Para 40% da população adulta, o primeiro Pix da vida também foi a primeira transferência bancária – são 70 milhões de indivíduos.
Um belo feito para uma tecnologia tão recente. Lançado em 2020, o Pix completa quatro anos em 16 de novembro. E já parece ter uns 40, de tão impregnado que ficou na cabeça de todo mundo.
Pelo menos é o que diz a WPP, multinacional britânica que controla diversas agências de publicidade. Uma pesquisa quantitativa da empresa, feita neste ano, concluiu que “Pix” é a “marca mais forte do Brasil” – imediatamente à frente de Boticário, Cacau Show e Brastemp.
Natural. Contando todos os meios de pagamento (cartão, TED, dinheiro de papel, boleto) o Pix responde por 45% do total de operações. No volume financeiro, não chega a tanto, são 22% – já que o grosso das transações no Pix envolve valores menores.
No quesito volume financeiro, a TED segue na dianteira, com 58,2%. Ainda assim, ela sofreu um baque. Antes de surgir o Pix, eram 71%.
O impacto mais visível é sobre o dinheiro de papel. A participação dele na economia como um todo já era pífia antes do Pix. As cédulas e moedas representavam só 4,6% do volume total de dinheiro (contando depósitos em conta corrente, fundos etc.). Hoje, são 2,9%.
Mesmo assim, a comparação é relevante. O que temos aí é uma queda de 40% desde que o novo sistema concluiu o primeiro Pix “real oficial”: uma transferência de R$ 294,03 da PicPay para o Banco Inter, feita quatro segundos após a meia-noite de 16 de novembro de 2020.
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Claro que não foi só o Pix o responsável. O aumento da bancarização em si também teve seu papel – já que mais gente passou a ter seu primeiro cartão de débito. Em 2020, o número de brasileiros com conta em banco não chegava a 100 milhões. Hoje, são mais de 150 milhões.
Outra métrica que mostra bem a sublimação do dinheiro físico é a queda no volume financeiro de saques. No último trimestre de 2020, ele foi de R$ 765,8 milhões. No segundo de 2024, R$ 591,9 milhões. Não parece uma queda tão grande. E não é mesmo (22%).
Só que desde lá o volume de dinheiro na economia como um todo (contando aí fundos e cia) cresceu brutalmente – em grande parte por conta da emissão desenfreada para o combate à pandemia.
Logo, a participação dos saques de dinheiro no bolo diminuiu na mesma proporção. Em 2020, aqueles R$ 765,8 milhões representavam 4,4% de todos os meios de pagamento. Hoje, com o Pix a todo vapor, os atuais R$ 591,9 milhões que os brasileiros ainda sacam formam uma fatia bem menor do total: 2,0%.
Na prática, então, o peso dos saques de dinheiro de papel na ciranda de pagamentos caiu 54%.
Além do volume menor, também temos que o hábito de sacar despencou com mais força ainda. Medindo não pela quantidade bruta de dinheiro que sai dos caixas eletrônicos, mas pelo número de vezes em que as pessoas fazem esse tipo de operação, temos o seguinte: no final de 2020, de cada 100 operações (como passar o cartão ou fazer uma TED) oito eram saques no caixa. Hoje, são duas. Uma queda de 75%.
A participação dos cartões também caiu. Em 2020, eles reinavam, com 53,5% da quantidade de operações de pagamento. Hoje são 35,1% – um terço a menos. E o Pix assumiu a dianteira nesse quesito, como você pode ver aqui:
Além de tirar dinheiro, outros serviços que antes levavam as pessoas a um banco físico também passaram a ser consumidos por aplicativos. Em outubro, uma pesquisa mostrou que 38% dos brasileiros não pisam numa agência bancária há mais de seis meses. Essa tendência já é uma realidade mais antiga que o Pix, claro, mas ganhou um empurrãozinho desde 2020. A quantidade de agências bancárias espalhadas pelo país caiu 14% entre outubro de 2020 e julho de 2024.
Das cinco maiores instituições, só a Caixa Econômica Federal manteve um patamar estável:
Por onde anda o dinheiro vivo
Se você é dessas pessoas que não vê uma cédula de real há um bom tempo, o Seu José Moreira te mostra algumas delas na foto abaixo:
Dono de uma banca de jornal em uma praça de Pinheiros, bairro na Zona Sul de São Paulo, Moreira tem 83 anos e gerencia há duas décadas um empreendimento que resiste apesar das transformações no comportamento dos consumidores.
Ali o pagamento é basicamente em dinheiro vivo. Nada de Pix.
Não chega a ser uma surpresa: apesar de já representarem 15,6% da população em 2023, só 4,95% das transações no Pix são feitas pelos idosos:
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Mas o caso de Moreira não é de apego ao passado. O dono da banca aceita débito e crédito. Mas ele não tem CNPJ, então não consegue gerar QR Codes na máquina do cartão.
E isso é um problema porque Moreira evita o uso de celular, necessário para o Pix na falta de QR Code na maquininha, pois tem um marcapasso. Trata-se de uma cautela extrema, pois a ciência diz que quem tem o implante pode usar o telefone – a recomendação é não deixá-lo no bolso esquerdo da camisa. Mas ele prefere não arriscar.
Mas fica uma preocupação: garantir o troco.
“Você tem que ter troco pra R$ 50. Eu sempre começo o dia com R$ 35 porque, se você chega com R$ 50 e compra uma revista de R$ 15, eu tenho que ter R$ 35 pra te dar de troco.”
josé moreira, dono de banca de jornal
Os dados do BC corroboram essa experiência empírica. Embora nos anos iniciais do real as notas de R$ 10 e R$ 1 tenham sido as mais frequentes em circulação, em 2004 a cédula alaranjada valendo R$ 50 alcançou a primeira posição, que manteve por quase 20 anos.
Em 2023, porém, ela foi ultrapassada pela de R$ 100. Acompanhe a corrida:
Tripé da bancarização e a ‘última milha’
Além do Pix e do lançamento de novos serviços bancários, um terceiro aspecto segura o tripé que aproximou o Brasil da universalização do sistema financeiro: o Auxílio Brasil, grande motor do recente boom na bancarização (para receber o benefício, era preciso abrir uma conta na Caixa).
Para Luis Gustavo Mansur Siqueira, do Departamento de Promoção da Cidadania Financeira, essa combinação ajudou o país a se aproximar de 90% dos adultos inclusos no sistema financeiro. O desafio agora é chegar aos poucos que ainda estão fora – no jargão anglo, o last mile (a última milha).
“Essa é a população mais difícil de ser atingida. É gente que está em locais muito remotos, às vezes pessoas muito idosas, com mais dificuldades. Para incluí-las é preciso internet, conectividade e smartphone. A gente ainda está longe de ter essa estrutura.”
Luis Gustavo Mansur Siqueira, banco central
Ok. Mas já dá para afirmar que, um dia, não teremos mais cédulas? Para o Banco Central, essa resposta é “ainda não”. A autarquia diz que elas são “essenciais para a inclusão financeira de todos os grupos na sociedade”, que “é importante que estejam amplamente disponíveis” e que até em países com digitalização mais avançada o dinheiro em espécie ainda não está prestes a sumir.
Moreira, da banca de jornal, tampouco vê um futuro sem papel-moeda passando de mão em mão. “Em 2050 um terço dos 200 milhões de habitantes vão ser gente de idade. Não pode deixar de existir [dinheiro]. Vai diminuir, mas não acaba.”
Se depender dele e de seus clientes, é assim que vai continuar sendo. Um dos frequentadores quase diários da banca é José Figueiredo, que chega sem cerimônia, tirando uma nota de R$ 10 e outra de R$ 2 para comprar um jornal de R$ 7 e levar R$ 5 de troco. Prestes a completar 71 anos, ele diz pagar quase tudo em dinheiro.
“Criei uma chave Pix na marra”, lembra ele, que há seis meses não realiza uma transação instantânea.
Já quando veste sua fantasia de CNPJ, Figueiredo diz que criou a chave Pix de seu comércio de carnes assim que a novidade apareceu. Ele prefere que todo mundo pague desse jeito e até consegue vislumbrar, no futuro, um Brasil sem reais de papel. “Lembra da música do Belchior? Quando chega o novo, não adianta, ele te atropela”.
E o novo sempre vem.