Todo mundo conhecia a cantora, Gal Costa. Mas poucos sabiam sobre a intimidade de Maria da Graça Costa Penna Burgos. A voz de clássicos como ‘Baby’, ‘Meu nome é Gal’, ‘Vaca Profana’, ‘Chuva de Prata’, ‘Vapor Barato’ e ‘Meu Bem, Meu Mal’ saiu de cena aos 77 anos, dos quais 57 foram dedicados à música.

Nascida em Salvador, Gal morreu em casa, na cidade de São Paulo, em 9 de novembro de 2022 após sofrer um infarto agudo do miocárdio. Mas ela já travava uma luta silenciosa contra um câncer de cabeça e pescoço, também citado em sua certidão de óbito.

Ela deixou um filho, Gabriel Burgos, que na época de sua morte tinha 17 anos. O laço entre Gal e Gabriel já era conhecido. Mas uma segunda relação só foi descoberta do grande público e da imprensa quando o espólio de Gal entrou no alvo de uma briga judicial.

A disputa pela herança de Gal Costa, uma das maiores cantoras do Brasil, é tema da 3ª reportagem do Especial Herança publicado nesta semana pelo InvestNews. Os casos de Mussum e Zagallo já foram retratados na série.

Início da disputa

Os desentendimentos começam quando Wilma Petrillo, 74, ex-empresária de Gal, foi à Justiça para provar ter uma união estável com a cantora, condição necessária para ela obter o status de herdeira de parte dos bens deixados pela artista. Esse movimento de Wilma desencadeou uma briga pública com Gabriel, com diferentes acusações de ambos os lados.

No meio de tudo isso também veio à tona que Gal acumulava impostos e taxas atrasadas junto à União e à Prefeitura de São Paulo na ordem de R$ 700 mil, segundo último levantamento tornado público sobre os débitos deixados pela artista antes de morrer.

Gabriel acusou a empresária de tê-lo coagido a assinar uma carta que reconhecia o relacionamento amoroso entre ela e sua mãe. Ele ingressou na Justiça com um pedido para anular essa assinatura. Também questionou a causa da morte de Gal e pediu a exumação do corpo dela, medida que foi negada pela Justiça.

Já Wilma ameaçou pedir a interdição do garoto alegando que ele não tinha condições de responder por si e era influenciado por uma namorada, bem mais velha do que ele. Mas a briga teve um desfecho “paz e amor” em setembro deste ano: Gabriel e Wilma firmaram um acordo.

Eles concordaram que cada um ficará com 50% dos bens, além de arcarem com as dívidas listadas no inventário da cantora. Também foi decidido que os royalties oriundos das execuções musicais de Gal serão divididos em partes iguais para ambos até a venda da casa onde ela viveu, localizada no Jardim Europa (bairro nobre de São Paulo), cujo preço mínimo de venda foi definido em R$ 8 milhões.

Feita a venda, Gabriel passa a ser o único beneficiário dos direitos autorais da cantora. Caso a venda não aconteça, o filho de Gal ganha esse direito um ano após a homologação do acordo na Justiça. Ou seja: vale o que vier primeiro.

Além da atenção gerada pela briga em torno da herança de Gal, o caso jogou luz sobre a união estável, um direito reconhecido na Constituição Federal de 1988, mas ainda cercado de dúvidas. A principal delas: qual é o amparo legal dado a um casal sob esse regime, sobretudo, no momento em que se discute a herança?

Com lenço, sem documento

A união estável não exige um documento formal para ser reconhecida. É essa característica que cria dúvidas em torno dela, afirmam os especialistas em direito de família consultados pelo InvestNews.

Segundo o artigo 1.723 do Código Civil, a união estável é caracterizada como:

“Ela é uma relação amorosa que tem ares de casamento”, diz a advogada Thaís da Costa, do PLKC Advogados. “Casais neste regime são socialmente reconhecidos como se fossem casados, a partir de uma relação minimamente sem interrupções com um projeto de vida comum”.

E o que não configura união estável? O contrário do que a regra diz: um relacionamento mantido às escondidas ou que tenha reiteradas interrupções, explica a advogada Adriana Chieco.

A duração mínima do relacionamento não está prevista em lei e deve ser considerada conjuntamente com o objetivo de constituir uma família, salienta Chieco. “Há namoros longevos que não caracterizam união estável. Por sua vez, há relacionamentos curtos em que o desejo comum de constituir uma família se mostra presente rapidamente”, complementa a especialista.

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Como provar união estável?

Quem busca comprovar ter tido uma união estável não formalizada (sem documentos) com alguém já falecido tem várias possibilidades para isso — e elas são as mais banais possíveis.

Valem, por exemplo, conversas, fotos publicadas nas redes sociais, registros de uma vida comum, como idas a festas de família e encontros em datas comemorativas. Um convite de casamento que chegou para o casal ou apadrinhamento conjunto de filho de amigos também servem como comprovação.

Ter sido apresentada nos núcleos de convivência como “minha mulher” em vez de “minha namorada” também é um forte indicativo de união estável. Assistência material, como o fornecimento de um cartão de crédito adicional ao parceiro, e depoimentos de pessoas que mostrem que a relação não foi apenas um namoro podem servir de prova, ressaltam os especialistas.

Vínculo ou dependência financeira entre o casal também servem para provar união estável. Veja aqui quais documentos que podem comprovar isso – de acordo com o Decreto 3.048/99, em seu artigo 22, parágrafo 3.° (a reportagem segue depois da longa lista). São eles:

Voltando ao caso de Gal, Wilma Petrillo é madrinha de Gabriel, filho da cantora. Em diversas entrevistas, ela afirmou ter conhecido a artista, no início da década de 1990, na casa da atriz Sonia Braga — e nunca mais se separaram. Wilma também morava na casa de Gal, mas só teve a união estável reconhecida, após a morte da cantora, com a apresentação de provas sobre o relacionamento, que foram analisadas pela Justiça.

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Cantora Gal Costa na abertura da 12ª Festa Literária Internacional de Paraty. Fernando Frazão/Agência Brasil
Cantora Gal Costa na abertura da 12ª Festa Literária Internacional de Paraty. Fernando Frazão/Agência Brasil

Documento evita brigas?

Para evitar futuras brigas na Justiça, caso do espólio de Gal Costa, os especialistas recomendam formalizar a união estável. “Oficializar a união estável em cartório é uma excelente forma de comprovação perante terceiros, como um empregador, instituição previdenciária ou de saúde”, aponta Renato Xavier da Silveira Rosa, sócio do Moreau Advogados.

Existem duas formas de regulamentar os efeitos da união estável: escritura pública ou pacto de conviventes — também conhecido como contrato de convivência. No primeiro caso, o documento é confeccionado pelo Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais. Já no contrato de convivência, a orientação é que ele seja registrado no Centro de Distribuição de Títulos e Documentos.

Em ambos documentos, ressaltam os especialistas, é fundamental delimitar a data do início da união estável e escolher o regime de bens (comunhão parcial de bens, separação total de bens, dentre outros) que orientará o planejamento sucessório do relacionamento.

Thaís da Costa, do PLKC Advogados, lembra que o regime de bens é o destaque na formalização da união estável. “Essa é a oportunidade para o casal escolher se querem unir os patrimônios ou mantê-los separados, sendo que a ausência de definição implica na aplicação automática do regime da comunhão parcial de bens”, diz.

Na comunhão parcial, bens adquiridos antes da união estável ou recebidos por herança ou doação não são partilhados. Só os bens adquiridos após o enlace podem ser considerados patrimônio comum do casal.

Já a lista da advogada Roberta Paganini Toledo, sócia da área direito de família e sucessões do Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados, é ainda maior. Para a especialista, o casal precisa especificar na união estável a situação dos seguintes itens:

Não custa enfatizar: a união estável é fática e não documental. Isso significa que se os requisitos que a compõem estiverem presentes, ela existe, independentemente de contrato. O inverso também é verdadeiro, acentua a advogada Adriana Chieco.

“Se houver contrato, mas faltarem os requisitos legais [relacionamento público, contínuo e duradouro que tenha por objetivo constituir uma família], a união estável não será reconhecida”, diz a especialista.

O contrato — particular ou escritura pública — é importante porque é uma prova que demarca a existência da união estável.

Outro detalhe importante: a união estável não altera o estado civil. Quem era solteiro, divorciado ou viúvo permanece nessa condição, mesmo após a formalização da relação. Pela lei, as partes são vistas como “companheiras” ou “conviventes”, mas com todos os direitos, inclusive os sucessórios, garantidos.

Como dissolver união estável?

Existem duas formas de encerrar uma união estável: extrajudicial ou judicial.

Se ela for pela via extrajudicial, a dissolução deverá ser feita em cartório, mesmo que a união estável não tenha sido formalizada. Esse processo só é possível se não houver divergências entre o casal sobre a separação e nenhum dependente envolvido.

Já no caso de existir dependentes ou discordâncias na partilha de bens, na guarda dos filhos e na pensão alimentícia, o processo deverá correr pela via judicial, o que exigirá a contratação de advogado para ambas as partes.