O presidente Luiz Inácio Lula da Silva viajou para a cúpula do Brics, que começou nesta terça-feira (22), para reforçar a proposta de criar o “Sul Global” a partir do conjunto de países em desenvolvimento anteriormente chamados de “Terceiro Mundo”. No entanto, a viagem a Johanesburgo ameaça a votação do arcabouço fiscal, prevista para esta semana.
Lula viajou sem definir a reforma ministerial, o que desagradou os parlamentares do chamado Centrão. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, também está na África do Sul.
Afinal, qual é a importância do encontro de três dias entre líderes do bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul a ponto de esvaziar as lideranças do Executivo de Brasília, colocando em risco a pauta econômica?
Em sua live semanal, realizada diretamente do continente africano, o próprio Lula destacou a relevância do evento. Segundo ele, a intenção é criar algo que nunca existiu: o Sul Global. O termo inclui tanto nações mais pobres quanto mais ricas.
Para tanto, a adesão de novos países é o principal tema na agenda do Brics. Mais de 20 países já manifestaram formalmente interesse em integrar o bloco, como Arábia Saudita, Argentina e Irã. No entanto, ainda não se sabe quantos países vão ingressar. Porém, se houver, será a primeira expansão em uma década, em um sinal do prestígio do grupo.
Formação do Brics: qual era o momento?
O acrônimo foi criado originalmente em 2001 pelo então economista-chefe do Goldman Sachs, Jim O’Neill. O Bric (tijolo em inglês) buscava traçar quais países emergentes tinham potencial de crescimento no novo século e, com isso, oportunidades de investimento, considerando-se dimensão econômica, populacional e geográfica.
Em 2006, os chanceleres dos quatro países originais reuniram-se pela primeira vez em um fórum formal. Três anos depois, após a crise de 2008, acontece a primeira reunião entre chefes de Estado de Brasil, Rússia, Índia e China. Apenas em 2011 a África do Sul foi adicionada, dando à sigla a letra “s”.
Agora, os países que concorrem como fortes candidatos são Emirados Árabes Unidos, Egito e Bangladesh, justamente por se juntarem em 2021 ao Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) – também chamado de “Banco do Brics” e comandado pela ex-presidente Dilma Rousseff desde março deste ano.
Prós e contras
Ainda assim, fica a dúvida sobre o que significa essa possível expansão do bloco em meio a um contexto global complexo.
“As principais razões para a expansão do Brics podem ser atribuídas à intensificação de uma reestruturação de ordem mundial advinda de países do Sul Global, enquanto a China busca se afirmar como um pilar dessa nova ordem”, explica, em artigo, o Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (Opeb) da Universidade Federal do ABC.
Em termos práticos, essa expansão do bloco se traduz em maior uso de moedas locais, com potencial para desafiar o domínio do dólar dos Estados Unidos. “Qualquer expansão do Brics pode determinar a velocidade com que o bloco adota sistemas comerciais e financeiros fora da esfera do dólar”, explica o ING, em relatório.
Aliás, a integração econômica, com a utilização de uma moeda comum nas transações comerciais e fluxos financeiros entre os membros, também está na pauta de discussão. Vale lembrar que no início deste ano, Brasil e Argentina avançaram na ideia de fazer “negócio da China” sem passar pelo dólar.
Mas, embora haja esforços de desdolarização da economia mundial, não há um consenso sobre se a inclusão de novos países seria interessante.
“Parece boa ideia, mas não é – nem para o Brasil, nem para os Brics em conjunto”
Paulo Nogueira Batista Jr., ex-diretor-executivo do FMI
Para o economista Paulo Nogueira Batista Jr., ex-diretor-executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI) entre 2007 e 2015, aumentar o total de países-membros diluiria consideravelmente o peso do Brasil no Brics e, consequentemente, a influência brasileira no bloco. “O mesmo argumento vale para a Rússia, a Índia e a África do Sul”, pondera em artigo recente. “Para a China, não”, emenda.
É preciso combinar
Ao mesmo tempo, também é crescente o receio de que os Brics estejam se reunindo para formar um rival do G7 ou um contraponto ao G20. “Isso poderia minar o poder global do Ocidente, mas alinhar tantos países com diferentes sistemas econômicos e políticos é sempre mais fácil falar do que fazer”, ressalta o estrategista macro do Rabobank, Bas van Geffen, em relatório, citando o projeto europeu como exemplo.
Em sua live nesta terça, Lula negou que o Brics tenha essa intenção. “A gente não quer ser contraponto ao G7, a gente não quer ser contraponto ao G20, a gente não quer ser contraponto aos Estados Unidos, a gente quer se organizar”, afirmou.
De qualquer forma, a complexidade do Brics vai além de questões econômicas e abrange a coesão de seus países-membros, em um momento de maior pressão pela adesão de novos participantes. Desta maneira, as discussões são de ampla divergência e controvérsias, apesar das oportunidades para aprofundar a cooperação.
No caso do Brasil, a dúvida é o atraso na agenda econômica no Congresso Nacional, o que tem sido apontado como um ponto de atenção por especialistas – já que cada país precisa assumir suas devidas responsabilidades, internas e externas. E isso vale, em especial, para a China – vista como o país central no Sul Global desde 2004.
Ou seja, por mais que a proeminência da cúpula do Brics desta semana reflita a ascensão do Sul Global, é preciso ter cautela, segundo especialistas. “Qualquer movimento precipitado pode trazer riscos, intensificar as tensões Norte-Sul e exacerbar confrontos em todo o mundo”, fundador e presidente do Centro para China e Globalização (CCG), Henry Huiyao Wang, em coluna publicada nesta terça no jornal chinês South China Morning Post.
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