A 123Milhas é destaque no noticiário nacional desde o fim do mês passado, chamando a atenção de consumidores, investidores, órgãos públicos que vão desde o Procon e a Justiça, até chegar ao Congresso Nacional. Em cada caso, o impacto é diferente, mas de comum entre eles está a dúvida quanto à viabilidade do modelo de negócios.
Para tanto, é preciso primeiro entender como ocorre a operação dos pacotes promocionais da agência de viagens. De forma simplificada, a 123Milhas fazia uma previsão dos preços de passagens e hospedagens para, então, oferecer valores abaixo do mercado, comprando milhas em programas de fidelidade de companhias aéreas para revender a interessados.
“A empresa adquire milhas de clientes que não pretendem utilizá-las, e as utiliza para emitir passagens aéreas com preços mais baixos do que os praticados pelas companhias aéreas, oferecendo também pacotes de viagem e hospedagem”, explica o especialista em reestruturação empresarial, Estevão Seccatto.
No entanto, as viagens e estadias não têm data marcada, ficando a cargo da empresa garimpar os dias de voo e acomodações mais baratos possíveis. Foi aí que os problemas da 123Milhas começaram, pois a empresa parou de encontrar opções na faixa de preços cobrada dos clientes.
“Eles fizeram promoções para vender passagem, pacote, além de 12 meses, por preços muito abaixo do que companhias aéreas e hotéis comercializam. Então, não conseguiam comprar o produto no valor que estavam vendendo e entregar para o cliente”, explica o analista de investimentos e chefe de análise fundamentalista da Quantzed, Vitorio Galindo.
Não é jogo de apostas
Esse foi o erro da 123Milhas. “A empresa ‘apostou’ que as passagens aéreas, após 2020, não iriam subir”, observa o estrategista em finanças Júlio Damião. Em uma publicação no Linkedin, que já acumula mais de um milhão de impressões (vezes em que a publicação é exibida na tela), o especialista aconselha: “Nunca ‘aposte’ no que o mercado vai fazer”.
Para ele, a 123Milhas deveria ter interrompido a linha promocional Programa Promo 123 já no segundo trimestre de 2021, quando a procura por viagens aumentou devido à flexibilização das medidas adotadas na pandemia. Como resultado, as companhias aéreas passaram a exigir mais milhas para emitir passagens.
“Para o modelo de negócios deles funcionar, teria que dar tudo certo. Eles apostaram no cenário perfeito, apostaram que as passagens não iam subir, mas quando veio a alta, não fizeram nada”, ressalta Damião.
Em certo momento, por não haver qualquer “trava” dessas operações de compra e venda de passagens/milhas, o descasamento de caixa da 123Milhas atingiu R$ 2,3 bilhões. “Em negócios, se chama ‘não fazer hedge’ [proteção]”, explica o especialista.
Em termos futebolísticos, “esqueceram de combinar com os russos”, brinca, em alusão à pergunta feita por Garrincha na Copa do Mundo de 1958 antes do jogo entre Brasil e União Soviética.
Já no mundo das finanças, isso se chama especulação. “Eles faziam um trade [troca], uma arbitragem”, avalia Galindo, da Quantzed.
Mas pode ser pirâmide
Por isso, a crise da 123Milhas levantou suspeitas de esquema de pirâmide financeira. Tanto que os sócios da empresa foram convocados para depor na CPI das Pirâmides Financeiras. Porém, nem mesmo entre os especialistas consultados pelo InvestNews há um consenso.
De um lado, o Galindo não tem dúvida: “Era uma pirâmide, era um esquema, um negócio que, economicamente, não faz sentido. Ninguém produz nada para vender abaixo do custo e ficar queimando dinheiro ao longo do tempo. Foi isso que fez eles entrarem em crise”, avalia o especialista em investimentos.
Já Seccatto não descarta a existência de indícios de que o modelo de negócios da 123Milhas seja considerado uma pirâmide. “Existe a suspeita de que a empresa dependia de novos membros para pagar os retornos prometidos aos antigo. Ou seja, precisava atrair novos clientes para pagarem a conta”, observa o especialista em reestruturação empresarial.
Ele cita declarações do presidente da CPI, deputado Áureo Ribeiro, que levantam preocupações sobre a sustentabilidade e transparência do modelo de negócios da empresa. Além disso, o especialista lembra que se trata de um mercado não regulamentado. “Entretanto, é interessante aguardar o resultado da CPI”, pondera.
Já Damião é taxativo: “Não há nada que comprove que eles estavam agindo de má fé”. Segundo o estrategista em finanças, não se trata de um esquema Ponzi, de pirâmide financeira. “Seria até irresponsável afirmar isso agora, sem nenhuma prova”. Para ele, o que levou à situação da empresa foram decisões erradas de negócios.
Azar de um…
Por mais que seja um modelo de negócios arriscado, não significa que esteja fadado ao fracasso. “Em qualquer tamanho de negócio, priorize a margem, fluxo de caixa operacional positivo, percentual de endividamento e ciclo financeiro equilibrado. Todo o resto é consequência disso”, explica Damião, na postagem na rede social.
Portanto, para ele o que a crise da 123Milhas evidencia é má gestão, que levou a dificuldades financeiras, com a empresa não conseguindo honrar os compromissos.
“Como várias startups que acompanhamos, a empresa também pensou exclusivamente na escalabilidade do negócio e em receitas, renegando a exposição de caixa”
especialista em reestruturação empresarial, Estevão Seccatto.
O que houve foi então uma decisão errada de negócio. “A 123Milhas é o reflexo das fintechs que quebraram, pensaram no negócio de forma escalável, sem priorizar margem e quanto mais vender sem margem, mais rápido vai quebrar. Nenhum modelo de negócio se sustenta com prejuízos”, completa Damião.
Contudo, existem pontos positivos no modelo de negócio de viagens super baratas, como o da 123Milhas. “Estão diretamente ligados à escalabilidade de receitas, já que preços muito baixos podem tornar as viagens acessíveis para pessoas que normalmente não poderiam pagar por elas. Há a possibilidade de viajar com mais frequência, já que os preços são mais baixos, o que fomenta o turismo e pode beneficiar a economia local”, enumera Seccatto.
…Sorte de outros
Por isso, apesar da crise da 123Milhas ter elevado a desconfiança quanto ao risco de surgirem outras empresas neste segmento com problemas, o episódio também trouxe oportunidade para as demais operadoras capturarem clientes. Afinal, no fim, prevalece a lei da oferta e da procura, e é a que rege o mercado.
A CVC (CVCB3), por exemplo, ficou em evidência. Havia a chance de maior fatia no mercado. “Porém, a CVC acabou perdendo essa corrida e ficou com apenas 20% desta demanda, enquanto a Decolar abocanhou quase 65%”, observa Caio Canez de Castro, especialista em mercado de capitais e sócio da GT Capital.
Já o analista da Quantzed lembra que a CVC compete em um nicho de público diferente, focado em consumidores que não usam a internet para comprar pacotes. “É um público mais conservador, que busca uma marca de referência”, explica Galindo.
Aliás, o surgimento das plataformas online impactou o desempenho operacional da CVC. Isso acabou acabou distorcendo os preços e a competição do setor de viagens, afetando até as companhias aéreas. Agora, empresas como Gol (GOLL4), Azul (AZUL4) e Latam devem ser beneficiadas, com mais pessoas comprando direto dos sites das companhias.
Veja também
- Black Friday 2024: Viagem de Cruzeiro tem desconto que passa de 45%; veja dicas
- Hospedagem cara em Nova York? Entenda como a briga da cidade com o Airbnb afeta sua viagem
- Das Olimpíadas à Taylor Swift: viajar para ver esportes e shows está virando uma indústria trilionária
- Turistas estão evitando os hotéis mais caros de Paris à medida que as Olimpíadas se aproximam
- Turismo: dólar afeta decisão de compra até dos mais ricos