Nem o juro alto, muito menos a volatilidade do mercado global. O que preocupa a Embraer é o mercado de trabalho. Contrariando as expectativas, ele está bastante aquecido no Brasil. E com um problema: “Falta mão de obra de qualidade”, disse o CFO da fabricante de aeronaves, Antonio Carlos Garcia, num evento realizado pela agência de classificação de risco Moody’s, em agosto. “A gente está treinando profissionais hoje para produzir avião no ano que vem.”
A dificuldade de encontrar profissionais qualificados, especialmente engenheiros e técnicos, não é exclusividade da Embraer. Indústrias de diferentes áreas enfrentam o desafio de encontrar ou reter seus colaboradores, especialmente aqueles que atuam no core do negócio.
O assunto ganhou tanta relevância que chegou ao Banco Central. As atas que explicam as decisões sobre juros mostram: o aquecimento do mercado de trabalho se tornou uma fonte de preocupação, que pode contribuir para uma nova elevação da taxa Selic. Claro que ter mais emprego e renda é uma boa notícia. O problema é que o país não se preparou na última década para lidar com esse crescimento sem que ele gere inflação.
A falta de mão de obra especializada se explica, em parte, pela volta das concessões, tanto federais quanto estaduais. Esse fenômeno abre caminho para investimentos em obras de saneamento, ferrovias, estradas e aeroportos – o que aquece a demanda por profissionais qualificados; e diminui a oferta desse “produto” na praça.
Também existem atividades relativamente novas surgindo. É o que acontece, por exemplo, no setor elétrico, impulsionado por dois motores principais: a transição para matrizes mais limpas e o mercado livre de energia, que chegará ao varejo no ano que vem.
Mas não é só isso. Temos aí um problema que começou há uma década.
Nos últimos 10 anos, o mercado para engenheiros de diferentes especialidades ficou restrito: menos vagas e salários muito menores. Isso aconteceu por causa da recessão que o país enfrentou entre 2015 e 2016 e que inibiu o avanço da indústria. Quadro agravado pela crise das grandes empreiteiras implicadas na Operação Lava-Jato, que começou em março de 2014.
Nesse meio tempo, muita gente que se formou em engenharia foi buscar áreas de trabalho com melhor remuneração – como o mercado financeiro, que absorveu boa parte dessa turma que venceu as disciplinas de Cálculo 1, 2, 3 e 4.
E no futuro próximo o problema tende a se agravar.
Um levantamento feito pelo InvestNews mostra que, entre 2012 e 2022, o número de ingressantes em faculdades de engenharia civil caiu 28%. O tombo foi de 35% no caso de engenharia física e química.
Não bastasse esse cenário, a pandemia, que forçou o ensino à distância de uma hora para a outra, agravou ainda mais o quadro. A consequência foi uma espécie de “apagão de talentos”, na definição de Cristiana Gomes, vice-presidente de Gente, Gestão e Sustentabilidade da Atvos, do setor sucroenergético:
“Se tivesse o poder de criar uma usina em um passe de mágica, eu não teria engenheiros e gerentes para colocá-la em funcionamento.”
cristiana Gomes, da Atvos
A natureza da Atvos potencializa os efeitos do mercado de trabalho aquecido. Além de produzir energia limpa, setor em que a concorrência é crescente – inclusive na busca por profissionais –, as usinas da companhia ficam afastadas dos grandes centros, distribuídas entre os estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e o interior de São Paulo. É muito mais difícil atrair profissionais para esses lugares, explica Cristiana.
A FESA Group, empresa de recrutamento e seleção de executivos, vem acompanhando o aquecimento do mercado de trabalho no setor industrial. Tanto que, em 2023, a receita da empresa cresceu 50% em relação a 2022.
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A vice-presidente de indústria e infraestrutura da empresa, Marcela Cruz Mendonça, diz que a falta de mão de obra não está espalhada pela indústria como um todo. Concentra-se em setores específicos. E o de energia, sem dúvida, é um dos carros-chefes: o faturamento da FESA com a busca de executivos para o setor de cresceu 260% no ano passado.
“Tem muita coisa acontecendo por causa da onda de transição energética e poucas pessoas com conhecimento técnico”, diz. Com menos oferta de profissionais do que demanda, muitas empresas têm buscado engenheiros ou técnicos de setores correlatos: para trabalhar em projetos de hidrogênio verde, por exemplo, chamam profissionais vindos do setor de óleo e gás.
“Existem hoje novas funções e novos setores, e não houve formação de profissionais para eles.”
Marcela Cruz Mendonça, da Fesa
Um bom exemplo é o que ocorre nas distribuidoras de energia. Essas empresas precisam montar times comerciais para atender clientes de varejo, que terão acesso ao mercado livre de energia a partir do ano que vem. E muitas estão contratando profissionais do setor de telecomunicações, já que ali a venda de serviços para a pessoa física sempre foi estratégica. O problema, Marcela diz, é investir tempo no treinamento dessas pessoas que vêm de outros setores.
Pleno emprego? Ainda não é por aí
É inegável que a indústria vive um momento de mercado de trabalho aquecido. Mas esse é um fenômeno concentrado em alguns setores, que nem de longe indica um cenário de “pleno emprego”, afirma o economista-chefe da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Igor Rocha. Ele quer dizer o seguinte: diferentemente do que se viu no início dos anos 2010, o país não sofre hoje de uma ausência generalizada de profissionais.
“Não é uma situação crítica como aquela, que se viu em 2010, 2011. Mas há um aquecimento do mercado de trabalho em alguns segmentos, como o de veículos pesados, linha branca e construção civil.”
Igor Rocha, da fiesp
Em 2010, lembra o economista, o PIB do Brasil cresceu 7,5%. “Mas nos últimos 10 anos anos, o crescimento foi de 1% ao ano, em média”, diz. Os números confirmam que foi a dinâmica econômica fraca da última década que impediu a formação de determinadas classes de profissionais – como os engenheiros. O baixo crescimento diminuiu investimentos, esfriou a procura por profissionais e, portanto, achatou os salários.
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A retomada atual do mercado de trabalho começa a inverter esse ciclo. Por consequência dessa relação apertada de oferta e demanda, os salários para algumas categorias de profissionais já voltaram a subir. Segundo Marcela, da FESA, é possível dizer que, no setor de construção civil, eles voltaram para os níveis pré-Lava Jato.
Na construção civil, isso vale não só para engenheiros e técnicos, mas também para posições de gestão. “É um setor que opera com margens apertadas. Precisa de muita gestão e controle. E faltam bons gestores”, diz. Aliás, outro efeito dessa carência de mão de obra especializada tem gerado é a contratação de pessoas “não tão bem preparadas” para assumir determinadas funções, afirma a VP da FESA Group.
Diante disso, o caminho da formação de profissionais é quase obrigatório para boa parte das indústrias. A Aura Minerals, mineradora com foco na exploração, desenvolvimento e operação de projetos de ouro, cobre e outros metais nas Américas, aumentou o investimento nesses programas quando viu a “luz vermelha” da falta de profissionais se acender há cerca de cinco anos.
A head de Pessoas, ESG e Comunicação da Aura Minerals, da Aura, Isabela Dumont, explica que a companhia precisa, por exemplo, de engenheiros de minas e geólogos para operar – mão de obra super especializada. E sentiu em cheio a concorrência por esses profissionais quando a exploração de lítio ganhou força, há alguns anos, sob impacto do avanço da indústria dos carros elétricos. “O boom do lítio já passou, mas a gente conseguiu evoluir nossos processos de formação e retenção para enfrentar essa concorrência”, diz.
O setor de tecnologia é outro que contribui para o aquecimento do mercado de trabalho. A AWS (Amazon Web Services) anunciou nesta quarta-feira, 11, um investimento de R$ 10,1 bilhões (US$ 1,8 bilhão) para a expansão de sua infraestrutura de data centers no Brasil até 2034. E, junto com o anúncio, informou que vai manter programas de treinamento para qualificar a força de trabalho em computação em nuvem. Desde 2017, a empresa capacitou mais de dois milhões de pessoas na América Latina, sendo 800 mil delas no Brasil.
O problema também chega à base
A construtora Tenda já está super acostumada aos altos e baixos do mercado de trabalho. Segundo Daniela Ferrari, diretora de relações institucionais, o mercado imobiliário acompanha de perto as oscilações da economia. No caso da Tenda, que atua exclusivamente no segmento atendido pelas faixas 1 e 2 do programa Minha Casa Minha Vida, a política específica de cada governo para o programa habitacional é ainda mais determinante.
“O mercado imobiliário é cíclico, é da natureza do setor. Hoje, estamos vivendo um período aquecido, mas sabemos que é uma oscilação natural.”
Daniela Ferrari, da tenda
Para lidar com isso, a companhia investiu em aumentar o grau de industrialização nos processos da companhia. Isso reduz a dependência de mão de obra, que representa 40% do custo total do empreendimento.
Além disso, a empresa mantém alguns programas de formação e recrutamento alternativo – 8% da força de trabalho hoje é composta por refugiados, boa parte deles vindos da Venezuela. Mulheres também estão sendo incorporadas ao trabalho no canteiro de obras. Além disso, a empresa mantém uma fábrica-escola, de onde vêm boa parte dos “oficiais”, que são os trabalhadores especialistas em determinadas funções dentro da obra.
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