Dois dias depois de vencer as eleições presidenciais na Argentina, Javier Milei não poderia se deparar com melhor reação do mercado, com ativos argentinos em alta – à exceção do peso, que segue enfraquecido, refletindo o plano do presidente eleito em substituí-lo pelo dólar. Mas outras propostas, como a extinção do Banco Central e a redução do papel do Estado via privatizações, deixam no ar mais dúvidas do que certezas sobre sua viabilidade.
Para a economista-chefe da Bloomberg Economics, Adriana Dupita, Milei terá de apresentar uma estratégia concreta para reduzir o setor público e criar uma economia mais produtiva e eficiente. “Ele precisará do apoio do Congresso e de uma política externa pragmática para fortalecer as exportações. E, claro, tem de haver um plano para a dolarização”.
Dupita não acredita que a dolarização da economia argentina seja viável no curto prazo, uma vez que as reservas internacionais do país estão muito baixas. “Há cerca de US$ 20 bilhões em pagamentos de importação atrasados. Se Milei trocasse pesos circulantes por dólares das reservas da Argentina à atual taxa de câmbio paralela, estimamos que lhe faltariam US$ 65 bilhões”.
E, segundo a economista, não há maneira fácil de arrecadar esse dinheiro. Mesmo se as exportações argentinas aumentarem, isso deve acontecer de maneira lenta. E dado o histórico de não cumprimento com as obrigações financeiras do país, controles cambiais e crises bancárias, “investidores locais e estrangeiros devem necessitar de mais convencimento para recuperar o seu dinheiro”.
Ainda assim, Milei terá de esclarecer seu plano de dolarizar a economia de um país onde os dólares são escassos, e antes disso, apresentar um plano de correção da política fiscal e monetária, reduzir a inflação, estabilizar o sistema financeiro, para daí, sim, ganhar confiança.
Para o economista e professor de comércio exterior da FIA USP Paulo Feldmann, tornar a Argentina um país sem moeda própria o transforma também em um país sem política cambial, o que impacta diretamente na atuação da política monetária ou fiscal.
“O uso de moeda americana foi tentado por países muito pequenos, o que não deu certo. Qualquer política econômica precisa de uma política cambial. E se ele [Milei] conseguir apoio para fazer isso, pode ser uma catástrofe”, apontou.
Paulo Feldmann, professor de comércio exterior da FIA USP
O professor aponta que o presidente eleito não deve ter facilidade em colocar suas ideias em prática, uma vez que cerca de 40% do Congresso é de oposição. “Isso acontece porque os países sul americanos são um sistema misto, onde o presidente tem poder. Mas o Congresso também tem”.
Feldman observa que Milei deve encontrar forte resistência no Congresso de maioria do partido de Sergio Massa, candidato peronista que perdeu a disputa presidencial com 44,2% dos votos no último domingo (19).
A coligação “Liberdade Avança” (de Milei) é minoria, com 38 deputados de 257, e sete senadores de 72. Já o partido “Union por la Patria”, do rival Sergio Massa, tem maior representatividade, com 94 deputados e 24 senadores.
Por sua vez, “Juntos por El Cambio“, coalização de Patrica Bullrich (que ficou em terceiro lugar, com 24% dos votos no 1º turno), tem a segunda maior representatividade. No entanto, a aliada do ex-presidente Mauricio Macri declarou apoio a Milei.
“Milei terá problemas pela frente, e não deverá conseguir levar adiante a maior parte das suas ideias”.
Paulo Feldmann, professor de comércio exterior da FIA USP.
Fim do BC argentino deve ser barrado
Enquanto a dolarização da economia é apontada como um caminho difícil, outra promessa de campanha de Milei, a abolição do Banco Central, é tida por especialistas ouvidos como a “maior das loucuras” – uma vez que o país deixaria de ter o controle sobre bancos atuantes no mercado, assim como influência sobre taxa de juros ou inflação.
Feldmann, da USP, acredita que o Congresso deve barrar a ideia, uma vez que a casa legislativa do país é conhecida por ser conservadora. “Quem vai controlar os bancos do país? Eles vão atuar livremente sem uma agência reguladora? Acredito que o Congresso não vá permitir”.
O consultor de comércio internacional Welber Barral, sócio da BMJ Consultores, também acredita que muitas das medidas anunciadas por Milei, na prática, serão impedidas ou pelo poder econômico local ou pelo Congresso argentino. Já as que devem “vingar” deverão passar por um processo lento.
“Economistas que trabalham com o Milei dizem que para chegar na valorização da economia, primeiro será necessária uma transição lenta, até porque o país não tem reservas em dólares. Muito provavelmente, vão trabalhar na estratégia de duas moedas convivendo durante algum tempo e isso pode sofrer resistência também do setor empresarial argentino. Não vai ser simples, nem muito rápido”, diz.
Privatizações: mais um caminho tortuoso
Com relação às promessas de privatizações, não seria uma novidade para a Argentina, que já passou por vários processos do tipo, a exemplo da estatal petroleira YPF – privatizada no passado, mas reestatizada quase 20 anos depois, no governo de Cristina Kirchner.
“Como grande parte das empresas estatais argentinas tem déficit (o que não é o caso da YPF), muitas terão dificuldades para encontrar compradores”, disse o consultor da BMJ ao InvestNews.
Em sua primeira entrevista após eleito, Milei sinalizou que tudo que possa estar nas mãos do setor privado estará, e que a YPF seria “reconstruída” – via privatização.
Na segunda-feira (20), feriado na Argentina pela comemoração do Dia da Soberania Nacional (quando a bolsa local estava fechada), as ações da petroleira reestatizada negociadas na bolsa de Nova York (NYSE) encerraram o dia em alta de 39,88%, a US$ 15,01.
Segundo economista Paulo Feldman, a Argentina tem um histórico de privatizações mal sucedidas, a exemplo do período em que Carlos Menem (1989-1999) comandou o país.
À época, o mandatário privatizou não apenas a estatal petroleira, mas também aéreas, assim como ferrovias, não deixando de lado nem empresas de água e esgoto. O processo, segundo Feldmann, foi um desastre para os argentinos. “O preço da água ficou impraticável, os argentinos ficaram sem água por muito tempo”.
Ainda de acordo com o economista, só se pode privatizar algo quando há competição no setor. “Se não tem concorrentes, não privatize, é o que diz a teoria econômica mundial. E ele [Milei] sabe que seu discurso não vai funcionar, mas é populista. E como a população argentina está cansada dos serviços, o voto de revolta venceu”.
Barral, da BMJ Consultores, faz coro apontando que a vitória de Milei foi maior do que se esperava, o que aponta para um “cansaço grande da sociedade argentina com o peronismo e os últimos anos que levaram o país a uma situação econômica estrangulada”, com inflação batendo os 200% ao ano e argentinos sem poder de compra.
“Miley fez uma campanha dizendo que vai se aproximar dos Estados Unidos, de países livres e contra comunistas, o que inclui Brasil e China. Na prática, esse discurso de campanha acabou sendo mitigado no segundo turno, e o que se espera é uma relação mais distante com o Brasil, como foi a relação entre Bolsonaro e Fernandes”.
No entanto, Barral aponta que as relações comerciais entre os países são muito importantes para serem menosprezadas, já que na prática, empresários argentinos têm no Brasil maior mercado de consumo para seus produtos.
Mercado segue otimista
Na terça-feira (21), o índice de ações argentino S&P Merval (MERV) fechou em alta de 22,8%, com todos os papeis da carteira (exceto um) com ganhos entre 42% a 10%. As companhias que tiveram os maiores retornos após a vitória de Milei, foram, a distribuidora de energia Transener (42,7%); a transportadora de gás del Norte (41%); e a Telecom Argentina (40%). A petroleira YPF registrou alta de 36,65%, segundo o consultor, Einar Rivero.
O pesquisador político-eleitoral e doutor em economia, Maurício Moura, aponta que o mercado ficou dividido sobre o que era “melhor”, mas acrescenta que era aguardado que quem tivesse a menor rejeição sentaria na cadeira da Casa Rosada.
“Foi uma batalha de rejeições. Eu já esperava que Milei vencesse por conta da rejeição de Massa, apesar de o mercado estar mais otimista com esse último”, avalia.
O fundador e ex-CEO do Instituto Ideia (empresa de pesquisas eleitorais no Brasil), e estrategista do primeiro multimercado focado em eleições presidenciais pelo mundo (Zaftra, gerido pela Gauss Capital) aponta que, como o primeiro turno foi difícil, também foi complexo prever o desempenho de ativos argentinos, em especial, de ações. O fundo apostou na desvalorização do peso e aumentou sua posição em bonds do país.
“A sensação é de que o mercado recebe muito bem a notícias das privatizações anunciadas por Milei, sendo esse um dos motivos de vermos os ativos performando bem, a exemplo das ações da YPF”.
Maurício Moura, economista.
Ainda assim, o estrategista político aponta que existe uma sensação de que não é possível que Milei leve ao pé da letra o projeto de acabar com o Banco Central, assim como o mercado está cético sobre a dolarização da Argentina, uma vez que o país tem problemas com reservas.
“Essa é a grande questão. Mas o próprio Milei vem anestesiando o seu discurso”.
A questão para os especialistas agora é se haverá uma corrida aos bancos para sacar pesos e comprar dólares no mercado paralelo. Mas se houver um processo desordenado, uma hiperinflação pode ser alimentada – um possível primeiro teste para o recém-eleito presidente.
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