A China está celebrando um novo campeão nacional: Liang Wenfeng, fundador da DeepSeek, empresa que mostrou que a dianteira que os EUA imaginavam ter no campo da Inteligência Artificial era ilusória. O primeiro-ministro chinês, Li Qiang, convidou o CEO para um evento exclusivo na última semana, um sinal de reconhecimento do mérito.

O Partido Comunista Chinês tem uma relação direta no sucesso da DeepSeek. Mas não exatamente do jeito que gostaria. Nos últimos anos, Pequim intensificou seu controle sobre hedge funds e operações de alta velocidade na bolsa – feitas por robôs e operadas por fundos quant, que usam matemática avançada para prever o comportamento do mercado.  

Uma das quants mais afetadas foi a High-Flyer, fundada por Wenfeng em 2015 e até pouco tempo atrás uma das mais bem-sucedidas do mercado financeiro chinês, apostando em algoritmos proprietários para maximizar o lucro nas operações.

Mas, nos últimos anos, autoridades em Pequim sentiam que a especulação desenfreada contrariava a meta de manter estabilidade nos mercados e coibia o foco em investimentos de longo prazo. Em 2024, esse movimento culminou num aperto ainda mais drástico: as principais instituições quant foram responsabilizadas por oscilações consideráveis no mercado acionário, algumas sofreram punições públicas e tiveram mais restrições para sua operação.

O resultado imediato foi um encolhimento no tamanho dos fundos. A High-Flyer, que em seu auge administrava mais de US$ 12 bilhões, despencou para cerca de US$ 8 bilhões no ano passado, viu seus principais produtos ficarem atrás de índices de referência como o CSI 300 (um “Ibovespa” da China). 

Foi no auge dos problemas que a High-Flyer decidiu usar seu conhecimento em IA de forma mais ambiciosa. Enquanto diminuía a exposição a estratégias quant, realocava recursos para desenvolver modelos avançados de inteligência artificial. Comprou dois grandes clusters de GPUs usadas para treinamento de modelos — um deles com 10 mil placas da Nvidia, que ocupam o tamanho de um campo de futebol.

Surgia a DeepSeek, em 2023, com o objetivo expresso de alcançar a AGI (Inteligência artificial geral).

Muita gente descreveu a DeepSeek nos últimos dias como uma “zebra” que surpreendeu o mundo. Mas a história não é bem essa. Primeiro, a empresa não surgiu do nada: herdou capacidades de computação de ponta, dinheiro e, sobretudo, um time de engenheiros de alta capacidade, vindos das melhores universidades chinesas. Segundo, desde o início, Wenfeng cultivou a cultura de “laboratório de pesquisa”, gastando fôlego (e capital) em experimentos que outras startups evitavam, por temerem o retorno tardio.

Liang Wenfeng é um sujeito discreto. Em uma das suas raras entrevistas, ele se compara aos geeks do Vale do Silício, dizendo que a China não pode continuar sendo “seguidora” das inovações ocidentais. Precisa estar na vanguarda. Ele também acredita que abrir o código (ou pelo menos parte dele) e compartilhar descobertas é crucial para atrair talentos e criar um ecossistema de pesquisa colaborativo. “O que nos falta não é capital. É confiança e saber como organizar talentos de alta densidade”, disse no ano passado.

Com o 6º maior data center dedicado à inteligência artificial na China, segundo estimativas de especialistas, a DeepSeek já havia provocado um cataclisma no mercado chinês ainda em 2024. Em maio, lançou sua versão 2 do DeepSeek para desenvolvedores a um custo baixíssimo, forçando competidores como ByteDance, Alibaba e Baidu a reduzirem suas tarifas em até 90%, para seguirem competitivas. 

Para Liang, a estratégia é simples: as pesquisas da DeepSeek, sempre abertas, atraíram mais talento. 

Talento que outrora, ao menos na China, estava sendo atraído em grande medida para trabalhar em algoritmos para otimizar a transferência de riqueza, na bolsa — com ganhos potenciais expressivos, mas produzindo rigorosamente nada para a economia real. O fenômeno não é exclusivo da China, claro. Wall Street e, no Brasil, a Faria Lima, veem uma enxurrada de quants, cientistas de dados e engenheiros de IA buscando altos salários e desafios analíticos sofisticados no mercado financeiro. 

Dá pra dizer que políticas públicas podem acelerar o desenvolvimento tecnológico. No caso da DeepSeek, foi isso, mas de forma involuntária. 

Primeiro, as restrições impostas pelos Estados Unidos à exportação de chips de alto desempenho aceleraram o desenvolvimento de métodos computacionais mais criativos dentro da China. A DeepSeek causou esse estrago no mercado por provar que é possível desenvolver modelos de ponta com bem menos recursos. Ou seja: as sanções dos EUA mostraram-se um tiro que saiu pela culatra. 

Segundo, ao perseguir os quants, o governo chinês forçou uma parcela desses profissionais a se realocarem em projetos de pesquisa e desenvolvimento de IA avançada. Resultado: a DeepSeek hoje lança modelos com eficiência inesperada, ocupando um espaço que, até então, parecia reservado a gigantes americanos.

A corrida da IA vive hoje, na visão de muitos, um “momento Sputnik”. Da mesma forma que os soviéticos surpreenderam os americanos ao lançar um satélite antes deles, em 1957, a China fez o mesmo ao parir um sistema de IA mais eficiente a custos baixos. A corrida espacial culminaria com a chegada do ser humano à Lua, em 1969 – algo impensável na época do Sputnik. Na corrida da IA, os próximos capítulos são absolutamente imprevisíveis.