas podem atingir seu nível mais alto desde a década de 1930.

No curto prazo, alguns preços nos EUA subiriam e o crescimento poderia desacelerar conforme consumidores e empresas forem se ajustando aos novos impostos sobre produtos importados. O impacto de longo prazo depende crucialmente da retaliação ou não de outros países, e de até que ponto Trump estaria disposto a negociar. O resultado pode ser qualquer coisa, desde uma guerra comercial total até um novo sistema comercial entre os aliados dos EUA unidos por sua frustração coletiva com a China. 

Um novo mandato de Trump pode se basear na suposição de que “o sistema de comércio global do final do século XX não é sustentável”, disse Oren Cass, fundador do American Compass, think tank conservador próximo aos conselheiros de Trump e que apoia o plano tarifário do candidato. “O objetivo aqui não é um tipo de negociação em que todos voltamos a 1995”, quando a Organização Mundial do Comércio ganhou força. Na verdade, é um “reequilíbrio fundamental”.

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Cabe destacar que o consenso de livre comércio que prevaleceu de 1995 até a eleição de Trump em 2016 não vai retornar, mesmo que a vice-presidente Kamala Harris, a candidata democrata, vença. Ela pode aumentar a mistura de tarifas impostas à China durante o primeiro mandato de Trump e o apoio à manufatura promovido pelo presidente Biden. Mas isso representaria mudanças incrementais, enquanto se reeleito, Trump poderia fundamentalmente refazer o sistema de comércio mundial de uma vez só.

Os planos de Trump permanecem envoltos em incertezas. Ele sugeriu uma tarifa geral de 10%, depois mencionou de 10% a 20%, e pelo menos uma vez disse até de 50% a 200%.

Ele propôs uma tarifa de 60% sobre produtos da China, ou talvez mais. Propôs também a reciprocidade, ou tarifas americanas que correspondam às de seus parceiros. Isso deve poupar o México e o Canadá, que, sob o Acordo Estados Unidos-México-Canadá, negociado no primeiro mandato de Trump, não cobram tarifas dos EUA. Mas Trump disse, reservadamente, que os automóveis do México teriam tarifas de 100%. O México não impõe tarifas sobre automóveis fabricados nos EUA.

Em suma, ninguém sabe o que Trump tem em mente. 

Se a tarifa sobre a China for de 60% e de 10% para o resto do mundo, a tarifa média nos EUA, ponderada pelo valor das importações, saltaria de 2,3% em 2023 e 1,5% em 2016 para 17%, de acordo com o banco de investimento Evercore ISI. Isso seria o valor mais alto desde a Grande Depressão, depois que o Congresso aprovou a Lei Tarifária Smoot-Hawley, que desencadeou um aumento global nas barreiras comerciais.

Mercadoria à venda em loja de Boons Mill, Virgínia, EUA, no domingo, 3 de novembro de 2024. Fotógrafo: Al Drago/Bloomberg

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As tarifas dos EUA passariam de uma das mais baixas para uma das mais altas entre as principais economias. Se outros países retaliarem, o aumento das barreiras comerciais globais não teria precedentes modernos, disse Doug Irwin, historiador do comércio do Dartmouth College.

As tarifas mais altas provavelmente existiriam por anos, mesmo que um futuro presidente conclua que são um erro. “Essas coisas são fáceis de impor e difíceis de remover”, disse Irwin. “O projeto de remoção das barreiras comerciais que se acumularam durante a Grande Depressão levou décadas.”

O maior ponto de interrogação que paira sobre os planos de Trump é o quanto ele estaria disposto a reduzir as tarifas em troca de concessões. Durante seu primeiro mandato, conselheiros centristas moderaram seus impulsos mais protecionistas, e ele acabou usando as tarifas para renegociar acordos com parceiros comerciais. 

O Acordo de Livre Comércio da América do Norte se transformou no USMCA, a Coreia do Sul concordou em alterar o Acordo de Livre Comércio Coreia-EUA. O Acordo de Livre Comércio e o Japão reduziram as barreiras aos produtos agrícolas dos EUA. 

Contudo, não está claro se esse seria o modelo em um segundo mandato: Trump e seus conselheiros deram sinais contraditórios. Scott Bessent, ex-diretor de investimentos da Soros Fund Management e atualmente conselheiro de Trump, disse em uma entrevista à Bloomberg em julho que o plano tarifário de Trump não seria implementado de uma só vez: “Seria introduzido gradualmente. E também acho que outros países teriam a oportunidade de abrir seus mercados.”

Robert Lighthizer, que como embaixador comercial foi o autor da estratégia comercial de Trump para o primeiro mandato e que continua sendo um conselheiro influente, disse que o objetivo das tarifas deve ser a eliminação do déficit comercial dos EUA. Isso pode significar altas tarifas indefinidamente, mesmo que outros países garantam concessões. Trump disse que tarifas mais altas arrecadariam dinheiro para possibilitar a redução de outros impostos, sugerindo que ele também as vê como permanentes.  

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Clete Willems, que serviu sob Lighthizer e na Casa Branca de Trump e agora é advogado da Akin Gump, disse que o resultado mais provável seria uma mistura de negociação e, em última análise, tarifas mais altas. 

“Vamos entrar em um ambiente de tarifas mais altas, mas todas as decisões estão abertas à discussão”, disse ele. “Falamos sobre Trump, o homem das tarifas. Não vamos esquecer Trump, o negociador.”

Congresso vs. Casa Branca

No primeiro mandato de Trump, congressistas, particularmente os republicanos, muitas vezes reagiu contra seu protecionismo. Quatro anos depois, o partido se afastou do livre comércio; a plataforma eleitoral deste ano apoiou o plano de tarifas generalizadas de Trump. Se nesta eleição os republicanos garantirem o controle da Casa Branca e do Congresso, eles provavelmente concederão a Trump uma margem de manobra substancial.

Os republicanos também estão ansiosos para estender seu corte de impostos de 2017, pois parte dele expira no final de 2025. As tarifas podem compensar um pouco o custo estimado de US$ 4 trilhões em dez anos. Embora apenas o Congresso possa revisar permanentemente as tarifas, várias leis já dão ao presidente o poder de aumentá-las indefinidamente.

Os republicanos poderiam dizer a si mesmos: “Não tenho que votar pela revisão, pois as tarifas financiam coisas com as quais me importo e, francamente, não são legisladas, então é muito mais fácil de desfazer”, disse Rohit Kumar, ex-assessor do líder republicano no Senado, Mitch McConnell, agora na PwC. Enquanto isso, na CNBC em setembro, o republicano Jason Smith, que preside o principal comitê de impostos e comércio da Câmara, levantou a possibilidade de transformar as tarifas de Trump sobre a China em lei, o que “pode arrecadar muito dinheiro, na casa das centenas de bilhões de dólares”.

Os republicanos estão muito menos entusiasmados com as tarifas para outros países que não a China. Mas estão abertos ao seu uso como moeda de troca em medidas que alguns veem como discriminatórias contra os EUA, como, por exemplo, a taxa de fronteira planejada pela União Europeia sobre o conteúdo de carbono de importações como cimento e aço, impostos mínimos corporativos e talvez impostos sobre valor agregado (impostos sobre compras domésticas, incluindo importações, mas não exportações). 

O ex-presidente dos EUA, Donald Trump, chega para um evento de campanha no Atrium Health Amphitheatre em Macon, Geórgia, EUA, no domingo, 3 de novembro de 2024. Fotógrafo: Christian Monterrosa/Bloomberg

Canadá e México podem ser alvos quando o USMCA for revisado em 2026. A China pode ser pressionada a cumprir os termos do acordo comercial fechado no primeiro mandato de Trump. Países com os quais os EUA não têm déficits comerciais persistentes, como o Reino Unido, podem ser melhor tratados.

“Acho que é uma oportunidade para todos acordarem e perceberem que possuímos todo tipo de ferramentas para trazer as pessoas para a mesa de negociações”, disse o deputado Kevin Hern, republicano de Oklahoma e presidente do Comitê de Estudos Republicanos, grupo influente dos conservadores na Câmara. 

Se os democratas controlarem uma ou ambas as câmaras do Congresso em um segundo mandato de Trump, eles estarão abertos a ações mais duras em relação à China, disse um assessor da Câmara.

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Mas eles se opõem veementemente à tarifa geral de Trump, que Kamala classificou como um imposto nacional sobre vendas. “Faremos tudo o que for necessário para proteger as famílias trabalhadoras de serem atingidas por uma crise econômica, que é o objetivo da expansão do programa tarifário de Trump”, disse o presidente do Comitê de Finanças do Senado, Ron Wyden, democrata do Oregon.

Se podem detê-lo ou não, essa é outra questão. “Eu não preciso do Congresso. Terei o direito de impor [tarifas]”, disse Trump no mês passado. Em seu primeiro mandato, ele usou estatutos existentes destinados a punir práticas comerciais desleais e a proteger a segurança nacional.

Isso pode ser muito gradual se ele garantir um segundo mandato. Em vez disso, Trump poderia recorrer à Lei Internacional de Poderes Econômicos de Emergência, de 1977, destinada a sancionar países e indivíduos vistos como ameaças à segurança nacional, como Irã e Venezuela.

“É rápido e pode ser geral, teoricamente”, disse Greta Peisch, advogada comercial do Wiley Rein, que foi conselheira geral do embaixador comercial dos EUA sob Biden. Este seria um novo uso da lei aberto a contestação judicial, disse ela. Em 2019, Trump ameaçou usá-la para impor tarifas ao México por não impedir a imigração ilegal para os EUA.  

Kamala, se eleita, provavelmente continuaria a agenda comercial de Biden, que mantém tarifas e outras restrições à China, mas poupando amplamente os aliados. 

Ela não é defensora do livre comércio, tendo votado contra o USMCA quando senadora. Um porta-voz disse que Kamala “empregará tarifas direcionadas e estratégicas para apoiar os trabalhadores americanos, fortalecer nossa economia e responsabilizar nossos adversários”, mas não usaria as tarifas mais amplas mencionadas por Trump. 

Questão de retaliação

Em um governo Trump, as consequências econômicas de suas tarifas dependeriam de quão altas elas forem e de os outros decidirem retaliar. As tarifas são um imposto, e os importadores geralmente tentam repassá-las a seus clientes. 

Alguns fatores podem moderar isso. Os importadores podem mudar de fornecedores indo para um país não afetado. Muitas empresas mudaram as operações para o Vietnã e o México para escapar das tarifas do primeiro mandato de Trump sobre a China, aliviando o efeito sobre os preços. A China também permitiu que sua moeda caísse, diluindo ainda mais o efeito.

Para que as tarifas beneficiem os fabricantes nacionais, como Trump pretende, os preços teriam de subir, para incentivar os consumidores a se afastarem das importações e as empresas domésticas a aumentar a produção. 

As tarifas de Trump sobre as importações de aço e alumínio de vários países em 2018 fizeram com que o preço dos metais subisse 2,4% e 1,6%, respectivamente, de acordo com a Comissão de Comércio Internacional, bipartidária. Isso ajudou os produtores domésticos: suas vendas anuais aumentaram US$ 2,8 bilhões. Mas o impacto para as empresas nacionais que usam aço e alumínio foi maior. Sua produção caiu US$ 3,4 bilhões anualmente. 

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Economistas acham que as tarifas mais amplas propostas por Trump aumentariam os preços da mesma forma e, em termos líquidos, prejudicariam o crescimento. Em um relatório recente, o Morgan Stanley estimou que uma tarifa de 60% sobre a China e 10% sobre todos os outros aumentaria os preços ao consumidor em 0,9% e reduziria cumulativamente a produção econômica em 1,4%. Em 2018, um estudo interno do Fed concluiu que um aumento de 10% nas tarifas dos EUA e de todos os seus parceiros comerciais aumentaria a inflação em cerca de 1,5 ponto percentual e reduziria o crescimento econômico em um ponto percentual por um ano. 

Uma vez que os preços e a economia se ajustassem às novas tarifas, o crescimento e a inflação provavelmente retornariam à sua tendência original. Mas, com o tempo, as tarifas também reordenariam os padrões de comércio. De fato, um dos objetivos das tarifas que Trump impôs à China, e Biden sustentou, era a diversificação e o afastamento da China como fornecedora.

Ainda assim, ao impor tarifas a todos, os exportadores dos EUA podem sofrer, em meio a insumos com preços mais altos e possíveis tarifas retaliatórias nos mercados estrangeiros. Os EUA atrairiam menos investimentos destinados a atender ao mercado global, seus exportadores perderiam participação de mercado e o comércio encolheria como proporção do PIB, previu Adam Posen, presidente do Instituto Peterson de Economia Internacional. 

Isso tornaria a China um parceiro comercial mais atraente para alguns países. A América do Sul estaria particularmente madura para tais aberturas, disseram analistas do Morgan Stanley, observando que a China reduziu as restrições anuais às importações do Brasil em cerca de 90% desde 2020.

Trump e seus aliados argumentam que outros países não retaliariam porque precisam do mercado dos EUA mais do que os EUA precisam do deles. 

“Esta é exatamente a história da criação da tarifa Smoot-Hawley”, afirmou Jennifer Hillman, especialista em direito comercial da Universidade de Georgetown. “Havia a presunção de que ninguém ousaria aumentar suas tarifas sobre nós. E o que aconteceu? Todos aumentaram as tarifas.”

No primeiro mandato de Trump, China, União Europeia, Canadá e México retaliaram; Japão e a Coreia do Sul, não. Se a UE for atingida novamente, “eles vão analisar a situação e depois retaliar”, disse Cecilia Malmstrom, que fez exatamente isso como comissária de comércio do órgão executivo da UE durante o primeiro mandato de Trump. Como no primeiro mandato, a UE retaliaria dólar por dólar e procuraria agir com outros países, disse ela. A mensagem seria: “Não queremos uma guerra comercial, mas se você começar, não vamos ficar em silêncio assistindo”.

A OMC foi criada como um árbitro independente para resolver disputas comerciais. Mas sob Trump e Biden, os EUA argumentaram que o mecanismo de solução de controvérsias da OMC estava ultrapassando sua autoridade e se recusando a funcionar. Isso aumenta a perspectiva de um ciclo destrutivo de tarifas e retaliações entre os EUA e seus parceiros comerciais, sem a intervenção de um árbitro internacional.

Um estudo do Instituto Peterson mostrou que os fluxos comerciais podem ser permanentemente reduzidos entre os EUA e os principais parceiros comerciais entre 1% a 4%, dependendo da retaliação.

No entanto, os conselheiros de Trump levantaram outro cenário caso ele seja reeleito: os EUA terão um conjunto de tarifas para a China e um conjunto de tarifas diferente e muito menos severo para aliados que compartilham a desconfiança americana com a China. De fato, mais uma vez isso se tornaria o centro de um sistema comercial entre as democracias orientadas para o mercado, como ocorreu desde a década de 1940 até o final da Guerra Fria.  

A OMC “falhou em evoluir e se modernizar e em lidar com a questão da China”, disse Willems, ex-autoridade da Casa Branca de Trump. “O que tomaria seu lugar? Alguma forma de negociação plurilateral com o G-7” — as sete maiores economias de mercado — “além de alguns aliados centrais, como Austrália e Coréia do Sul, talvez alguns integrantes surpreendentes, como a Costa Rica, que estivessem dispostos a se adaptar a uma agenda ambiciosa, mais orientada para o mercado e voltada para o futuro”. 

Há duas razões pelas quais os aliados dos EUA podem preferir esse cenário ao de uma guerra comercial. Uma é que eles, como os EUA, estão cada vez mais frustrados e preocupados com a China. A China está enviando uma onda crescente de exportações de produtos baratos para seus mercados por meio de uma série de políticas que a OMC não conseguiu conter: desde a supressão do consumo doméstico até o apoio estatal generalizado às maiores empresas nacionais e o roubo de tecnologia.  

“A escala e a magnitude do que a China fez está além do que um sistema baseado em regras consegue enfrentar”, disse Hillman.

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A segunda é que o mundo se tornou mais perigoso desde a última vez que Trump assumiu o cargo, com a invasão da Ucrânia pela Rússia e o comportamento beligerante da China em relação a seus vizinhos. Os aliados na linha de frente, incluindo Japão, Alemanha e Coreia do Sul, precisam do guarda-chuva de segurança dos EUA mais do que nunca e, portanto, podem estar menos inclinados a responder às provocações econômicas de Trump caso reeleito. 

Willems disse: “Há muitos casos na história em que houve tensão com parceiros e aliados, e fomos capazes de superar isso e nos concentrar no quadro geral”.

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