A velha discussão sobre despejar dinheiro na economia para evitar que o navio naufrague está de volta. Se no passado, a solução de muitos governos foi emitir moeda — uma ação com efeitos colaterais traumáticos — o assunto da vez é o afrouxamento quantitativo (do inglês “quantitative easing”, ou QE). A medida consiste em criar dinheiro artificialmente e inundar o mercado pela compra de títulos públicos ou privados (entenda como funciona abaixo).
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A ferramenta não é nova. Foi muito usada pelos bancos centrais de economias desenvolvidas na década passada. O QE tem sido um dos remédios mais controversos no combate à crise financeira de 2008, tanto nos Estados Unidos como na Europa, e agora está de volta na guerra contra a pandemia do coronavírus. O Federal Reserve (BC norte-americano) anunciou um amplo programa de recompra de títulos.
De ‘mãos atadas’
Enquanto o Banco Central americano (Federal Reserve) anunciou a compra de títulos de hipotecas, crédito estudantil e até de veículos para conter os estragos da pandemia, o Banco Central do Brasil usou as ferramentas de sempre: voltou a reduzir a taxa Selic, agora para 3,75%, e cortou o compulsório (reserva obrigatória dos bancos) para aumentar os recursos e baratear o crédito.
Mas houve relatos de que os recursos não estavam chegando às empresas via bancos. Alguns setores reclamaram, inclusive, que os juros aumentaram e cresceu a resistência dos bancos para emprestar.
Por que o BC não segue os passos do Fed e compra títulos do setor privado? Porque o órgão não tem permissão para isso. A lei proíbe que o órgão transfira recursos para o setor privado, algo que ele só pode fazer por meio de bancos e entidades financeiras. Por esse motivo, o BC ficou de “mãos atadas” para levar liquidez às empresas que agora precisam de socorro.
O debate sobre devolver esse poder ao órgão surgiu esta semana. A Câmara discute uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), o chamado “Orçamento de Guerra”, que entre outras medidas permitiria que o BC passe a comprar e vender títulos privados de crédito, temporariamente. Entenda a PEC.
Já houve um tempo, no Brasil, em que o BC era livre para transferir dinheiro. Até 1986, o órgão mantinha a famosa “conta movimento”, que transferia recursos do Tesouro para o Banco do Brasil e financiava o setor público. “Boa parte das despesas do governo não passava pelo orçamento da União”, lembra o economista Alexandre Schwartsman.
Da liberdade à hiperinflação
O resultado foi um descontrole que veio de encontro com a hiperinflação, fantasma que assombra o país até hoje. A situação perdurou durante a década de 1980, até chegar ao auge entre 1989 e 1990, quando os preços chegaram a acelerar a um ritmo de 80% por mês.
Para evitar o repasse ilimitado de recursos do BC, a solução foi cortar esse “cordão umbilical” e impor regras mais rígidas. Hoje, o BC brasileiro é um órgão autônomo, mas não independente. “Existe um impedimento legal para o BC agir diretamente nas empresas”, explica o professor de economia da Universidade de São Paulo (USP), Simão Silber.
Em sua avaliação, seria perigoso flexibilizar essa independência agora que a situação fiscal do país é delicada. “Não é o que acontece com os Estados Unidos, que têm equilíbrio nas contas. Isso exigiria muito cuidado, pois não vivemos nada parecido nos últimos 100 anos”, diz Silber.
Schwartsman observa que, enquanto a taxa de juros de um país estiver acima de zero, não é preciso recorrer ao QE, mas a discussão agora é se o Congresso deve dar ao BC os instrumentos para agir como o Fed, que atuou diretamente no setor privado. “Não haveria um efeito parecido no Brasil, porque nossas finanças não estão em bom estado e essa ação precisa ser limitada”, diz.
Em situações normais, os economistas avaliam que não seria uma boa ideia dar munição para o BC intervir de forma tão direta. Mas diante de uma pandemia sem precedentes, este poderia ser o remédio “menos pior”. “Se a linha de crédito com os bancos não chegar às empresas, vamos ter problemas, então talvez seja preciso engajar o BC para prover crédito para o setor privado”, diz Schwartsman.
7 QUESTÕES EM JOGO
Veja respostas por trás do papel dos BC para emitir moeda e comprar títulos:
1 – Como os BCs ‘criam’ dinheiro com o QE?
O “quantitative easing” (afrouxamento quantitativo) acontece quando um Banco Central cria uma quantidade “artificial” de dinheiro para injetar na economia. Ele não imprime notas e joga no mercado. É um pouco mais complexo: ele cria recursos digitalmente, em sua própria conta, e usa este dinheiro novo para comprar dívida, na forma de títulos públicos ou privados.
Ao fazer isso, o valor dos títulos sobe e eles ficam menos atraentes. O mercado percebe isso e prefere investir ou fazer empréstimos. Assim, os bancos têm mais recursos para emprestar a juros mais baixos, e isso reduz o custo do crédito e aumenta o consumo, o que acaba incentivando o crescimento da economia. Depois, o BC “destrói” os recursos que criou para evitar que isso acelere a inflação.
2 – Por que comprar títulos na crise?
O objetivo da compra de títulos públicos (Tesouro) ou privados (crédito de empresas) é aumentar a oferta de dinheiro na economia e, por consequência, estimular investimentos e a atividade econômica em retração. Depois que esse objetivo é alcançado (quando o estímulo surte efeito), os bancos centrais se desfazem dos títulos que compraram e “destroem” este dinheiro artificial, para não gerar um descontrole monetário com efeitos nocivos.
3 – Quais os efeitos colaterais da medida?
Bastante controverso, o afrouxamento quantitativo foi muito criticado após a crise de 2008, por não ter gerado o efeito que se esperava para corrigir os problemas financeiros e econômicos. Um dos efeitos mais diretos é o aumento da inflação, já que quando se colocar mais dinheiro em circulação, a oferta fica pressionada e os preços sobem. Outra preocupação para países com problemas fiscais (déficit público, com despesas maiores que a arrecadação) é o descontrole da dívida pública e o desequilíbrio das contas.
4 – Quando o QE passou a ser adotado?
O Japão foi o primeiro a adotar a medida em 2001, durante o estouro de uma bolha imobiliária no país. Mas o QE só foi aplicado em larga escala após a crise de 2008 pelos Estados Unidos e União Europeia.
O Federal Reserve adotou o afrouxamento quantitativo entre o início de 2009 até outubro de 2014. O Banco Central do Japão, pioneiro, voltou a adotar a medida em 2011, enquanto o BC inglês iniciou em 2009 e usa o remédio até hoje. Na Suécia, o Banco Central aderiu ao programa em fevereiro de 2015. E em 2019, o Banco Central Europeu anunciou a expansão do QE.
5 – Como agiu o Fed diante da pandemia?
Ao perceber que o coronavírus teria sérios efeitos sobre a economia, em uma única semana, o BC americano se comprometeu a comprar pelo menos US$ 500 bilhões em títulos do Tesouro e outros US$ 200 bilhões em títulos de hipotecas. Essa quantia é mais que os US$ 600 bilhões que o órgão comprou em títulos entre novembro de 2010 e junho de 2011, após a crise financeira
No final de março, o Fed anunciou um novo programa de recompra de títulos para ampliar a liquidez no sistema financeiro, dessa vez voltado a outros bancos centrais, em vigor a partir de 6 de abril e com duração de seis meses. Assim, outros BCs com contas abertas no Fed de NY poderão vender seus títulos do Tesouro americano para o Fed em troca de dólares.
Em paralelo, o governo americano aprovou um pacote de medidas que soma US$ 2 trilhões (R$ 10,5 trilhões) em estímulos. É mais do que o PIB do Brasil, que no final de 2019 somava R$ 7,3 trilhões.
6 – Por que o BC do Brasil não adota o QE?
Diferentemente de outros órgãos, o BC brasileiro não tem independência para comprar títulos de crédito privado. O QE tem sido adotado por mercados desenvolvidos quando as taxas básicas de juros estão próximas de zero e, portanto, não servem mais como estímulo. O Brasil tem um histórico econômico bem diferente destes países, marcado por hiperinflação e taxas estratosféricas de juros.
Em vista disso, o BC brasileiro sempre lançou mão de outras ferramentas de política monetária: redução do compulsório (reserva obrigatória dos bancos) para estimular o crédito e manipulação da taxa básica de juros, para alcançar as metas de inflação.
7 – A impressão de dinheiro gera crises?
Um exemplo que deu errado aconteceu na Alemanha após a Primeira Grande Guerra. O governo emitiu moeda nova para pagar o preço da crise econômica deixada pelo conflito. O resultado foi uma das piores hiperinflações que se conhece, chegando a 29.500% por mês (ou cerca de 20% por dia).
No cálculo dos economistas Steve H. Hanke e Nicholas Krus, da Universidade Johns Hopkins (EUA), todo o dinheiro que circulava no país em 1923, 10 anos depois, só valia para comprar um quilo de pão.