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Economia

Saídas para a crise: a era do controle de gastos está perto do fim?

As comparações com o período de guerra aumentam na pandemia e remodelam a discussão sobre o papel do Estado na economia.

Saída da crise

Depois de ficar por um tempo fora dos holofotes na crise pandêmica do coronavírus, preocupado em desalinhar as estratégias do governo, o ministro da economia, Paulo Guedes, reapareceu no final de março em uma live de uma corretora de investimentos e disse a seguinte frase: “Nós fomos atingidos por um meteoro. O que aconteceu é um meteoro. Mas nós sabemos sair da formação. Vamos combater o meteoro.”

Sobre o combate, Guedes afirmou, na ocasião, que “quando você coloca tudo isso junto [todas as medidas do governo], já passou de R$ 750 bilhões. Está subindo. Já estamos em 4,8% do PIB. Vai ser realmente um déficit primário extraordinário [gasto público maior que a arrecadação]”. Somando os recursos disponibilizados pelos bancos estatais (Caixa, BB e BNDES), o impacto das medidas já chega a R$ 867 bilhões.

Ataque no campo tributário

Pesquisadores do Núcleo de Tributação do Centro de Regulação e Democracia do Insper fizeram um levantamento, divulgado no dia 30 de março, apontando a adoção de 166 medidas tributárias por 43 países para combater os efeitos do novo coronavírus na economia. Eles concordam que há algo de extraordinário nas medidas. Só que consideram a ação do governo brasileiro “tímida” no campo tributário, quando feita a comparação com outros países.

Segundo o levantamento, a maioria dos países tem seguido a indicação da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de postergar o prazo de pagamento de tributos, sobretudo quando eles incidem sobre renda e consumo, com efeito direto sobre as pessoas e empresas. Até agora, o governo prorrogou o pagamento de tributos como o Simples Nacional, adiou o FGTS dos trabalhadores, reduziu a contribuição obrigatória do Sistema S e o IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) das operações de crédito, entre outras medidas (veja mais abaixo).

Perdão de dívidas

No exterior, a onda de austeridade (o rigor no controle de gastos públicos) que tomou conta do mundo desenvolvido na última década parece ter tomado uma nova forma, que passou a ser chamada de “orçamentos de guerra”. O Peterson Institute for International Economics, gabinete estratégico com base em Washington, tem pautado para o G20 uma interrupção no pagamento das dívidas dos países mais afetados.

O economista Rupert Harrison, uma vez líder do programa de corte de gastos conduzido no Tesouro britânico, anunciou sua opinião sobre a crise. “Nós vamos ter que pensar criativamente sobre o perdão de dívidas”, disse em um tweet, se referindo ao trabalho do Treasury da rainha.

O chefe do Comitê Estratégico do Tesouro Francês, Jacques de Larosière, também expôs sua opinião no sentido do endividamento. Na semana passada, em artigo, disse que algumas dívidas soberanas irão precisar de reestruturação pelo risco de ficarem insustentáveis.

Aqui no Brasil, novidades neste sentido ainda demoram a chegar. Mesmo assim, o atual secretário de Fazenda e Planejamento de São Paulo, e ex-candidato a presidência, Henrique Meirelles, apareceu na mídia apontando uma solução para a crise. Em entrevista à BBC News Brasil disse: “O Banco Central tem grande espaço para expandir a base monetária, ou seja, imprimir dinheiro, na linguagem mais popular, e, com isso, recompor a economia. Não há risco nenhum de inflação nessa situação”.

VEJA MAIS: Por que o governo não imprime dinheiro para resolver a crise econômica?

O consenso de que o estímulo do Estado será crucial para achatar a curva da recessão econômica é cada vez mais abrangente – algo que vai na contramão do que vem sendo discutido nos últimos tempos, na era do controle de gastos. Por isso, nesta reportagem, vamos analisar como são e como poderiam ser, sob a perspectiva dos economistas, as medidas do governo até agora, dividindo-as em três seções estratégicas, admitidas pela equipe econômica:

  1. política monetária e fiscal;
  2. linhas de crédito;
  3. transferência direta de renda.

1 – Política monetária e fiscal

Um livro publicado pelo Centro para Pesquisa Econômica e Política (CEPR, na sigla em inglês), em parceria com a Vox Media, compilou argumentos de grandes economistas do mundo todo sobre os remédios econômicos em tempo de pandemia. Na introdução, o eBook intitulado Mitigating the COVID Economic Crisis: Act Fast and Do Whatever It Takes (Mitigando a Crise Econômica do COVID: Aja Rápido e Faça o Que For Preciso, em tradução livre) apresenta o seguinte gráfico:

arte curva covid

Governos ao redor do mundo, não só no Brasil, encararam a situação descrita acima como um impasse, ou no jargão econômico, um zero sum game (um jogo de soma zero), no qual só uma parte pode sair ganhando. A Secretaria Especial de Comunicação (Secom), órgão da presidência, inclusive ensaiou uma campanha chamada “O Brasil Não Pode Parar”, que agora é alvo de ação no Supremo Tribunal Federal (STF).

Na mesma introdução mostrando a correlação entre recessão e medidas de isolamento na pandemia, o livro expõe duas premissas que contradizem um dos lados desse cabo de guerra. A primeira: “a recessão é uma necessidade médica”. E a segunda é que os impactos da pandemia chocam a economia de três formas diferentes: pela mudança de expectativa do mercado diante de uma crise sem precedentes; pelas medidas de isolamento social e contenção, sim; mas também inevitavelmente, pelas baixas médicas, “por que trabalhar doente não produz”.

O estudo mostra que não se pode escolher apenas um lado da balança, como propõe o alinhamento do governo federal. O ministro da economia, Paulo Guedes, parece ter esse entendimento quando caracteriza a crise como um “meteoro”, mas de início apenas mexe as peças que mais tem controle.

No mês de março, quando o número de casos ainda não tinha passado de 100, a maioria das medidas eram pensadas dentro do orçamento previsto, um remanejamento de recursos. A antecipação da primeira metade do 13º salário de aposentados e pensionistas do INSS, anunciada no dia 12 de março, e o reforço no programa Bolsa Família, no dia 15, são exemplos.

As medidas monetárias ou fiscais mais importantes vieram nesses primeiros momentos. No dia 18, foi permitida a prorrogação do pagamento de tributos do Simples Nacional por seis meses. No dia 20, com ajuda do Senado, o governo decretou calamidade pública, abrindo uma folga no orçamento. E no dia 23, saiu uma das medidas mais discutidas entre os economistas: a liberação de R$ 1,2 trilhão em recursos para os bancos.

Para o professor de economia da Universidade do Extremo Sul Caterinense (Unesc), Dimas de Oliveira Estevam, o recurso em forma de compulsórios bancários (dinheiro que os bancos são obrigados a guardar no BC para regular a liquidez da economia), foi liberado em “boa hora”. Segundo ele, a medida do Banco Central “favorece a liberação de crédito e diminuição dos juros”, sem negar a importância dos bancos públicos na disseminação dos recursos.

Já o professor de economia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Arlindo Villaschi, tem maior desconfiança no sistema financeiro atual para considerar a medida pertinente. Citando artigos do editor do jornal “Financial Times”, Martin Wolfe, e falas do ex-presidente do banco central britânico (BoE, na sigla em inglês) Mark Carney, ele inclui sua opinião: “o paradigma da acumulação exclusivamente em cima da especulação financeira já deu sinais de impossível recuperação”.

Para ele, existe um oligopólio bancário, sobretudo no Brasil, que cria dificuldades para intermediar a salvação do setor produtivo na crise. O próprio ministro da economia, em videoconferência com representantes do setor de varejo, afirmou que os recursos ficaram “empoçados no sistema financeiro”.

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Entre outras medidas, como reduzir à metade as contribuições das empresas ao Sistema S por 3 meses, zerar a cobrança de Imposto Sobre Operações Financeiras (IOF) de operações de crédito e isentar consumidores de baixa renda do pagamento da conta de luz, a que ainda está em disputa é o pacote de recursos para Estados e Municípios. Principalmente, porque o governo está mobilizando sua base no sentido de culpar os governadores pelas medidas de isolamento social.

Dimas lembra que “a maior parte da receita arrecadada pelos impostos ainda pertence ao governo federal”. No dia 23 de março, o presidente Jair Bolsonaro anunciou um pacote inicial de R$ 85,8 milhões composto de transferências para a área de saúde, recomposição de repasses de fundos constitucionais e suspensão do vencimento de dívidas dos estados com a União.

2 – Linhas de Crédito

Ainda no início dos casos de coronavírus no Brasil, no dia 16 de março, o Conselho Monetário Nacional (CMN) aprovou medidas que facilitam a renegociação de dívidas pelas empresas e pessoas físicas, e facilitam a concessão de crédito pelos bancos.

Para Dimas, as concessões de crédito poderiam ser ainda mais facilitadas, com prazos estendidos e juros baixos. “Os micro e pequenos empresários foram deixados com ações muito modestas do governo”.

Villaschi pensa mais estruturalmente. Em muitas de suas pesquisas com pequenos empresários, descobriu que eles só utilizam os bancos para capitalização em último caso. “Preferem até um agiota, porque não exigem compra de cartão de crédito, seguros e outros penduricalhos”. Para ele, seria mais ainda necessária a presença dos bancos públicos Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), que passam por um longo processo de desinvestimentos (venda de ativos).

Só o BNDES anunciou uma venda de R$ 38,8 bilhões em ações como parte do seu programa de desinvestimentos de 2020. Em 2019, os três bancos públicos venderam R$ 36,5 bilhões em ativos, conforme balanço divulgado pelo secretário especial de Desestatização do Ministério da Economia, Salim Mattar.

Para a crise, o governo mobilizou esses bancos anunciando novas linhas de crédito. Por exemplo, a Caixa prometeu 6 meses de carência nas prestações de novos contratos habitacionais e o BNDES permitiu a suspensão de cobrança de empréstimos por 6 meses e a injeção de R$ 55 bilhões na economia, o equivalente a quase todo o desembolso feito em 2019.

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3 – Transferência direta de renda

Quando se pensa na transferência direta, logo vem a lembrança do auxílio emergencial, também apelidado de coronavoucher, de R$ 600. Mas a verdade é que esse foi um dos últimos recursos. A equipe econômica primeiro trabalhou com remanejamentos e adiantamentos, no Bolsa Família e nos pagamentos que competem ao INSS. Chegou até a propor um aporte menor para os informais, de R$ 200.

Dimas considera que a medida é boa, já que, além de ajudar os mais vulneráveis a cumprir a quarentena, vai estimular o consumo. Villaschi observa porém que a ação foi mal estruturada por esperar que essa parte da população tenha acesso a contas, e até pior, um celular com internet para baixar um aplicativo. “São pessoas extremamente precarizadas e que precisam muito do dinheiro”, completou.

A mudança de R$ 200 para R$ 600 detalha mais um episódio de articulação do governo no legislativo. Durante a pandemia, a Câmara e o Senado têm tentado cada vez mais protagonismo nas propostas, primeiro aumentando o valor do auxílio, e agora surge outro impasse quanto à restituição de impostos pelos estados.

A Câmara aprovou na segunda-feira (13) um projeto que restitui, por seis meses, as perdas de estados e municípios com a arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS, estadual) e com o Imposto Sobre Serviços (ISS, municipal). Não sem protesto do ministro da economia. Paulo Guedes declarou que recompor todo o ICMS seria ‘cheque em branco’ para estados mais ricos.

Folhas de pagamento

O Brasil tem um capítulo à parte nas saídas para a crise. Isso porque, na contramão da tendência internacional, optou por salvar empregos, tornando-os precários. A crítica, inclusive dos economistas ortodoxos, é de que além de aumentar a vulnerabilidade daqueles que vivem do trabalho, a falta da renda vai diminuir ainda mais o consumo.

O presidente editou medida provisória no dia 22 de março, que altera uma série de regras trabalhistas em meio à pandemia. Antes de recuar, Jair Bolsonaro tinha incluído um dispositivo que tornava possível a suspensão do contrato de trabalho por quatro meses.

No dia primeiro de abril, uma nova medida regulamentava os cortes nas jornadas, seguindo uma reposição salarial através do seguro-desemprego. Ainda sim, um corte na renda do trabalhador que pode afetar o consumo e levar a economia para uma recessão ainda maior.

Citando um artigo da revista “The Economist” que fala da especulação no mercado de crédito antes mesmo da crise de 2008, Villaschi conclui: “Não é falta de sensibilidade dessas pessoas que causa o descompasso das medidas, mas existe um vazio entre quem tem os recursos e quem precisa deles.”

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