Está sobrando energia elétrica. As hidrelétricas voltaram a operar com reservatórios cheios depois de um ciclo de secas históricas; o vento, especialmente no Nordeste, impulsionou a expansão da geração eólica; e os telhados de todo o país se encheram de painéis solares, movidos tanto pela redução do custo da tecnologia quanto por incentivos generosos.

Ainda assim, as tarifas seguem encarecendo. Só em 2025, a energia elétrica residencial acumula alta de 16% – bem acima da inflação, que até setembro acumula 3,6%.

É que o problema não está na oferta, mas na estrutura da tarifa.

A conta de luz no Brasil é composta por uma soma de custos fixos, tributos e encargos que, ao longo das últimas décadas, se empilharam uns sobre os outros. O resultado é um sistema distorcido e caro, em que a energia propriamente dita — o quilowatt-hora que sai da tomada — responde por apenas 30% da fatura. Os outros 70% correspondem à manutenção e expansão da rede, aos encargos setoriais e aos impostos.

A lógica de formação dessa conta revela uma engrenagem que se retroalimenta. Cada tentativa de consertar uma distorção gera outra.

A origem da rigidez

A primeira peça dessa engrenagem está no custo da geração — o coração do sistema elétrico. No Brasil, o grosso da geração é regida por contratos de longo prazo, firmados com base em regras criadas há mais de duas décadas.

O formato atual nasceu da tentativa de evitar outro trauma como o apagão de 2001, quando a escassez de chuvas e a falta de planejamento levaram à necessidade de um racionamento nacional. A resposta do governo veio em 2004, com o chamado “novo modelo do setor elétrico”, estruturado para garantir que nunca mais faltasse luz.

A ideia era obrigar as distribuidoras a comprar, com antecedência, 100% da energia que estimam precisar para atender seus clientes. Essa compra é feita em leilões de longo prazo, com contratos de 15 a 30 anos, quase sempre reajustados pela inflação (IPCA ou IGP-M).

O sistema cumpriu seu objetivo: desde então, o país não viveu mais apagões por falta de energia. Mas a segurança teve um preço. Quando os contratos são longos e indexados, as tarifas sobem automaticamente, mesmo que o custo de geração caia.

E o custo efetivamente caiu, sobretudo com a revolução das fontes eólica e solar.

Esse tipo de distorção se repete em outros pontos. Parte da energia brasileira é comprada de Itaipu, cujos contratos são dolarizados, o que torna o custo vulnerável às flutuações cambiais. Outras parcelas vêm de “térmicas inflexíveis”, usinas que são obrigadas a operar independentemente da necessidade do sistema, muitas delas contratadas por força de lei.

O caso mais notório é o da Lei 14.182/21, aprovada junto com a privatização da Eletrobras. Ela determinou a contratação de 8 gigawatts de térmicas a gás natural, com funcionamento mínimo de 70% do tempo, inclusive em regiões sem gasodutos. O custo total estimado é de R$ 5 bilhões por ano, durante quinze anos.

Tudo por um fio

Se a geração explica por que o preço não cai, o fio — o custo de levar a energia até o consumidor — mostra por que ele quase sempre sobe.

Nos últimos anos, a expansão das fontes renováveis ajudou a aumentar essa conta. O Nordeste, cheio de vento e sol, gera muito mais energia do que consome, enquanto o Sudeste concentra a demanda. Até aí, tudo certo. Mas a estrutura da rede não estava pronta para lidar com isso.

E ainda não está. Em vários momentos, o Operador Nacional do Sistema (ONS) precisa desligar parques eólicos e solares porque as linhas estão saturadas. É o chamado curtailment — um desperdício literal de energia limpa. Ou seja, o país ainda precisa investir muito para ampliar a rede de transmissão. A estimativa é que os novos projetos exijam R$ 34,7 bilhões nos próximos anos.

A distribuição, por sua vez, é o elo final e mais delicado dessa cadeia. É ela que transforma a alta tensão das torres em energia doméstica e faz a manutenção da rede que cruza ruas e avenidas. E é também onde aparecem duas distorções típicas do Brasil. As chamadas “perdas não técnicas” — furto de energia e inadimplência — somaram R$ 10,3 bilhões em 2024, um custo adicional rateado entre os consumidores adimplentes.

Em outras palavras, parte do que cada brasileiro paga na conta serve para cobrir a massa que não paga.

O balaio dos encargos

Se a geração explica a rigidez dos preços e o fio revela os custos invisíveis da infraestrutura, é nos encargos setoriais que se encontra o motor do encarecimento da energia. Nenhum outro componente da conta cresceu tanto, nem se tornou tão confuso, quanto a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) — o fundo criado para universalizar o acesso à energia.

A CDE nasceu em 2002, após o trauma do apagão. A ideia original era financiar políticas públicas como a Tarifa Social de Energia Elétrica, que dá descontos na conta de luz para famílias de baixa renda. Mas a CDE acabou se tornando uma caixa de Pandora: um repositório de encargos, subsídios e programas que se acumulam.

Os números contam a história. Em 2018, o orçamento da Conta de Desenvolvimento Energético era de R$ 18,7 bilhões. Em 2023, já passava dos R$ 40 bilhões, e a previsão para 2025 chega a R$ 49,2 bilhões.

Hoje, a CDE sozinha representa cerca de 15% da conta de luz — e, mais grave, cresceu em proporção muito superior ao consumo de energia no país. É que dentro da CDE, convivem programas de interesse legítimo, como a Tarifa Social, e uma lista cada vez mais longa de subsídios econômicos e regionais discutíveis.

O mais antigo é o do carvão mineral, criado em 1973, durante o governo Médici, para preservar empregos nas minas de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. O benefício deveria ter acabado em 1998, mas foi prorrogado repetidas vezes. Em 2024, custou R$ 1,22 bilhão. E nesta quinta-feira (30), o Congresso aprovou a MP que extende a ajuda até 2040. O texto segue para a sanção presidencial.

painéis de energia solar

Um dos benefícios mais pesados, no entanto, é dado aos painéis solares instalados sobre os tetos e lajes residenciais. Eles representam 97% da chamada mini e microgeração distribuída (GD).

Criada em 2012, a GD permitiu que consumidores com painéis solares compensassem na conta a energia que injetassem na rede, sem pagar pelos custos de transmissão e distribuição. Era um estímulo necessário para difundir a tecnologia, ainda era cara e restrita.

Mas a manutenção do benefício por mais de uma década, mesmo depois da queda drástica no custo dos painéis solares, transformou o incentivo em privilégio: quem tem menos recursos e consome pouca energia acaba subsidiando quem consome mais e pode investir em autogeração.

Em 2022, o Congresso aprovou um regime de transição para reduzir, aos poucos, os benefícios da GD. Mas bem aos poucos: quem instalou paineis solares até janeiro de 2023 tem o direito de usar a rede sem pagar pelo fio na conta de luz até 2045. Sistemas instalados depois disso vão pagando uma tarifa do fio que cresce aos poucos, chegando aos 100% só 2029.

O resultado tem sido uma corrida, que multiplicou o peso financeiro da iniciativa. Em 2020, o subsídio para os painéis solares custou R$ 448 milhões. Neste 2025, até o fim de outubro, já está em R$ 11,8 bilhões.

Algo semelhante ocorre com as chamadas fontes incentivadas — usinas eólicas, solares, de biomassa e pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). Elas receberam descontos de até 100% nas tarifas de uso da rede para atrair investimento privado. A política funcionou: hoje, 93% da eletricidade brasileira vem de de fontes renováveis.

Mas o benefício nunca foi retirado. E o peso do subsídio escalou: de R$ 4,8 bilhões em 2020 para R$ 11,9 bilhões nos primeiros dez meses de 2025. Se não houver mudanças, os subsídios à geração distribuída serão pagos pelo consumidor até 2045; os subsídios das fontes incentivadas, até 2047.

Postes de energia elétrica um do lado do outro, sob o céu azul
Foto: Adobe Stock Photo

Para agravar o quadro, há uma distorção adicional. Os impostos representam, em média, 18% do valor da conta de luz. Como os encargos integram a base de cálculo dos tributos estaduais e federais, o consumidor também paga impostos sobre os subsídios que banca.

Segundo uma estimativa da Abrace Energia, associação que reúne grandes empresas consumidoras, R$ 21 bilhões da arrecadação de ICMS e PIS/Cofins em 2025 virão de tributos cobrados sobre esse tipo de encargo.

Em suma, é como se cada linha da conta de luz retratasse um vício da história econômica nacional.

*Colaborou Felipe Mendes