Em 1994, no início do Plano Real, uma nota de R$ 100 comprava praticamente uma cesta básica e meia, na cidade de São Paulo. No entanto, até junho de 2022, os mesmos R$ 100 não pagavam sequer 13% do preço da sacola de produtos, de acordo com dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Os dados foram colhidos como parte da série especial de Infográficos do InvestNews.
De junho para agosto, o valor da cesta básica caiu em São Paulo, de R$ 777,01 para R$ 749,78, diferença de R$ 27,23. A análise acima não considerou o mês mais recente porque, de acordo com a entidade, os bancos de dados da pesquisa estão em “sistematização e mudança”, sem a possibilidade de disponibilizar individualmente o preço de cada um dos produtos ilustrados no infográfico. Hoje, R$ 100 equivalem a 13,33% do atual preço da cesta de produtos.
Pesquisas do Dieese apontam que, no início do Plano Real, uma cesta básica com determinado volume de produtos selecionados custava, em média, R$ 67,40. Isto quer dizer que, de lá para cá, até junho de 2022, quando a sacola de produtos custava R$ 777,01, houve uma alta de 1.052,9% no preço do grupo de alimentos. Até agosto, quando a sacola de produtos custava R$ 749,79, a correção foi de alta acumulada de 1.012,4%.
Por outro lado, de acordo com a calculadora do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (IPCA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que permite atualizar um valor pela variação da inflação entre duas datas, o preço inicial da cesta básica corrigido até junho deveria ter sido de R$ 507,56. Ou seja, o percentual total de alta pelo indicador, considerado a “inflação oficial no Brasil”, no intervalo de tempo, seria de 653,05%. Até agosto, o preço corrigido deveria ter sido de R$ 502,29, com alta de 645,24%. Então, esses deveriam ter sido os valores corretos do ajuste no preço dos alimentos?
De acordo com Fabrício Silvestre, economista no TC Matrix, esse cruzamento de dados não é efetivo porque o IPCA aponta a variação do custo de vida médio de famílias com renda mensal de 1 a 40 salários mínimos. Isto quer dizer que é um cálculo de inflação baseado na média de gastos de grupos com condições socioeconômicas distintas e que considera não só o preço de alimentos, mas também de moradia e transporte, por exemplo. Portanto, segundo ele, o aumento do custo da cesta básica, visto nos resultados das pesquisas do Dieese, tende a ter impacto suavizado no IPCA.
Ele explica que “isso ocorre porque a participação de renda na cesta básica diminui à medida que a renda aumenta. Ou seja, famílias que ganham um salário mínimo consomem quase toda sua renda em cesta básica, mas famílias que ganham 10 salários mínimos provavelmente gastam menos de 50% da sua renda com alimentação. Portanto, a inflação do grupo alimentação reduz de maneira mais intensa o poder de compra das famílias de menor renda”.
O economista do TC Matrix acrescenta que “sempre existirão bens e/ou serviços acumulando altas/baixas maiores ou inferiores ao IPCA, observado as condições específicas de oferta e demanda”.
Quanto custava cada produto da cesta básica?
A mudança dos preços dos alimentos do início do Plano Real até junho foi exorbitante. Entre os produtos que tiveram as maiores altas, o tomate foi o que mais se destacou, com elevação de valor de 1439%. Na sequência, veio a carne e a banana, com alta de 1364% e 1208%, respectivamente.
R$ 100 de 1994 hoje valem R$ 13?
Ao corrigir R$ 100 pelo IPCA acumulado ao longo destes 28 anos até agosto, o montante passou a equivaler a R$ 13,42 da época, considerando que o indicador avançou 645% no período. “Em outras palavras, houve uma redução do poder de compra dos R$ 100 durante o período, de cerca de R$ 86,55”, segundo o economista da TC.
Qual era o valor do salário mínimo no início do Plano Real?
No início do Plano Real, a menor remuneração era de R$ 64,79, praticamente o preço da cesta básica (R$ 67,40), que era ainda maior. Segundo o Dieese, o salário mínimo considerado necessário para o sustento de uma família na época era de R$ 590,33. Atualmente, o cenário se repete: a remuneração mínima é inferior ao que se aponta como essencial. Em agosto deste ano, o salário mínimo estava em R$ 1.212, no entanto, também de acordo com o Dieese, o ideal seria que fosse de R$ 6.298,91.
Idean Alves, sócio e chefe da mesa de operações da Ação Brasil Investimentos, explica que “o salário mínimo não é ajustado para o necessário para conter o gênio da inflação dentro da lâmpada”. Isto é, a remuneração não é elevada porque geraria um problema fiscal e, como consequência disso, poderia haver mais alta dos preços dos produtos e serviços no país.
Ele comenta que a economia brasileira demorou “muitos anos para controlar a inflação dentro ou próximo da meta – e isso com o preço de um salário mínimo muito defasado. E para que o salário mínimo possa ficar mais próximo da realidade do que deveria ser, seria preciso ter um ganho de produtividade e maior qualificação da mão de obra”.
No entanto, Alves acrescenta que ainda assim essas ações não resolveriam totalmente o problema, “mas sem dúvida ajudariam a reduzir a diferença, além de representar muito do caminho seguido pelas principais economias do mundo”.
“Assim, o país mesclaria do modelo de economia primária, focada em commodities e indústrias, e conseguiria ganhar mais valor por hora trabalhada em serviços e tecnologia”, conclui.
Na mesma linha, Christopher Galvão, analista de renda fixa na Nord Research, comenta que o ajuste do salário mínimo real para o salário mínimo necessário não é algo tão simples. Ele explica que “se há um aumento de salário, não somente os salários vão aumentar, os gastos públicos vão subir muito [também]”, o que desencadearia em problemas fiscais.
Para Galvão, o país precisa de políticas econômicas de médio e longo prazo relacionadas à qualidade da educação e ao aumento de produtividade. “Se você tem um país com boa educação e boa produtividade, com o passar do tempo, naturalmente os salários ficariam maiores, porque a população ficaria mais produtiva e, consequentemente, receberia mais”, pontua.
Como está o poder de compra do brasileiro hoje?
A situação do poder de compra está diretamente ligada à inflação e ao salário que a população recebe. Se há um aumento do preço dos produtos e serviços, seja por alta demanda, encarecimento de produção ou qualquer outra razão, e não há um aumento de salários, o poder aquisitivo da sociedade diminui.
De julho de 1994 a agosto de 2022, o IPCA acumulou alta de 645%. E, nos últimos 12 meses, também até agosto deste ano, o indicador subiu 8,73%. No entanto, houve um alívio de julho para agosto, com o índice apresentando uma queda mensal de 0,36%.
O câmbio é um dos principais agentes econômicos que movimenta os níveis de inflação. Isto porque, quando o dólar sobe frente ao real, os preços dos produtos e insumos importados ficam mais elevados, o que faz com que a economia brasileira pague mais caro pelo que vem de fora.
Alves, da Ação Brasil Investimentos, explica que o Brasil é um país que depende muito de importação, portanto “toda vez que o dólar sobe impacta não só o nosso custo de importação, mas de logística também”, já que os combustíveis são cotados na moeda estrangeira, o que faz com que o país perca ainda mais e tenha o poder de compra reduzido.
Sendo assim, a desvalorização da moeda nacional (que ocorre quando o país exporta menos, recebe menos dinheiro de investidores estrangeiros ou tantas outras razões) pode impactar fortemente o preço dos produtos e serviços dentro do país – o que tem seu resultado visto no longo prazo.
Por outro lado, de acordo com Silvestre, do TC Matrix, o salário mínimo atual (R$ 1.212) deflacionado pelo IPCA acumulado ao longo dos 28 anos até agosto (645%) equivale a R$ 162,68 em 1994, valor superior à remuneração essencial estipulada na mesma época (R$ 64,79). Isto quer dizer que houve “um aumento do poder de compra das famílias que ganham um salário mínimo”, de 151,08%.
Agora, o salário mínimo de R$ 1.212 em 2022 deflacionado pela alta do preço da cesta básica acumulada ao longo dos 28 anos até junho (1.052,9%) equivalia a R$ 105,13 em 1994. Isso também significa um aumento do poder de compra das famílias que ganham um salário-mínimo, de aproximadamente 62,26%, segundo o economista.
Já até agosto, o atual salário mínimo (R$ 1.212) deflacionado pela alta do preço da cesta básica até o mesmo período (1012,4%) equivalia a R$ 108,95 em 1994. O que representa 68,16% de aumento de poder de compra.
“A interpretação disso é que se a gente compara uma família que ganhava um salário mínimo em 1994 com uma família que ganha um salário mínimo hoje, a de hoje tem uma condição de vida melhor, ou tem capacidade de comprar mais coisas mesmo com este ambiente inflacionário que vivemos. Logo, observamos ganho de poder de compra das famílias, mesmo com a perda de poder de compra do dinheiro.”
Fabrício Silvestre, economista no TC Matrix
Silvestre explica que “isso não quer dizer que este momento de inflação maior não afete essas famílias”. Ele lembra que o último reajuste do salário mínimo ocorreu no começo de 2022, e de lá para cá a inflação já acumulou alta de 4,39% até agosto, considerando o IPCA. Isto quer dizer que os R$ 1.212 recebidos hoje têm poder de compra menor, equivalente a R$ 1.161,03.
“A expectativa de inflação atual é de cerca de 7% para 2022, de modo que o mesmo salário mínimo em dezembro deverá equivaler a R$ 1.132,71. Neste sentido, o cronograma de reajustes anuais do salário mínimo faz com que estas famílias sejam penalizadas ao longo do ano com a inflação, daí decorre a importância da estabilidade de preços em termos sociais”, conclui Silvestre.
O que fazer para aumentar o poder de compra?
Alves, da Ação Brasil Investimentos, comenta que o “Estado deve tomar medidas de austeridade, buscando a restrição da expansão monetária. Ou seja, [ele deve] manter o Orçamento do governo dentro do balanço esperado”. Dessa forma, segundo o especialista, “haverá menor necessidade de aumentar a oferta monetária no país, e assim contribuir para a menor perda de poder de compra da população”.
“Com expansão monetária, mais dinheiro da economia, ‘tudo se ajusta’ via inflação, o que é muito bom para o governo e terrível para a população, já que o governo arrecada mais e a população perde via aumento de preços”, conclui.
Da mesma maneira, Galvão, da Nord Research, sugere que no curto prazo é preciso fazer políticas que dêem resultados no longo prazo, relacionadas à educação e produtividade. “O que precisamos fazer agora, pensando no próximo governo? É ter uma política fiscal mais responsável. Se gastar mais, tem que ter a contrapartida do aumento das receitas. Além disso, também é preciso fazer reformas”, pensando na produtividade para ter impacto nos salários no futuro, finaliza.
Qual é a história do real?
A moeda surgiu a partir do Plano Real, que foi um conjunto de reformas econômicas implementadas no Brasil, durante o governo de Itamar Franco, tendo em vista a necessidade de controlar a hiperinflação registrada no país no início da década de 90.
O projeto contou com três etapas. A primeira foi a de ajuste fiscal e emergencial, quando houve cortes de gastos e maiores flexibilidades orçamentárias.
Depois, de março a junho de 1994, ficou definido que os preços da economia deveriam ser declarados em URV, que era uma “moeda de conta”, isto é, um valor de transição indexado ao dólar. O que fez com que o cruzeiro real, que era o meio de pagamento da época, perdesse o seu valor.
O intuito dessa “moeda de conta” era que os agentes econômicos não conseguissem reajustar os preços com base na inflação passada. Assim, a URV travou a chamada inflação inercial.
Só depois, em 1º julho de 1994, uma URV, que valia CR$ 2.700,00, se tornou em R$ 1, que passou a ser a moeda de pagamento, de conta e de reserva de valor oficial do Brasil. No início de julho de 2022, o real completou seus 28 anos.