As populações de raça preta ou parda sofrem com maiores níveis de vulnerabilidade econômica e social, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E, no âmbito do mercado de trabalho, conforme aponta o relatório mais recente da instituição, apenas 29,9% das posições gerenciais são ocupadas por esse grupo no país.
Um exemplo de pessoa que compõem essa parcela em desvantagem é a Roberta Anchieta, superintendente de administração fiduciária do Itaú Unibanco (ITUB4) e conselheira fiscal da Ânima Educação, que conta que entre as dificuldades que sofreu desde a infância devido ao racismo, a razão de ter se tonado uma líder negra do mercado financeiro foi seu pai.
Continue a leitura para conhecer a história de Anchieta e tê-la como uma referência de liderança negra.
‘Um homem preto, pobre e brilhante’
Roberta conta que é uma mulher preta com privilégio social desde criança graças ao pai, Roberto Raposo, que foi “um homem preto, pobre e brilhante” e que quebrou o ciclo de pobreza do seu grupo familiar por meio da educação.
Roberta diz que Raposo trabalhou no mercado financeiro, especificamente com investimentos em ações, e que sempre foi uma inspiração para ela. Por isso, na infância ela já sonhava em trabalhar na mesma área.
“Eu nunca quis ser pediatra, eu nunca quis ser bailarina, eu sempre quis trabalhar no mercado financeiro. O que isso significava? Eu não tinha a menor ideia. Eu só sabia que quando a bolsa subia mais de 7%, a gente ganhava presente, e se a bolsa caía, meu pai ficava muito chateado. Era tudo o que eu sabia.”
Primeiros passos para a liderança
Anchieta explica que, como mulher preta com privilégio social, sempre esteve “em espaços em que era muito única, espaços que eram brancos”. Devido a essa posição, estudou em escolas particulares e, depois, conseguiu ingressar numa universidade pública.
O que, segundo a executiva, não era comum para a população preta na época, porque, normalmente, essas pessoas precisavam “trabalhar para ajudar em casa e depois continuar trabalhando para pagar a própria faculdade” – fato ainda recorrente.
Roberta conclui que esse universo privilegiado proporcionou a ela formação em Matemática Aplicada e Computacional pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Trajeto profissional
Da vida educacional para profissional, Anchieta conta que pôde começar a trabalhar como trainee do Itaú Unibanco – o que era a realização de um sonho, pois, finalmente, ela poderia ingressar no mercado financeiro, assim como seu pai. Além disso, Roberta diz que queria muito a vaga porque sabia que poderia chegar em posições de liderança de uma forma mais rápida.
E não foi diferente. As expectativas de Anchieta foram atendidas. Muito cedo ela se tornou gerente e, com a mesma velocidade, foi subindo ainda mais de posição na empresa. Hoje, ela é superintendente de administração fiduciária do banco há quatro anos.
No contexto corporativo, Roberta menciona que também teve a oportunidade de fazer mestrado em Modelagem Matemática Aplicada às Finanças pela Universidade de São Paulo (USP) e Master of Business Administration (MBA) em Finanças pelo Insper.
Recentemente, a executiva do Itaú começou uma nova jornada. Agora ela também assume a posição de conselheira fiscal da Ânima Educação e conselheira consultiva da Humanitas. Ela conta que foi capaz de entrar nesses cargos por meio de um programa de ação afirmativa de incentivo à presença de mulheres negras nos conselhos de administração, que é o Conselheira 101.
Dificuldades no caminho
Roberta conta que as principais dificuldades que sofreu foram episódios relacionados ao racismo. Ela declara que, desde a infância, passa por situações como essas. Em que “era a única criança negra da escola” e que escutava dos colegas comentários extremamente ofensivos.
Um exemplo é que faziam a comparação do cabelo dela com buchas metálicas – mais conhecidas pela marca Bombril. Roberta conta que acreditou nisso até que sua mãe pediu para que ela tocasse nos próprios cabelos e em uma bucha, para que assim ela percebesse a diferença.
“Eu não tinha referências negras além do meu pai e da minha mãe. Aí a gente vê como a representatividade é importante, porque se você não tem representatividade e referência, você acredita que aquilo é real. Eu me sentia um peixe fora d’água.”
No ambiente corporativo, a superintendente relata que situações de racismo ainda acontecem.
“Quando eu entro em uma reunião em que não conheço as pessoas, entro tendo que provar que fui para a reunião e não para servir o café. Tenho que provar que falo português corretamente, porque, em geral, o lugar da mulher negra no Brasil é em situação de serviço… que são mulheres que não tiveram oportunidade de estudar. O estereótipo é esse. E se a reunião for em inglês, tenho que provar que falo inglês fluentemente, mesmo tendo feito intercâmbio”, afirma.
Quando tudo isso é provado, Anchieta disse que, de certa forma, vai para o patamar de uma mulher branca. E, neste momento, começam novos desafios, como o mansplaining (palavra mesclada em inglês de homem e explicando, que é quando um homem explica coisas óbvias à mulher) e o manterrupting (palavra mesclada em inglês de homem e interrompendo, que é quando um homem interrompe a fala de uma mulher).
Só depois de passar por tudo isso, a superintendente diz que finalmente chega em um patamar no qual apenas precisa mostrar sua competência. “Olha o catch up que eu tenho que fazer em uma mesma reunião”, comenta.
Um conselho para jovens negros
Roberta, como mulher negra com uma história de sucesso no mercado financeiro, incentiva jovens negros a buscarem o futuro que quiserem:
“Preparem-se, acreditem no potencial que vocês têm e acreditem que qualquer lugar é para nós. Não se limitem aos lugares e invistam no autoconhecimento para que vocês possam contar suas jornadas, que, eventualmente, não vão ter sido nas melhores universidades… mas que certamente trarão atributos para o ambiente corporativo, como resiliência e superação.”
Ela ainda recomenda que os jovens aproveitem a tecnologia, que proporciona mais facilidade para estudar. Além de que também busquem conexões pelos canais de comunicação, que conversem com pessoas que possam apoiar de alguma maneira para o crescimento pessoal e profissional. “Procure uma pessoa que te inspira, que você acha que pode contribuir com o seu desenvolvimento”, menciona.
Desejo para o tema da diversidade racial
Para os próximos anos, apesar de a superintendente apontar que o caminho ainda é longo, seu desejo é que o tema de diversidade racial não fosse sequer um tema, que essa pauta fosse superada.
“Meu sonho grande é que Gabriel e João [filhos dela] possam ser julgados pela competência e pelo caráter deles. É por isso que atuo tanto nessas causas, pensando tanto nos meus meninos e na geração deles, para que possam encontrar menos obstáculos que a minha geração encontrou”, explica.
Além disso, Anchieta diz que deseja “que a gente consiga trazer uma conscientização maior e que as pessoas possam entender que esse é um tema que precisa ser tratado, porque não foram todas as empresas que entenderam ou aderiram a isso”. Roberta conclui que quer “ver uma representatividade maior de pessoas negras em todos os níveis e funções, não somente nos níveis operacionais”.
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