O governo encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) para voltar a ter o voto de qualidade (decisivo) em caso de empate nos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Na prática, se a medida for aprovada, ela pode aumentar a arrecadação para os cofres públicos. Porém, especialistas ressaltam a possibilidade de demora maior nos processos e até aumento da inadimplência.
O Carf é responsável por julgar em nível administrativo litígios tributários (disputas entre empresas e o Governo Federal em relação a pagamento de impostos). Embora o governo possa ter mais chances de aumentar as arrecadações se o PL for aprovado, especialistas apontam que as discussões poderão se prorrogar para o âmbito judicial – ou seja, mesmo que as contas públicas sejam beneficiadas, isso deve demorar para ter algum efeito sobre os números.
A discussão acontece em um momento em que o governo está em busca de receitas enquanto espera a aprovação do novo arcabouço fiscal. O PL vem para substituir a Medida Provisória (MP) 1.160/2023, editada no começo do ano.
Governo x empresas
Em 2020, uma alteração nas regras retirou do governo a prerrogativa de dar o voto decisivo durante os julgamentos do Carf. A mudança significa efetivamente que, quando os votos dos conselheiros representantes do setor privado e público resultarem em empate, a decisão é, por padrão, favorável às empresas. Após o julgamento, o governo, por sua vez, não pode recorrer.
Assim, enquanto uma mudança poderia ajudar o governo a arrecadas mais, a regra atual tem beneficiado as empresas, conforme explica Andreia Moraes Silva, sócia da Scharlack Advogados.
“Nessa hipótese, não há nenhuma medida que a Fazenda Pública possa adotar no Judiciário. Por sua vez, o contribuinte vencido no Carf pode acionar o Judiciário para questionar o auto de infração julgado procedente no Carf”, acrescenta Silva.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem criticado duramente o mecanismo. “Eu gostaria de julgar também meus próprios casos como todas as empresas estão fazendo hoje. Sinceramente, é uma vergonha o que está acontecendo no CARF. Não existe nenhum país do mundo com esse sistema de solução de litígio administrativo”, afirmou em janeiro.
Desse modo, Ruy Fernando Cortes de Campos, sócio do Maia & Anjos Sociedade de Advogados, pontua que existe uma grande expectativa do governo que a mudança acarrete um aumento da arrecadação pela União.
Isso porque é bastante provável que a grande maioria dos julgamentos que terminem empatados passem a ter o voto de qualidade em desfavor dos contribuintes e, consequente, encerrem a fase administrativa com a manutenção das autuações (ou seja, determinando o pagamento do imposto supostamente devido). Neste cenário, é esperado que os contribuintes realizem a quitação dos débitos.
Outras consequências
Apesar da expectativa, existem, dúvidas sobre outras consequências que a medida teria, como uma demora ainda maior para a conclusão dos processos.
“Não se pode descartar que as discussões se prorroguem para o âmbito judicial e acarretem não só o não pagamento imediato dos tributos, mas também um aumento do contencioso tributário judicial e uma demora ainda maior no deslinde das demandas levadas ao Poder Judiciário que já se encontra com um alto volume.”
Ruy Fernando Cortes de Campos, sócio do Maia & Anjos Sociedade de Advogados.
Na mesma linha, Alessandro Barreto Borges, sócio da área tributária de Benício Advogados, menciona que, se o PL for aprovado, “sem dúvida haverá aumento da litigiosidade no Judiciário, visto que discussões controversas de ordem conceitual retomarão a tendência de manutenção, obrigando os contribuintes a levar o tema para discussões em ações anulatórias e execuções fiscais”.
Ele ainda acrescenta que, no caso das empresas que não consigam prestar as garantias para ter acesso ao Judiciário, poderá haver um maior cenário de inadimplência tributária com consequente aumento da dívida ativa da União.
“Não se vê vantagens para os contribuintes com o voto de qualidade, este apenas se presta para atendimento dos interesses da União Federal. O restabelecimento do voto de qualidade, apesar de todas explicações dadas pelo governo federal, tem no final do dia apenas um viés arrecadatório.”
Alessandro Barreto Borges, sócio da área tributária de Benício Advogados.
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Carta da OCDE
A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) enviou no final de março uma carta ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, contestando o funcionamento do Carf.
De acordo com a OCDE, o fim do chamado “voto de qualidade” em 2020 não tem paralelo com a maioria dos países avaliados pelo órgão, já que eles possuem alguma forma de processo de apelação administrativa, mas não de forma que envolva representantes do setor privado no processo de revisão da tomada de decisões.
“Em vez disso, as revisões são realizadas por autoridadades governamentais da administração tributária ou do Ministério da Fazenda”, disse a OCDE na carta, datada de 31 de março.
*Com informações da Reuters.
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