O Drex foi “desligado”. Mas calma: isso não significa que ele deixou de existir ou flopou de vez. Na realidade, o Banco Central decidiu aposentar a partir da segunda-feira (10) a plataforma de tecnologia usada até agora no projeto. Uma nova deve entrar no lugar. Motivo? O órgão ainda não conseguiu resolver completamente as questões de privacidade.

Mas o que isso significa na prática? Vamos explicar.

O Drex começou a ser discutido em agosto de 2020 (nem parece que faz tanto tempo!). Desde lá, passou pelas fases 1 e 2. Nessas etapas, ele funcionou em uma blockchain – a tecnologia que estreou com o bitcoin, em 2009. Existem várias blockchains no mercado hoje, e a solução específica escolhida para o Drex foi a Hyperledger Besu, que opera na rede do ethereum, onde roda a segunda maior criptomoeda de hoje.

Uma blockchain pode ser pública ou privada. A do bitcoin, por exemplo, é pública: qualquer um pode ver as transações. Já a privada pode ser adaptada para um projeto específico, com acesso restrito a pessoas autorizadas. A Hyperledger Besu, escolhida pelo BC em 2023, se enquadra nessa segunda categoria.

Nos últimos anos, o Banco Central realizou testes nessa plataforma para verificar se elas garantiam privacidade e segurança nas transações. Vários participantes, como bancos, fintechs e empresas de tecnologia, foram convidados a desenvolver projetos-piloto, como crédito com títulos públicos como garantia.

Aqui vale uma segunda camada de explicação.

O Drex não é exatamente uma moeda. É um sistema. O dinheiro e os títulos públicos coabitam esse mesmo sistema, essa mesma blockchain. O dinheiro fica na forma de “real digital” – moeda emitida pelo BC dentro dessa blockchain, e que tem o mesmo valor do real. Os títulos públicos, do outro lado, são “tokenizados”. Ou seja: ganham uma espécie de avatar dentro da blockchain.

Parece irrelevante. Mas isso muda tudo. Com o dinheiro e os títulos rodando na mesma rede, abre-se uma possibilidade interessante. Você faz, digamos, um empréstimo e deixa títulos públicos que comprou no Tesouro Direto como garantia. Se você não pagar, o sistema pega os seus títulos e passa para o nome do credor. De forma automática, sem burocracia ou judicialização. O nome técnico disso é “contrato inteligente“, uma tecnologia que surgiu com a rede do ethereum, em 2014.

E as possibilidades de contrato inteligente vão além. Numa realidade com o Drex operante, o Detran poderia tokenizar os registros de posse dos automóveis dentro do sistema do BC. Aí você pega seus reais, converte em Drex e compra um carro. Pronto: o documento do veículo iria automaticamente para o seu nome, sem burocracia. A mera transferência de dinheiro já valeria por um registro em cartório com firma reconhecida – já que tanto o dinheiro como o registro do carro estariam rodando na mesma rede, falando a mesma língua. 

É isso. Eram versões iniciais desse tipo de coisa que o BC estava testando. No decorrer, porém, encontraram alguns problemas. A maior parte tem a ver com privacidade. Não foi possível garantir confidencialidade absoluta das transações em conformidade com Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

Vamos para um exemplo completamente lúdico. Num mundo com Drex, um banco registra que a carteira digital 0xABC… pertence ao cliente Enzo, CPF 123.456.789-10.

Pela LGPD, e sob circunstâncias bem específicas, Enzo tem o direito de exigir que essa informação seja excluída de registros. Mas numa blockchain não existe botão delete. Escreveu uma vez, fica registrado para sempre. E não dá para “consertar” isso. Sistemas de blockchain só funcionam se os registros ali forem imutáveis. Não há a quem apelar. E aí a coisa bate-cabeça com a LGPD.

Mais. O Drex exige um modelo em que a identidade dos participantes fosse verificável para o BC e instituições autorizadas, mas totalmente preservada para terceiros – um equilíbrio que as soluções testadas ainda não conseguem entregar de forma robusta, escalável e juridicamente segura.

“Em resumo, não se trata de uma falha específica da Hyperleger Besu, mas sim de uma constatação: de que, na maturidade atual, a tecnologia blockchain ainda não atende, simultaneamente, aos requisitos de privacidade regulatória em escala sistêmica”, diz Cauê Duarte, sócio da Nexa Finance Duarte.

BC reconheceu limitações

Em um relatório publicado no início deste ano, o BC reconheceu os problemas e disse que, apesar de avanços importantes na direção de manter o sigilo dos usuários, as soluções testadas apresentaram limitações que, por enquanto, comprometem a adoção do sistema.

O que o mercado achou de tudo?

Entre os players do mercado, o movimento não foi visto como um fracasso, já que o projeto piloto permitiu atuar ao lado do regulador e evidenciar os benefícios que a tecnologia pode trazer.

“A fase 2 do piloto Drex cumpriu seu papel, como esperado pelo BCB. As tecnologias foram avaliadas pela perspectiva do regulador e, segundos seus critérios, dentro de um escopo bastante amplo e ambicioso, demostraram necessidades de evoluções para atendimento completo”, disse André Carneiro, CEO da BBChain, em nota.

Marlyson Silva, presidente do grupo Transfero, disse que a decisão do Banco Central de encerrar o projeto Drex e começar uma nova infraestrutura digital reflete um movimento natural de amadurecimento, “mas também evidencia a necessidade de foco e clareza de propósito em projetos dessa escala”.

A blockchain morreu para sempre no Drex?

Em agosto deste ano, em um evento no Rio, membros do BC já haviam sinalizado que a blockchain poderia ser descartada do projeto. Mas essa informação não foi confirmada oficialmente pelo BC. A reportagem entrou em contato, mas a autarquia federal preferiu não comentar. A fase 3 do Drex, porém, ainda está de pé e deve começar no início de 2026. Com qual tecnologia? Ninguém sabe ainda.