No tabuleiro da guerra tarifária entre EUA e China, o agronegócio brasileiro surge como um improvável — e estratégico — vencedor. À sombra do embate iniciado por Donald Trump, empresas como JSL e SLC Agrícola enxergam uma janela rara: com a demanda chinesa por grãos em alta, o Brasil pode ocupar espaço deixado por rivais em rota de colisão. O desafio agora é logístico — e a corrida já começou.
“Queremos estar muito bem posicionados para aproveitar as oportunidades nesse cenário”, disse ao InvestNews o CEO da JSL, Ramon Alcaraz, executivo-chefe da companhia de transporte de cargas, commodities e gestão de frotas controlada pela holding Simpar.
O que era inicialmente uma preocupação com as incertezas externas se transformou numa visão de copo meio cheio. O executivo afirma que a guerra tarifária ainda não gerou nenhum impacto “na vida real”, mas que o país está bem posicionado para aproveitar um realinhamento do fluxo de comércio internacional. “O Brasil tende a ter mais vantagens do que desvantagens, porque temos a China como grande parceiro comercial.”
A JSL não é a única que se mostra otimista com a possibilidade de abertura de mais pistas na rodovia do comércio entre o Brasil os países asiáticos. A holding gaúcha SLC Agrícola, líder entre as proprietárias de terras para plantio no país, passa, inclusive, por um momento de expansão acelerada em termos de áreas para cultivo.
Além do próprio potencial de expansão orgânica do setor, a geopolítica internacional trouxe uma oportunidade de crescimento que pode consolidar o país como o grande fornecedor de alimentos global, afirmou ao InvestNews o CEO da SLC, Aurelio Pavinato.
“Com a guerra comercial, o Brasil se consolida como sendo um fornecedor mais confiável e mais seguro para a China e para os demais países também”, diz. “A própria Europa, que estava ameaçando não aceitar produtos nossos, de certa forma, está repensando né? Estão pensando: ‘ah, eu vou ficar dependente somente dos Estados Unidos? Eu vou poder contar com o Brasil também como fornecedor de grãos’.”
A SLC Agrícola produz soja, milho e algodão em nove Estados: Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Piauí e Rio Grande do Sul. Além disso, atua na área de distribuição de sementes e venda de máquinas agrícolas. O grupo faturou cerca de R$ 7 bilhões no ano passado e registrou um lucro líquido de R$ 482 milhões.
Mas, se forem considerados os números do primeiro trimestre de 2025, o desempenho caminha para fechar um ano muito melhor. Só de janeiro a março, o lucro líquido cresceu 123% ante o mesmo período de 2024, para R$ 510,7 milhões, ou seja, em apenas três meses superou o resultado do ano passado inteiro. Ja a receita líquida subiu 19,1% para R$ 2,33 bilhões, cifra que se for anualizada aponta para um faturamento de R$ 9,3 bilhões.
O grupo tem pisado no acelerador da aquisição de terras e arrendamento nos últimos anos. Entre 2024 e o início de 2025, por exemplo, acrescentou cerca de 100 mil hectares ao portfólio. A SLC pretende manter um ritmo médio de crescimento de 35 mil hectares por ano.
Nesse passo, ainda que não seja uma meta oficial, a companhia pode alcançar a marca de 1 milhão de hectares em 2030, com certa folga. Pode até acontecer antes, se o impulso para a demanda de grãos do Brasil acabar se mostrando maior do que o previsto nos próximos anos.
O conglomerado soma atualmente cerca de 837 mil hectares de fazendas. Para se ter uma ideia do que significa essa extensão, o espaço ocupado corresponde a mais de cinco vezes o tamanho do município de São Paulo. Ou ainda a quase um quinto de todo o Estado do Rio de Janeiro.
Rachaduras na relação vêm desde 2018
Apesar da recente trégua de 90 dias na guerra tarifária entre EUA e China, o aprofundamento da desconfiança entre as duas nações pode ser difícil de recuperar no curto prazo. E, a julgar pela experiência vivida pelo agronegócio há oito anos, a nova investida protecionista americana pode virar o ponteiro importador chinês cada vez mais em direção ao Brasil.
Os números dizem tudo: 70% da soja que a China compra do mundo vem de produtores brasileiros. E esse percentual pode aumentar ainda mais, porque 23% desse grão que entraram em território chinês no ano passado saíram justamente dos EUA, com quem a segunda maior economia global vive às turras desde o primeiro governo Donald Trump (2017 a 2020).
Em 2018, a quebra de confiança entre os dois maiores mercados do mundo acabou ajudando o Brasil a subir ao topo do ranking global de exportadores de produtos agrícolas. Na ocasião, o governo americano tomou a iniciativa de taxar em 25% o aço e o alumínio chineses.
Em retaliação, o país asiático contra-tarifou centenas de produtos dos EUA, incluindo a soja, também em 25%. Esse cabo de guerra, porém, teve consequências permanentes: a exportação do grão americano para a China caiu de 52,8% em 2017 para 18,5% no ano seguinte.
E nunca mais voltou ao mesmo patamar. Após o acordo no qual a China concordou em adquirir US$ 32 bilhões em produtos agrícolas americanos, firmado em 2020, a fatia de soja exportada pelo EUA chegou a subir para 27% naquele ano e atingiu um pico de 31,2% em 2023.
Nos anos seguintes, porém, a exportação recuou para a faixa de 23% a 25%. Os produtores americanos jamais recuperaram o status de maior vendedor para o mercado chinês. E, ao que parece, vão continuar a perder participação.
Nova onda na logística brasileira
Na JSL Logística, os resultados do primeiro trimestre de 2025 ajudam a sustentar a percepção de que o aprofundamento da parceria comercial entre a China e o Brasil pode até já ter começado. “Iniciamos o ano mais cautelosos, devido ao cenário macro, mas no fim nos surpreendemos positivamente”, ressaltou Alcaraz.
Apenas entre janeiro e março, a JSL fechou R$ 1,8 bilhão em novos contratos, acima da média de R$ 1,25 bilhão por trimestre do ano passado. Isso em um momento do ano historicamente menos ativo para o fechamento de negócios por coincidir com as férias escolares, e feriados como o Carnaval que encurtam a quantidade de dias úteis.
Ainda que não seja possível atribuir os números a uma eventual inclinação chinesa tanto a comprar itens daqui quanto a enviar sua produção ao nosso mercado, o fato é que a JSL viu crescer a demanda de contratos aeroportuários. Dos quase R$ 2 bilhões de novos negócios, 57% foram desse segmento.
Outro destaque no início de 2025 foi o setor automotivo, com 22% do total. O perfil difere muito do visto no quarto trimestre de 2024, quando 71% dos contratos veio do setor de alimentos e bebidas. “Como estamos presentes em vários segmentos, começamos a surfar ondas diferentes.”
Uber dos caminhoneiros
Uma das principais atenções da JSL neste ano está na redução da chamada alavancagem, ou seja, na relação entre o tamanho da dívida em relação à capacidade de geração de caixa pela operação, medido pelo Ebitda (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização). O executivo-chefe financeiro (CFO), Guilherme Sampaio, explica que a estratégia da companhia considera uma expansão do lucro operacional e, ao mesmo tempo, uma redução da necessidade de investimentos comparado ao tamanho do grupo.
Sampaio citou a recente aposta da empresa, a plataforma JSL Digital, que faz a intermediação entre a demanda por transporte de cargas menos complexas e a rede de caminhoneiros parceira da companhia. Trata-se de um modelo de negócios, chamado de “asset light”, no qual a empresa não precisa fazer investimentos pesados, como em frota própria ou maquinário.
“É quase uma espécie de Uber logístico”, comparou Alcaraz. “Por meio do serviço, nós conectamos os agregados com o perfil de carga e a rota.” O CEO da JSL afirmou que a JSL Digital pode ajudar o grupo a reconquistar a participação de mercado perdida nos últimos anos devido ao custo elevado e margens apertadas desse segmento. “Hoje quase 30% do nosso negócio envolve caminhões para operações de armazém intralogística e movimentação interna.”
Apesar da aposta em um modelo de baixa necessidade de investimento, a JSL pretende continuar a expansão também em operações que exigem a criação de frotas e infraestruturas logísticas próprias, que Alcaraz chama de “asset heavy”, ou seja, o contrário do “asset light”. Conforme o CEO, “o modelo ‘heavy’ cabe quando tenho um contrato de longo prazo e quando tenho volumes regulares em operações dedicadas com demanda contínua. As indústrias florestal e de gases são assim.”
No primeiro trimestre de 2025, a JSL registrou uma receita líquida de R$ 2,3 bilhões, com aumento de 12% em relação ao mesmo período de 2024. O lucro líquido ajustado alcançou R$ 45,1 milhões no período com queda anual de 7,4%.