Uma guerra por território está se formando no vasto mundo dos pagamentos digitais — e os veteranos do setor, como Visa e Mastercard, agora estão na defensiva.
Empresas de tecnologia e startups de criptomoedas estão invadindo um terreno há muito dominado por Visa e Mastercard, impulsionadas por um novo tipo de moeda — as stablecoins — e uma proposta que os comerciantes não conseguem ignorar: taxas mais baixas, liquidação mais rápida e uma forma de ignorar completamente os dois gigantes.
É uma ameaça tanto tecnológica quanto financeira. Os tokens, geralmente atrelados ao dólar, permitem que consumidores paguem diretamente aos comerciantes a partir de suas carteiras cripto — sem precisar passar por bancos ou redes de cartões. Só no ano passado, empresas dos EUA pagaram cerca de US$ 187 bilhões em taxas de transação (os swipe fees), a maior parte por meio dos sistemas da Visa e da Mastercard. As stablecoins prometem tornar esse custo muito menor — ou até obsoleto.
“Está claro que, eventualmente, todo esse espaço pode ser uma ameaça para os provedores da ‘TradFi’ [finanças tradicionais]”, disse Christian Catalini, fundador do MIT Cryptoeconomics Lab. “Mas as redes de cartões não estão paradas. Elas vão tentar trabalhar com várias stablecoins para manter seu papel central.”
Criptos pressionam as gigantes
Essa pressão está levando Visa e Mastercard a se posicionarem não como cobradoras de pedágio antiquadas, mas como infraestrutura essencial para todo tipo de transação digital — até mesmo aquelas originalmente criadas para contorná-las.
Com o presidente Donald Trump prestes a sancionar uma legislação que estabelece a supervisão federal formal para emissores de stablecoins, as bandeiras estão lançando cartões vinculados a cripto e desenvolvendo serviços para bancos que estão testando dólares digitais.
A influência delas funciona nos dois sentidos. Visa e Mastercard têm um histórico de neutralizar ameaças concorrenciais ao absorvê-las em suas próprias redes, muitas vezes preservando seu poder de precificação.
Ao se aproximarem das stablecoins, pode ser que estejam apenas realizando mais um movimento de cooptação — com um mercado que hoje vale US$ 253 bilhões e pode chegar a US$ 2 trilhões nos próximos anos, segundo o secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent.
O fato de as stablecoins estarem no centro dessa disrupção financeira representa uma rara ruptura com a imagem especulativa e volátil da indústria cripto. Nesse sentido, as stablecoins oferecem algo verdadeiramente radical: uma ferramenta que pode de fato melhorar os sistemas financeiros, dando à criptoeconomia uma função socialmente útil — finalmente.
Esse impulso já começa a moldar o comportamento corporativo. Grandes varejistas como Walmart estariam considerando projetos-piloto com stablecoins, e, neste mês, a provedora de tecnologia bancária Fiserv lançou seu próprio token lastreado em moeda fiduciária para ajudar instituições financeiras menores a acompanhar a inovação nos pagamentos.
Segurança ao consumidor
Ainda assim, substituir as redes de cartões não será fácil, especialmente nos EUA, onde os consumidores estão acostumados com recompensas, proteção contra fraudes e acesso a crédito — vantagens difíceis de replicar. As stablecoins oferecem benefícios limitados no ponto de venda e, para muitos, cripto ainda é algo estranho ou desconfiável.
Os saldos em stablecoins não devem contar com seguro FDIC, e as proteções ao consumidor podem ser muito diferentes das oferecidas pelos cartões. Para os comerciantes, a nova tecnologia pode representar riscos de conformidade, fiscais e operacionais.
Mesmo assim, os defensores do digital continuam avançando. A Shopify fechou uma parceria com a Stripe e a Coinbase Global para permitir que comerciantes aceitem USDC — uma stablecoin atrelada ao dólar, emitida pela Circle. Nos bastidores, a transação pode ocorrer sem passar por uma rede de cartões. Em vez disso, ela é totalmente processada via blockchain, permitindo que os comerciantes aceitem USDC diretamente em suas carteiras cripto ou o convertam instantaneamente em moeda local, depositada em suas contas bancárias.
A Shopify vai oferecer 1% de cashback para clientes que pagarem com a stablecoin USDC — com o pagamento da recompensa também feito em USDC. A Coinbase lançou sua própria plataforma de pagamentos para viabilizar o uso de stablecoins por mais varejistas digitais.
“É difícil mudar os hábitos de pagamento dos consumidores, mas, ao contrário do passado, agora as engrenagens estão se movendo para uma mudança dramática nesse comportamento”, disse Richard Crone, CEO da consultoria Crone Consulting.
Visa e Mastercard vão para o ataque
Essa pressão está forçando Visa e Mastercard — que juntas representam mais de 85% dos gastos com cartões nos EUA — a partir para o ataque.
Ambas estão promovendo seu alcance global entre os comerciantes, proteção contra fraudes, privacidade do consumidor e confiança da marca.
A tecnologia de tokenização das redes, por exemplo, oculta informações sensíveis da conta para proteger os consumidores em compras online.
“Estamos tokenizando o acesso a valor há muito tempo”, disse Jack Forestell, diretor de produto e estratégia da Visa. “Hoje, esse valor vem basicamente de contas bancárias, linhas de crédito, cartões de débito e crédito, mas não há razão para que esse valor não possa ser uma stablecoin ou outra criptomoeda.”
A Visa agora permite que instituições financeiras emitam tokens digitais lastreados em moeda fiduciária e está testando a capacidade de seus clientes liquidarem transações na rede usando stablecoin.
A Mastercard anunciou recentemente sua adesão à Global Dollar Network da Paxos, permitindo que a Paxos ajude instituições da sua rede a emitir e resgatar a stablecoin USDG.
Essa rede também dá aos usuários controle detalhado sobre como os pagamentos são encaminhados — uma transação de menos de US$ 100 pode sair de uma conta corrente, valores maiores de uma linha de crédito e determinados comerciantes de uma carteira cripto — tudo atrelado a uma única identidade de pagamento.
“Não devemos presumir que, da noite para o dia, as stablecoins vão substituir os pagamentos com cartão ou o dinheiro tradicional”, disse Jorn Lambert, diretor de produto da Mastercard. “Vemos isso muito mais como uma oportunidade de novos casos de uso do que como uma substituição do sistema atual — especialmente em áreas como remessas, pagamentos de empresas e transferências.”
Forestell, da Visa, observa que toda disrupção anterior — de carteiras digitais ao “compre agora, pague depois” — gerou alertas semelhantes. No fim, a adaptação corporativa prevaleceu.
“Quando você é nativo do mundo cripto, consegue enviar dinheiro de um lado para o outro, mas se quiser usar isso em grande escala no dia a dia, precisa de uma conectividade em larga escala — e nós oferecemos a melhor porta de entrada para isso”, disse ele.