O dinheiro moderno é só um pedaço de papel – ou um número na tela. Ele tem valor porque nós, seres humanos, acreditamos nisso. É o que o escritor Yuval Noah Harari chama de uma “realidade intersubjetiva”: algo que só existe porque muita gente concorda com essa verdade. Com o bitcoin (BTC), que completa 17 anos nesta sexta-feira (31), a lógica é parecida.

O white paper – o documento que explicava o funcionamento dessa nova moeda digital – foi publicado em 31 de outubro de 2008, por Satoshi Nakamoto, em um fórum sobre criptografia. Na época, o autor misterioso descreveu um dinheiro eletrônico “ponto a ponto”, que permitia pagamentos online, sem bancos ou governos no meio.

“O que fazia dessa coisa um “dinheiro eletrônico”, em vez de um arquivo de computador qualquer, era uma característica especial. Tratavam-se de arquivos impossíveis de copiar. Se você manda uma foto do seu celular para alguém, a foto continua no seu aparelho. Se você manda um bitcoin (uma fração, na verdade, mas não importa), o bitcoin some das suas mãos. Ele vira posse do destinatário. Igual dinheiro.

Parece algo simplório, mas não. É uma obra de arte da criptografia. Foi isso que Satoshi Nakamoto propôs há 17 anos. Com o adendo de limitar esse dinheiro eletrônico a 21 milhões de unidades – se o suprimento fosse infinito, afinal, você poderia chamar de qualquer coisa, menos de dinheiro.”

Brilhante, mas quase ninguém deu bola. Os poucos interessados eram nerds curiosos, entusiastas da criptografia – e, claro, alguns golpistas que viram ali uma chance de enganar quem não entendia muito bem do assunto, criando as conhecidas pirâmides financeiras de cripto.

Foi só anos depois, quando investidores de varejo e institucionais começaram a enxergar valor na criação de Nakamoto, que o bitcoin ganhou corpo. Saiu do zero e chegou a valer cerca de US$ 110 mil em 2025. Nenhum outro ativo da história teve uma valorização tão expressiva.

“A emergência do bitcoin desse nicho (dos nerds) para o mercado tradicional é algo que surpreende algumas pessoas envolvidas no movimento cripto, e que muitas vezes gera até animosidade, mas ao meu ver era parte inevitável da sua trajetória, caso ele obtivesse sucesso. Nenhum ativo que se torna valioso e relevante o suficiente é capaz de evadir o envolvimento do mercado tradicional”, disse Rafael Castaneda, analista parceiro da OKX.

Mas a trajetória não foi uma linha reta – foi uma montanha-russa. E alguns episódios ajudaram o bitcoin a pular das telas do computador para as carteiras de investidores, gestores e até governos.

Deu pizza

Todo mundo tinha dúvidas se o bitcoin poderia ser usado para compras. Mas em em 2010, um programador chamado Laszlo Hanyecz provou que era possível. Ele pagou 10 mil unidades de bitcoin para quem comprasse e enviasse duas pizzas grandes para a casa dele, na Flórida, nos EUA.

Na época, o bitcoin ainda não tinha valor de mercado. Mesmo assim, alguém topou o desafio: duas pizzas que custavam cerca de US$ 41 foram trocadas pelas criptos – um preço que acabou virando uma referência anedótica para o que valeria 10 mil BTC naquele momento. O episódio ficou marcado como o Bitcoin Pizza Day, comemorado até hoje pela comunidade. Atualmente, essa mesma quantia em bitcoins valeria cerca de US$ 6 bilhões.

Passado com drogas

Depois das pizzas, o bitcoin encontrou outro uso – e foi aí que deixou de ser apenas uma curiosidade entre programadores para se tornar, de fato, uma moeda em circulação. Entre 2011 e 2013, ele passou a ser o principal meio de pagamento no Silk Road, um mercado de ilícitos que operava na darkweb. Quem nunca teve uma fase de rebeldia, né?

O site, criado pelo americano Ross William Ulbricht, movimentou cerca de US$ 1,2 bilhão em vendas de entorpecentes, usando uma rede chamada Tor, que garantia o anonimato das transações.

O Silk Road foi derrubado em 2013 pelo FBI e Ulbricht condenado em 2015. O governo dos Estados Unidos apreendeu vários bitcoins do esquema. Em outubro de 2013, por exemplo, a Procuradoria citou que havia confiscado 173.991 unidades de BTC. Parte dessas criptos hoje fazem parte do tesouro do país.

Exchanges e maçãs podres

Apesar da má fama, o período da década de 2010 também marcou o nascimento das primeiras exchanges de criptomoedas, que facilitaram o acesso de investidores comuns ao mercado. Antes disso, as transações eram feitas diretamente entre pessoas (o modelo P2P idealizado por Satoshi), mas esse formato abria espaço para golpes e calotes.

Mas enquanto algumas corretoras sérias começaram a ganhar vida, algumas maçãs podres também surgiram. A mais emblemática foi a Mt. Gox, que chegou a concentrar 70% das negociações globais de Bitcoin. Em 2014, ela foi hackeada e perdeu 880 mil BTC de clientes do mundo todo. O caso abalou a confiança no já instável mercado cripto. Até hoje, os investidores tentam recuperar parte dos recursos.

De vilão a ouro digital

Com tantos escândalos – drogas, hackers e pirâmides -, a reputação do bitcoin demorou a mudar. Em 2017, Larry Fink, CEO da BlackRock, chegou a dizer que o BTC era “um índice de lavagem de dinheiro”. Dois anos depois, Donald Trump afirmou que “não era fã” da moeda e que “criptos não são dinheiro”.

Mas o tempo passou…

A entrada de investidores institucionais e a criação de produtos regulados mudaram a percepção do mercado. O próprio Fink passou a chamar o bitcoin de “ouro digital” e, em janeiro de 2024, a BlackRock lançou um ETF à vista de bitcoin, que hoje soma cerca de US$ 65,34 bilhões sob gestão, segundo a plataforma SoSoValue. É o maior do mundo entre os fundos de índice. Outros ETFs também foram lançados, e hoje os produtos dos EUA têm 6,88% da circulação total do BTC.

“A listagem dos ETFs à vista no mercado dos EUA, em 2024, combinado com o anúncio da BlackRock sobre sua visão de bitcoin como ouro digital, marcam o momento definitivo em que o bitcoin fincou o seu pé no mundo financeiro”, disse Castaneda, da OKX.

Trump também mudou de tom: disse que o BTC pode aliviar a pressão sobre o dólar e elogiou o ativo como “ótimo para o país”. Nos últimos anos, ele e a família entraram de cabeça no mercado de ativos digitais (até demais), lançando tokens (que perderam valor e deixaram muita gente no prejuízo) e arrecadando mais de US$ 4,5 bilhões.

Mais importante foi a regulamentação. A partir de fevereiro de 2025 a SEC (“CVM” dos EUA) passou a considerar o bitcoin como “commodity”, ou seja, mercadoria. Foi o passo derradeiro para a regularização da cripto como um ativo. Só o bitcoin tem esse status – dada a confiabilidade que amealhou nestes 17 anos.

O que esperar do futuro?

Em 17 anos, o bitcoin consolidou-se muito mais como um ativo financeiro do que como o dinheiro eletrônico imaginado por Satoshi Nakamoto – e, para especialistas, essa tendência deve continuar.

“Como o bitcoin tem oferta limitada e já mostrou um histórico de fortes altas, muita gente opta por guardá-lo como investimento – uma espécie de “ouro digital” – em vez de usá-lo para comprar coisas. Essa preferência por acumular, somada às taxas e à lentidão das transações, acabou consolidando o Bitcoin como um ativo financeiro, afastando-o da ideia original de Satoshi Nakamoto”, disse Danilo Matos, especialista de mercado da NovaDAX.

Olhando adiante, Matos avalia que o bitcoin deve se firmar como uma reserva global de valor – movimento que, segundo ele, já está em curso em 2025 – em vez de se tornar uma moeda de uso cotidiano. Quem tende a ocupar o espaço de pagamentos, afirmou, são as stablecoins, criptomoedas pareadas a outros ativos, “que trazem estabilidade de preço para transações cotidianas e acabam tomando para si esse setor”.