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Economia

‘Imposto para milionários’ atingiria 15 mil pequenas empresas adeptas do Simples  

No total, 115 mil pessoas que tiram mais de R$ 1 milhão por ano apenas com dividendos seriam os mais afetados

Ilustração: João Brito

One for you/nineteen for me…“, diz a letra de “Taxman”, dos Beatles. O personagem da música, composta por George Harrison em 1966, é um coletor de impostos. “Um para você, dezenove para mim”, ele determina. 

É uma referência ao imposto sobre grandes fortunas que vigorava no Reino Unido da época – 95% dos ganhos que ultrapassassem um certo patamar ficavam com o governo. E George, um recém milionário de 23 anos, não ficou nada contente. Tanto que seu personagem também diz, com ares de vilão Shakesperiano: “Se os 5% que sobraram te parecem pouco; agradeça por eu não ter levado tudo”.

Agora o governo daqui planeja algo que pode inspirar músicas de protesto parecidas, ainda que não planeje algo tão draconiano. Estamos falando do “imposto mínimo” para quem tira a partir de R$ 1 milhão por ano. 

A questão: pelos dados do IR de 2022, o mais recente disponível, 307 mil brasileiros declararam um ganho de mais de R$ 1 milhão no ano. Boa parte desse pessoal tem fontes de renda isentas de impostos – como dividendos e cotas de fundos imobiliários.

Até aí, normal. O problema, para o governo, é que uma parte desse clube está totalmente isenta. Desses 307 mil, 115 mil tiraram R$ 1 milhão ou mais apenas com dividendos de empresas – sem pagar imposto sobre esses ganhos.

Caso você seja um feliz proprietário de 0,064% das ações da WEG, por exemplo, recebeu R$ 1 milhão em dividendos da fabricante de motores elétricos; e não pagou um real de tributo – houve outros R$ 554 milhões em juros sobre capital próprio (JCP); mais aí não conta, já que esse é um provento tributado.

5,3 milhões de brasileiros declararam o recebimento de dividendos no IR de 2022 – de acordo com um levantamento do economista Sérgio Gobetti, pesquisador do Ipea e ex-secretário de Política Fiscal do Ministério da Fazenda. Essa é a base de dados mais recente. No total, essas pessoas informaram o recebimento de R$ 859 bilhões em proventos. Quase metade do bolo, R$ 403 bi, veio do seleto grupo dos 115 mil – os que receberam mais de R$ 1 milhão só em dividendos.

LEIA MAIS: Brasil é um dos únicos países que não tributam dividendos. Há espaço para começar

Um imposto de 15% (igual ao dos “ganhos de capital”) só sobre esses R$ 403 bilhões que ficaram isentos já daria R$ 60 bilhões. Seria mais do que o suficiente para bancar a isenção de IR a quem ganha até R$ 5 mil – proposta que Lula toca em paralelo, e que tiraria até R$ 45 bilhões dos cofres públicos. Daí o olho grande do governo sobre os ganhos com dividendos. 

Claro que acionistas graúdos de mega empresas respondem por uma parte considerável dessas 115 mil pessoas. Mas a maior fonte de dividendos do país, veja só, não são as grandes companhias. As empresas médias, com faturamento de até R$ 78 milhões por ano, respondem pela fatia mais grossa: R$ 350 bilhões no IR de 2022. E elas não estão na bolsa.

As que estão, e suas pares de grande porte com capital fechado, foram responsáveis por R$ 257 bilhões em dividendos (mais um extra de R$ 29,7 bilhões em JCP, só para constar). Dá só 30% do total.

Já as pequenas, com receita de até R$ 4,8 milhões, geraram um montante em dividendos quase tão expressivo quanto os titãs da B3: R$ 222,5 bilhões. Veja aqui as fatias que formaram o bolo de R$ 859 bilhões em proventos:

Aqui vale uma pausa. Para boa parte das pessoas, a palavra “dividendo” só se refere a proventos pagos por empresas de capital aberto aos acionistas. Mas não é só isso. O termo também se aplica ao rendimento de qualquer pessoa que trabalhe como PJ, em vez de CLT. 

Quem trabalha como CNPJ praticamente só paga impostos na pessoa jurídica. E com as conhecidas vantagens tributárias. Sobre um salário CLT, todos os ganhos acima de R$ 4,6 mil são tributados em 27,5%. Em cima de um “salário PJ”, o comum é que mal passe de 10%.

Empresas pequenas, médias e grandes vivem sob regimes diferentes de tributação. As que faturam mais de R$ 78 milhões por ano pagam 34% sobre o lucro. Trata-se de uma tarifa alta na comparação com outros países – a média nos 38 membros da OCDE é de 23,6%.

Quase todos os países do mundo tributam dividendos. E com força: 25% na média dos países da OCDE. O redondo 0% do Brasil é uma exceção gritante.

Quem defende a continuidade da isenção, de qualquer forma, evoca o nosso tributo fora da curva na pessoa jurídica. Colocar outra taxa sobre a física, por esse argumento, configuraria uma bitributação abusiva. Nesta outra reportagem do InvestNews, mergulhamos na discussão, com mais dados. 

Porque o assunto central aqui é outro: o fato de que 68% dos dividendos vieram de pequenas e médias empresas, que já contam com descontos expressivos na tributação. 

As companhias médias, aquelas com faturamento até R$ 78 milhões, ficam sob o regime de “lucro presumido” (mais amigável que o de “lucro real”, das grandes). Sob essas regras a tributação pode ficar abaixo de 20%. Ou seja: haveria uma manga razoável para taxar os dividendos que os sócios recebem na pessoa física. Mais ainda se essa tributação restringir-se a quem tira mais de R$ 1 milhão ao ano.

Vale o mesmo para as pequenas, as que faturam até R$ 4,8 milhões. O regime de taxação ali é o do Simples Nacional – que pode ficar em menos de 10%, dependendo do caso. 

Só que mesmo nessa faixa há quem tire mais de um milhão em lucro limpo. No IR de 2022, foram 15 mil pessoas – 5% do total. Entram aí profissionais liberais autônomos e funcionários que ocupam altos cargos em empresas e recebem como pessoa jurídica.    

“Difícil encontrar nesse grupo quem tenha comércio ou indústria. O lucro que sobra não chega a isso. Mas nos serviços tem muita gente”, diz Sérgio Gobetti. “O advogado, o médico, o PJ… Eles nadam de braçada. O custo pode ser um aluguel, secretária, mas quase todo o faturamento vira lucro.”

A tendência, então, é a de que o Leão avance sobre esse público. Mas é recomendável que não vá com muita sede ao pote. No Reino Unido, os impostos sobre grandes fortunas criaram distorções. Boa parte do topo da pirâmide mudou de domicílio fiscal – e a prática de morder 95% (às vezes mais) da renda deixou de existir.

Dos tributos mais pesados por lá, restou o imposto sobre heranças, de 40%. George Harrison, escaldado, livrou a família dessa. Morto em 2001, deixou sua fortuna de 99 milhões de libras à cargo de um trust – uma companhia de investimentos, orientada a transferir dinheiro aos herdeiros sempre que eles precisassem. Com esse artifício, o imposto sobre herança não se aplica. George 1 X 0 Taxman.

George Harrison, em 1965, na época em que começou a incomodar-se seriamente com o imposto sobre grandes fortunas que vigorava no Reino Unido. Foto: David Redfern/Redferns/Getty

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