Quando a MRV Engenharia (MRVE3) abriu o capital na B3 em julho de 2007, captando R$ 1,2 bilhão de uma só vez, uma pedra apareceu no caminho de expansão planejado pela construtora mineira. “A gente tinha muita dificuldade de ter trabalhadores qualificados naquele período de 2007, 2008”, relembra José Luiz Esteves da Fonseca, gestor executivo de Sustentabilidade e Relações Institucionais da empresa.
Na época, ele atuava como engenheiro de obras em um país onde um em cada dez brasileiros com 15 anos ou mais não sabia ler e escrever – eram 9,6% de todos os adultos em 2010, segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E a construção civil “tem essa característica de absorver o primeiro emprego de pessoas não qualificadas”, explica Fonseca.
A dificuldade levou a MRV a tomar medidas e Fonseca abraçou o projeto. Em 2011, ela abriu suas primeiras “escolinhas”, um espaço dentro dos canteiros de obras onde os funcionários poderiam ter aulas. A iniciativa também faz parte da estratégia de muitas das grandes construtoras do país, já que só o setor de construção civil ainda emprega cerca de 12,5 mil trabalhadores analfabetos.
Hoje, o projeto segue de pé, com o nome de Escola Nota 10, graças aos bons resultados.
“O que a gente tem mostrado é que, se essa pessoa consegue entender e interpretar o que você está explicando em termos de regras de execução, se ele consegue entender uma regulamentação trabalhista de prevenção, você tem uma redução de acidente de trabalho, e já diminui um pouco do absenteísmo”, explica Fonseca. Treinamentos temáticos como a prevenção à dengue, continua ele, reduzem o índice de atestados médicos.
Mas maior benefício tangível para a produtividade está na redução da rotatividade de funcionários, que é bastante acentuada no setor da construção civil. “Se você qualifica, com certeza a produtividade dele aumenta, e eles têm uma permanência.”
Produtividade estagnada
Essa tentativa de melhorar a produtividade por meio da escolaridade é um desafio que, nacionalmente, o Brasil ainda não conseguiu superar.
O valor da produtividade por hora trabalhada, por exemplo, segue estagnado há mais de uma década, de acordo com um indicador calculado anualmente pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Os dados até 2023, atualizados no início de maio, mostram que, desde 2010, o resultado tem oscilado dentro de um patamar entre 20% e 30% acima do valor de referência de 1981, do início da série histórica. Em 40 anos, não foi possível avançar nem um terço.
Enquanto isso, a produtividade brasileira vai ficando para trás em relação a economias de alguns países vizinhos ou com características semelhantes de território e população.
Considerando o Produto Interno Bruto (PIB) por hora trabalhada, calculado a partir da riqueza gerada, dividida pela quantidade de horas trabalhadas no ano por pessoa ocupada e o total de trabalhadores, o país ficou no patamar de US$ 19,2 em 2019, segundo os dados mais recentes analisados pelo do projeto Our World in Data (OWID), da ONG britânica Global Change Data Lab.
A comparação considera a inflação no período e o poder de paridade de compra (PPP) entre os países, usando os preços relativos a 2017.
Uma análise dos dados do mesmo ano disponíveis para 66 países mostra que o Brasil ficou na posição 48 (compare no mapa abaixo).
Uma comparação da evolução do indicador em 20 anos mostra que o Brasil registrou aumento de 40%. Junto com a Argentina, foi o pior resultado entre 11 países comparados. A diferença é que, em 2019, o Brasil ainda estava em um patamar abaixo do obtido pela Argentina em 1990:
Universalização escolar tardia
Fernando de Holanda Barbosa Filho, pesquisador sênior da área de Economia Aplicada do FGV IBRE, e um dos autores do indicador anual de produtividade, explica que os resultados nacionais refletem um atraso de décadas na educação. “O Brasil universalizou a educação muito tarde, apenas na década de 1990 conseguimos colocar todas as crianças no colégio. Quer dizer, a gente chamou de universalizar, mas não é só colocar a criança no colégio.”
Para Francisco Soares, pesquisador na Diretoria de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais (DGPE), também da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o esforço de colocar todas as crianças na escola é positivo, mas ainda é preciso garantir que todas elas recebam na sala de aula o ensino adequado.
“A produtividade do trabalhador brasileiro é baixa também porque a qualidade da educação básica brasileira é muito ruim”, resume ele.
Além de olhar apenas para as próximas gerações, o resultado da universalização tardia ainda se reflete no analfabetismo entre adultos. Desde 2010, ele caiu de 9,6% para 7%, segundo dados do Censo Demográfico 2022 divulgados pelo IBGE na manhã desta sexta-feira (17).
Isso ainda representa um universo de 11,4 milhões de pessoas, de acordo com o IBGE. Dessas, 6,9 milhões (61%) têm entre 15 e 64 anos, ou seja, fazem parte da população economicamente ativa.
Gerson Silva Coelho, pedreiro de 54 anos da MRV Engenharia, ainda está dentro dessa estatística, embora esteja no processo de aprender habilidades como ler esta reportagem. A primeira vez em que ele pisou em uma sala de aula como aluno foi em 2013 na “Escola Bogotá”, como os alunos batizaram o espaço educacional que a empresa implantou no canteiro de obras do que hoje é o condomínio Residencial Bogotá, em Bauru, no Interior de São Paulo.
Coelho chegara à cidade naquele mesmo ano, vindo da zona rural de Planaltino, município a cerca de 320 km de Salvador.
Quando criança, ele foi obrigado a trabalhar na fazenda para ajudar o pai. Já os filhos, porque nasceram em outra época, tiveram outro destino, mesmo vivendo na roça. “O prefeito botava o ônibus para buscar [as crianças] para estudar na cidade.”
Quando desembarcou em Bauru, ele trazia na mala a vontade de aproveitar melhores oportunidades de emprego e alguns truques para cumprir tarefas simples, como pedir para os filhos lerem bilhetes ou pedir para um colega copiar no papel o número da linha de ônibus.
Logo ele encontrou emprego em uma das empresas terceirizadas da MRV Engenharia, mas depois acabou contratado diretamente por ela, e já participou de diversos módulos educacionais.
“Aprendi todas as letras, conta eu sei bastante fazer. Só montar palavra que eu ainda não sei, explicar a frase. Só falta eu aprender a ler”, comemora ele. Por enquanto, ainda apenas por ligações telefônicas ou áudios de WhatsApp, mas na experiência de em breve conseguir ler e escrever suas próprias mensagens.
Décadas de defasagem
Assim como Gerson, o Brasil já apresenta décadas de defasagem na tarefa de erradicar o analfabetismo. Em 1940, apenas 44% dos brasileiros sabiam ler. O país levou mais de 60 anos para dobrar essa proporção (no ano 2000, a taxa subiu para 86,4%). Em 2010, chegou a 90,4% e, agora, a 93%, um avanço de apenas 2,6 pontos percentuais em 12 anos.
Para efeito de comparação, dados do OWID mostram como a China, que no início dos anos 1980 tinha a taxa menor que a brasileira, atingiu o patamar de 90% no ano 2000 e seguiu subindo até superar os 95% em 2010.
A Argentina atingiu patamar de 94% no início dos anos 1980. Em 1985, o Uruguai já ostentava a marca de 95% dos adultos alfabetizados, e o Chile, mais atrasado, chegou a 94% em 1992. Trinta anos depois, o Brasil ainda não chegou lá.
Os Estados Unidos estão nesse patamar há um século, desde 1920, e os primeiros dados disponíveis para a Rússia, de 1989, após a queda do Muro de Berlim, mostram que 98% da população adulta sabia ler e escrever.
Considerando o restante dos países dos Brics, apenas Índia tem patamar inferior ao brasileiro (76,3%), e a África do Sul está com taxa variando entre 90% e 95%, segundo os dados mais recentes.
Escolarizar e qualificar
“O mau desempenho educacional brasileiro durante décadas certamente é um problema que nos assombra”, explica Fernando, do IBRE da FGV, para quem o próprio acesso ao mercado de trabalho já fica comprometido pela falta de habilidades básicas.
Dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) mais recente mostram que a maioria dos analfabetos está excluída do mercado de trabalho. Em 2022, menos 190 mil pessoas que declaravam não saber ler e escrever tinham algum vínculo empregatício, de um total de mais de 52 milhões de trabalhadores.
Olhando por setor produtivo, alguns acabam tendo a presença de analfabetos superdimensionada. É o caso da construção civil, que respondia por 4,2% do total de trabalhadores, mas concentrava 6,7% dos trabalhadores que não sabiam ler e escrever.
O maior grupo absoluto de analfabetos (35%) está no setor de serviços, que concentra mais da metade (56%) de todos os ocupados.
Sucesso no combate à evasão
Na MRV, José Luiz Fonseca tem colecionado histórias de como a alfabetização tem gerado novas demandas dentro do canteiro de obras, como as provas de certificação e cursos de qualificação.
A meta agora é ter, até 2030, todos os trabalhadores sabendo pelo menos ler e escrever. Em 2022, eles eram 5% dos quase 19 mil trabalhadores e 6 mil terceirizados, embora o total de pessoas que “sabem ler com certa dificuldade e pouca interpretação” chegue a 43%, segundo o controle interno da empresa.
Para chegar lá, uma das medidas foi reduzir a evasão ao oferecer as aulas durante o horário de trabalho dos estudantes. “A pessoa já tinha trabalhado o dia inteiro, estava cansada, acordava de madrugada. Chegava no final do dia e ela não tinha mais pique para estudar”, disse ele. Ao todo, a empresa paga por 90 minutos de aulas, três dias por semana.
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