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IA, carro elétrico, ar-condicionado no talo: temos energia para tudo isso?

Novas tecnologias e as mudanças climáticas já mudaram o padrão de consumo para o qual o sistema está preparado

O ano é 2034. O carro elétrico é uma realidade acessível para boa parte dos brasileiros. E o feriado ensolarado estimula uma horda de paulistanos a se deslocar para as praias do Guarujá, onde milhares de veículos irão recarregar suas baterias nos prédios e casas. 

Está quente (o aquecimento global não vai parar até lá, afinal). Em meio à onda de calor, os turistas também vão caprichar no ar condicionado. Tudo isso junto provoca a concentração, em um só dia, do consumo de energia na cidade previsto para todo o mês – o que coloca à prova a capacidade de fornecimento de energia da cidade litorânea.

É um cenário hipotético, mas provável. E ilustra uma nova realidade sobre a qual empresas do setor de energia já estão trabalhando. Ele ajuda a explicar, em grande medida, alguns dos eventos recentes de interrupção de fornecimento. E traz também um senso de urgência para que novos investimentos sejam feitos, de modo a evitar que esses episódios se tornem frequentes.

As novas tecnologias e a mudança climática não apenas aumentam drasticamente a demanda por energia, como alteram o padrão do consumo para o qual o sistema está preparado. “Tanto a demanda quanto a oferta [de energia] hoje se dão de forma diferente do que acontecia em um passado bem recente. Esse desequilíbrio deve se agravar no futuro”, afirma Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil.

Até poucos anos atrás, explica Sales, havia um aumento gradual do consumo de energia  ao longo do dia, em linha com a dinâmica da atividade comercial. O pico dessa demanda acontecia no fim da tarde, quando a iluminação noturna é acionada. Até que, durante a noite, o uso de eletricidade diminuía sensivelmente. Mas essa curva mudou. E basta olhar para o que acontece nas nossas casas e escritórios para entender o porquê.

Torre de alta tensão são inspecionadas em Brasília
REUTERS/Ueslei Marcelino

Mais gente  tem acesso a aparelhos de ar-condicionado, que passam a noite funcionando. Ao mesmo tempo, cada vez mais motoristas deixam seus carros elétricos carregando durante a noite. E o avanço da digitalização e da inteligência artificial coloca uma quantidade imensa de datacenters funcionando ininterruptamente. A transformação tecnológica é muito mais rápida do que a capacidade de geradoras e distribuidoras de energia se adaptarem.

“São fatores que trazem um desafio novo, que não é pequeno”, diz Sales. Assim como no  exemplo dos turistas no Guarujá, hoje está mais difícil prever não apenas quando, mas onde haverá uma concentração de consumo de energia. “E as redes não podem ser dimensionadas para operar considerando o ponto máximo o tempo todo”, explica.

Os números confirmam essa nova realidade. O país viu o recorde de demanda instantânea ser quebrado três vezes em um intervalo de quatro meses: em 17 de novembro de 2023, 7 de fevereiro de 2024 e, o último, em 15 de março, quando a carga consumida do Sistema Interligado Nacional (SIN) chegou a 102.478 MW. A onda de calor que atingiu praticamente todo o país nesses períodos explica esse aumento.

O fenômeno não é exclusivo do Brasil. Segundo um relatório produzido pela consultoria PSR, a cidade de Phoenix, Arizona, marcou um período de 31 dias consecutivos em que a temperatura ficou acima dos 43º C graus, um recorde em termos de persistência de calor.

“As altas temperaturas são um fator de estresse para o sistema, não só porque mudam o padrão do consumo, mas também porque desgastam os equipamentos “, diz Rafael Kelman, diretor executivo na PSR. Segundo o especialista, os estudos não deixam dúvidas de que a temperatura vai continuar subindo. Mas eles ainda são ineficazes na previsão de incidência de eventos extremos , aqueles que mais impactam o fornecimento de energia.

Um exemplo recente de evento assim foram as rajadas de vento de até 104 km/h que derrubaram mais de 2 mil árvores sobre a rede de energia no estado de São Paulo. O episódio causou interrupção de fornecimento para mais de 2 milhões dos 8 milhões de consumidores atendidos pela distribuidora Enel. E aqueceu a discussão sobre  como as empresas terão de se preparar para lidar com as mudanças climáticas e do padrão de consumo.

Do lado da geração da energia, o sinal amarelo também está aceso. Basta pensar que  67% da energia gerada no país vem de usinas hidrelétricas. E a perspectiva é de redução das chuvas nas regiões Norte e Nordeste do país, onde estão instaladas algumas das usinas. “São regiões onde há muita irrigação. Significa que haverá competição pela água”, diz Kelman.

Qual a melhor resposta?

A Enel segue no foco das críticas, tanto dos consumidores quanto do governo. Na semana passada, o ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, chegou a declarar que essa foi uma concessão que “não deu certo” e que, portanto, poderá ser revertida.

Para os especialistas, no entanto, há outro tipo de medida a ser adotada, tanto pelo Estado quanto pelo setor privado, para endereçar os desafios enfrentados pelo setor. Um dos caminhos em discussão, segundo Kelman, é criar uma espécie de pool entre as distribuidoras, que possa atuar em situações de emergência, como a enfrentada em São Paulo.

Ele diz que esse é um mecanismo que já é adotado em outros países, e que está sendo discutido pelas empresas no Brasil. Essa pode ser uma forma de mitigar os efeitos das mudanças no sistema, enquanto os instrumentos de previsão climática – vistos como peça- chave para melhorar a dinâmica do setor – são aprimorados.

“A capacidade de adaptação das empresas hoje é mais importante até mesmo do que o esforço de conter a emissão de CO2 – algo que [globalmente] depende mais da China e da Índia”, diz Kelman.

É nisso que algumas grandes empresas têm focado no exterior. Por exemplo: a Statkraft, maior produtora de energia renovável da  Europa, investiu 700 milhões de euros  para atualizar suas barragens hidrelétricas, com o objetivo de ajudá-las a resistir a chuvas mais intensas.

Sales, do instituto Acende, afirma que o rigor da regulação do setor aumentou nos últimos anos e que, de forma geral, as empresas têm atendido às exigências, tanto em termos de número máximo de eventos de interrupção de energia quanto de tempo de reparo.

“Claro que um episódio como o ocorrido em novembro gera um incômodo grande na opinião pública, o que é legítimo. Mas os dados mostram que os parâmetros de qualidade do serviço  estabelecidos pelo regulador têm sido atendidos. Não se pode politizar a questão”, afirma.

Procurada, a Enel não atendeu ao pedido de entrevista.

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