Fechamento do banco central argentino, eliminação do peso e adoção do dólar como moeda oficial: a proposta drástica de Javier Milei, candidato à presidência na Argentina, gera grande repercussão, mas é praticamente inexecutável, afirmam especialistas ouvidos pelo InvestNews. A ausência de reservas significativas de dólares e a conjuntura política e institucional do país impedem a adoção das medidas nos moldes prometidos pelo candidato.
Milei tem chances reais de vitória na disputa presidencial na Argentina segundo as pesquisas. Mas suas propostas na economia são consideradas vagas por especialistas. “Para dolarizar a economia, você precisa de um insumo básico: o dólar”, afirma Carla Beni, professora de MBAs da Fundação Getulio Vargas (FGV).
A Argentina vive um cenário de fuga de dólares há anos, e o movimento tem se mantido. Somente nos últimos 12 meses, as reservas em dólares do BC argentino diminuíram em mais de US$ 10 bilhões.
O professor José Luis Oreiro, da Universidade de Brasília (UnB), lembra que, como a Argentina não pode emitir dólares, o único jeito de acumular a moeda é através de saldo positivo na balança de pagamentos. Assim, exportações precisam ser maiores do que importações, e entradas de capital devem superar as saídas.
Ahmed El Khatib, coordenador do Instituto de Finanças da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP), comenta que o candidato Milei e sua equipe acreditam que a população argentina já possui guardados dólares que, uma vez em circulação, dariam conta de avançar com o processo. Em 16 meses, todos os pesos seriam trocados por dólares. “Me parece absurdo”, afirma o professor.
Milei está também buscando fundos de investimento no exterior dispostos a emprestar moeda estrangeira caso seja eleito ainda este ano. Diana Mondino, uma de suas conselheiras, afirma que ele não buscará o Fundo Monetário Internacional (FMI) pois a dívida do país com o órgão já é muito grande.
No entanto, dado o histórico de calotes, a desconfiança dos mercados internacionais sobre a Argentina cresceu – motivo pelo qual o FMI se tornou o único a quem o país pode recorrer em busca de crédito nos últimos anos.
Fim do Banco Central?
A dolarização porém é apenas “a ponta do iceberg” nos problemas das propostas de Milei, segundo Oreiro, pois ele também propõe o fim do banco central.
Essa proposta também é considerada de difícil execução pelos especialistas. A professora Carla Beni explica que, para além de demandar a emissão de pesos pela Casa da Moeda, o Banco Central de la República Argentina possui outras funções definidas por lei, como a regulamentação do sistema financeiro. A questão não parece um problema para Javier Milei, que já se autodeclarou “anarcocapitalista”, termo referente a uma defesa da economia de mercado sem regulação do Estado.
Para Beni, o fechamento da autarquia criaria dificuldades sobretudo para os mais pobres. “Quando você desregulamenta o sistema financeiro, você impõe uma selvageria”, diz. “A manutenção do próprio capitalismo passa pela figura do Estado.”
Na mesma linha, Oreiro considera que as políticas econômicas do discurso de Milei poderiam levar a um colapso da economia argentina
“Se ele fizer metade do que está prometendo, vai ser um caos”.
José Luis Oreiro, da Universidade de Brasília (UnB)
André Roncaglia, professor de economia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), destaca que as críticas a proposta de Milei partem de diversos economistas do país e do exterior, da imprensa, além de entidades do mercado financeiro.
Armínio Fraga, que liderou a autoridade monetária no Brasil entre 1999 e 2003, o ex-governador do banco central mexicano, Guillermo Ortiz, e o ex-ministro das Finanças do Chile, Andres Velasco, também criticaram a proposta de dolarização em uma teleconferência na semana passada. Ortiz disse que a medida não conseguiria resolver “problemas estruturais”, enquanto Fraga disse que “parece uma solução mágica”.
Roncaglia destaca que a política monetária é outra função do Banco Central argentino, essencial para enfrentar os problemas econômicos.
“Você abrir mão dos instrumentos que te permitem coexistir com essa fragilidade, na minha visão, é literalmente antecipar a crise e levá-la até o limite do tolerável”.
André Roncaglia, professor de economia da Unifesp
A proposta de fechamento do Banco Central teria porém entraves políticos para implementação. Seria necessário aprovação pelo Congresso que, segundo as pesquisas, terá a maior parte das cadeiras ocupadas por parlamentes da esquerda.
Os impactos do dólar como moeda oficial
É difícil prever quais seriam as consequências caso as propostas mais radicais de Milei fossem implementadas. Carla Beni, da FGV, destaca que, devido à dificuldade de execução das medidas, a análise dos impactos torna-se um exercício de futurologia do impossível.
É possível destacar porém que a dolarização defendida por Milei não responde a outros problemas econômicos além da inflação. “Não resolverá por si só os principais desequilíbrios fiscais”, afirma Khatib, da FECAP. “A dívida externa vai continuar exatamente do mesmo tamanho”, concorda Oreiro.
Além disso, a adoção do dólar como moeda oficial deixaria as exportações argentinas desprotegidas diante de choques do mercado internacional. “Em um contexto em que o dólar, por exemplo, se valorizar sobre outras moedas (…) a competitividade das exportações argentinas vai diminuir”, diz Oreiro.
O professor André Roncaglia destaca ainda que a adoção do dólar como moeda oficial desencadearia um processo não linear e arriscado, de difícil previsibilidade. Poderia haver disparadas do consumo e remarcação dos preços em dólar com mais inflação, além de reajuste dos salários em dólar, também contribuindo para a perda de competitividade da indústria argentina. Outro desdobramento possível seria o crescimento da dívida em dólar.
Ahmed El Khatib destaca ainda consequências do projeto para o custo do acesso a serviços públicos. Provavelmente, seria necessário o fim da gratuidade na educação e o encarecimento das passagens no transporte.
Quanto a possíveis impactos para o Brasil, André Roncaglia considera que dificilmente haveria repercussão no câmbio. Porém, poderia haver bloqueios e dificuldades no comércio entre empresas brasileiras e argentinas. Crises migratórias também são uma possibilidade, porém o professor acredita que não chegaria a esse ponto, já que a economia argentina é forte, apenas está desarticulada. “Mas a história sempre supera a nossa capacidade de previsão”, reflete.
Críticas de economistas argentinos
Em uma carta aberta, economistas argentinos chamaram a proposta de dolarização do candidato presidencial Javier Milei de “miragem”.
Embora a promessa de uma moeda estável gere esperança, “a experiência internacional e a situação da nossa própria economia indicam que a proposta em questão está longe de ser uma panaceia e que, pelo contrário, poderá gerar múltiplas dificuldades para o nosso desempenho imediato e futuro”, escreveram.
“Não permitamos — por miopia e desespero — que a difícil situação em que nos encontramos nos encoraje a tomar um falso atalho que só levaria a uma frustrações nova e mais dramática”, acrescentaram.
Caminhos alternativos podem ser implementados
O discurso de Milei não encontra os mesmos ouvidos entre todos. O professor Walter Franco, de Economia no Ibmec SP, considera que as afirmações sobre fechar o Banco Central e adotar o dólar como moeda oficial não são literais.
“O discurso é inflado, mas ele tem na sua essência a necessidade preeminente de reforma do Estado argentino”
professor Walter Franco, de Economia no Ibmec SP
Para o economista, as falas sobre o fim do banco central na verdade indicam um desejo de diminuição da máquina pública. “Ele pode fazer política monetária dentro do próprio Estado de outra forma. O Brasil não tinha Banco Central até 1964”, recorda.
Franco também considera impossível a adoção do dólar como moeda oficial, porém acredita que poderia ser instituída uma forma de dolarização semelhante ao Plano Real, atrelando uma moeda local ao dólar. A medida serviria como solução emergencial para a inflação, enquanto se promove reformas mais profundas, com cortes de gastos e organização das contas públicas.
Implementado em 1994, o Plano Real atrelou o dólar às Unidades Reais de Valor (RUVs), uma moeda que ficava assim protegida da inflação que impactava o cruzeiro. Após alguns meses, o cruzeiro foi oficialmente encerrado e as RUVs tornaram-se o real como conhecemos hoje.
Não seria a primeira vez que a Argentina implementa um modelo semelhante ao Plano Real. O professor lembra que em 1991 o país vizinho já adotou medida similar para estabilizar a moeda durante o governo de Carlos Menem. Todavia, medidas do tipo demandam que o país consiga antes dólares para servir de “colchão”.
André Roncaglia também considera necessário que a Argentina adote um plano semelhante ao Real, mas sugere que talvez fosse mais viável fixar o câmbio em outras moedas, como o yuan chinês ou o próprio real brasileiro. “Tem gente que acha uma bobagem (…) só que essas moedas oferecem muito mais flexibilidade para Argentina”, diz. “É algo para os técnicos do Banco Central da Argentina estudarem profundamente”.
A professora Daniela Cardoso, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), destaca porém que hoje a Argentina não possui reserva suficiente de nenhuma moeda estrangeira. Independente do caminho a seguir, será necessário antes um empréstimo internacional.
Como o líder das pesquisas chegou lá
Javier Milei surpreendeu ao conseguir 30% dos votos nas primárias presidenciais argentinas, a frente do bloco conservador de oposição de Patricia Bullrich, que ficou em 28%, e da coalizão peronista liderada pelo ministrado da Economia, Sergio Massa, que recebeu 27%.
A popularidade do candidato sustenta-se sobre uma insatisfação generalizada da população com a classe política. “O último momento de melhora da economia argentina foi em 2003, com o Nestor Kirchner”, lembra Cardoso. Desde então, já houve governos do partido peronista e do conservador. Nenhum conseguiu resolver a questão econômica.
A inflação alta é outro ponto central para compreensão da popularidade de Milei. Com múltiplas causas, o problema perdura desde o começo da década de 2010 e agravou-se nos últimos anos. Em agosto, a escalada dos preços na Argentina chegou a 124% no acumulado de 12 meses. É a taxa mais alta desde 1991.
“A proposta de dolarização de Milei ganhou força na Argentina devido à esmagadora procura de estabilidade macroeconômica”, diz Ahmed El Khatib, da FECAP.
O professor José Luis Oreiro concorda que o cenário de decepção contribui fortemente para a frustração com a classe política e o apoio a um candidato considerado um outsider.
“Se ele for eleito é porque os argentinos votaram com o fígado, e não com o cérebro”
José Luis Oreiro, da Universidade de Brasília (UnB)
“É populista em um nível elevadíssimo, porque você está entregando uma facilidade para um tema extremamente complexo”, complementa Beni. Para ela, são grandes as chances de um governo de Milei sequer conseguir se sustentar até o final. “As propostas populistas atropelam instituições (…) e política econômica, antes de mais nada, é uma questão de política, feita tanto no Executivo como no Legislativo.”
Já para Cardoso, não é possível chamar Milei de populista, ou mesmo de direita ou de esquerda, já que suas declarações não parecem estruturadas sob nenhuma ideologia.
A professora concorda porém que o cenário de desilusão da população argentina é grande. Segundo ela, nenhum dos outros candidatos sequer discursa sobre política econômica na campanha por um motivo simples: “Qualquer pessoa séria que ganhe na Argentina terá que promover um arrocho.”
A Argentina realizará suas eleições gerais em 22 de outubro. Se nenhum candidato obtiver 45% dos votos ou pelo menos 40% com uma vantagem de 10 pontos percentuais, haverá segundo turno entre os dois mais votados em 19 de novembro.
(*com informações da Reuters e da Bloomberg)
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