Uma consulta pública do Banco Central que pode vigorar nas próximas semanas está levando a uma “queda de braço” no segmento financeiro. De um lado, os bancos tradicionais defendem que fintechs e meios de pagamentos que se tornaram grandes unicórnios devem estar sujeitos a novas exigências regulatórias que garantam uma concorrência mais justa. Já representantes das fintechs acreditam que isso pode desestimular a concorrência e afetar clientes.
A consulta pública 78 (encerrada em janeiro) deu lugar a um debate proposto pelo Banco Central para definir regras mais rígidas para o funcionamento das fintechs, principalmente instituições de pagamento, observando o tamanho, lucro e movimentação de cada player em particular e classificando-os em novos grupos.
Embora os bancos tradicionais tenham hoje mais facilidades em captar dinheiro e utilizar estes recursos para empréstimos e financiamentos, sem precisar de autorização do correntista, para as fintechs, ainda é preciso captar recursos via investimentos, com cotas de fundos do mercado de capitais. Muitas têm a exigência de adquirir títulos do Tesouro para movimentar o dinheiro.
O custo de captar recursos com mais facilidade está na tributação e nas normas estabelecidas pelo Banco Central para as instituições financeiras. Por este motivo, as fintechs, que têm um acesso mais restrito a tais alternativas, são consideradas instituições de risco simplificado e possuem exigências de capital e requerimentos menores.
Durante muitos anos, este sistema teve equilíbrio, até que algumas fintechs e instituições de pagamento começaram a crescer exponencialmente. É o caso de Stone, PagSeguro, Nubank e Neon, que ficaram na mira dos bancões. Muitas se tornaram instituições mais valiosas que players tradicionais, mas sem amarras regulatórias.
Na luta por reduzir assimetrias entre inovação e mercado financeiro tradicional, especialistas apontam que regular estes novos players será algo inevitável, mas que o Banco Central precisa ter cuidado para não engessar o sistema, asfixiando os novos entrantes.
Entenda a seguir os possíveis impactos da regulamentação das fintechs no mercado.
Jogando em times diferentes
De um lado, estão os grandes bancos, também conhecidos como instituições incumbentes, que pertencem ao segmento 1 de regulação prudencial e, portanto, são obrigados a cumprir uma série de exigências alinhadas às recomendações de Basileia, que é o índice que determina sua solvência e nível de risco. De outro, estão as startups do segmento financeiro, menos sujeitas a obrigações regulatórias.
Segundo Alessandra Lanza, advogada e consultora na área de Mercado de Capitais da HSVL Advogados, os grandes bancos têm manifestado seu incômodo de que, para operar regularmente, estão sujeitos a uma série de exigências às quais as fintechs não estão, como depósitos compulsórios, obrigação de gratuidade para serviços como limite de Ted, manutenção de conta-salário e atendimento a clientes de outras instituições.
Os bancos tradicionais reclamam que tais obrigações acabam pesando para eles, que também precisam manter agências físicas e requerimento de capital.
No lado oposto, as fintechs cresceram de forma acelerada e se tornaram grandes unicórnios, como Stone, PagSeguro, Nubank, Neon, mas ainda não estão sujeitas a amarras regulatórias, apesar de muitas delas estarem entre as instituições financeiras mais valiosas do país, superando até alguns “bancões”.
Frente a tal assimetria quando o assunto é regulação, Alessandra Lanza explica que a nova regulamentação deve reduzir diferenças entre os bancos e novos competidores. “A ideia principal da consulta pública 78 (já encerrada) é evitar ou diminuir esse desequilíbrio de exigências regulatórias ente instituições que possuem tamanhos e riscos semelhantes, que prestam a mesma atividade, mas se submetem a regras diferenciadas”, defende a advogada.
O panorama das fintechs
Mas qual é o cenário em que as fintechs se encontram? A nova regulamentação afetaria todas as empresas que trabalham com inovação financeira ou apenas um grupo específico?Para entender a divisão deste ecossistema, é preciso estar a par de alguns conceitos.
Dentro do universo das fintechs é possível encontrar as sociedades de crédito direto (SCD), que atuam na oferta de empréstimos, financiamentos e aquisição de direitos creditórios por uma plataforma eletrônica. Os recursos emprestados têm origem no capital próprio. Alessandra exemplifica o caso da Creditas, que fornece crédito diretamente usufruindo de algumas garantias em troca.
Ainda neste ecossistema de fintechs, há também a sociedade de empréstimo entre pessoas (SES), as quais atuam como intermediadoras entre o tomador de crédito e o credor. Neste caso, a fintech realiza uma intermediação e pode até cobrar uma tarifa por este serviço mas não utiliza os próprios recursos para o empréstimo.
Um exemplo disso é a fintech Nexxos, que trabalha na intermediação de crédito empresarial. Além destas duas categorias, existem também as instituições de pagamento ou empresas de meios de pagamento, que fornecem soluções online e off-line, por exemplo PagSeguro, Stone, Cielo, grandes conglomerados que acabam concorrendo diretamente com os bancos.
Para Fernanda Garibaldi, advogada da Felsberg, especializada em regulamentação financeira e concorrência, de acordo com estes conceitos, as fintechs se dividiriam em três grandes grupos:
- Instituições de Pagamento: que podem ser credenciadoras, emissoras de moeda eletrônica, emissoras de instrumentos pós-pago, e iniciadores de transação de pagamento.
- Fintechs de crédito: representadas pelas sociedades de crédito direto e sociedade de empréstimo entre pessoas.
- Correspondentes bancários: atuam sob o guarda-chuva de instituições financeiras, e podem ofertar serviços por meio de tecnologia, por exemplo plataformas de banking as a service.
Segundo Fernanda, as instituições que devem sentir um aumento das exigências após a consulta pública 78 são as Instituições de pagamentos, com o Banco Central tentando harmonizar o tratamento prudencial para este tipo de companhia.
Antes e depois da regulamentação
Segundo Bruno Segatto, co-fundador da Xsfera, o Banco Central possui cinco tipos de enquadramentos para classificar cada companhia no âmbito financeiro, de S1 a S5.
Ele explica que o nível S1 por exemplo, formado na sua maioria pelos bancões, tem na sua classificação instituições com 10% do PIB ou mais na sua movimentação e atividade. Já o S5, destinado a instituições financeiras não bancárias com perfil de risco simplificado, cujos ativos representam menos de 0,1% do PIB, possuem requerimentos mínimos prudenciais.
No caso das instituições ou meios de pagamento, Segatto, esclarece que estas se encontram ainda um degrau abaixo do nível S5 quando o assunto é requerimentos e simplificação.
Desta forma, a exigência para este tipo de companhia em patrimônio requerido para mitigar os riscos é de 2% sobre as transações realizadas nos últimos 12 meses. “Se uma instituição de pagamentos movimentou R$ 100 milhões nos últimos 12 meses, ela terá uma exigência de capital de pelo menos R$ 2 milhões para mitigar qualquer risco sistémico”, exemplifica.
Com a nova regra para as fintechs, a proposta é que surjam três novos grupos:
- Controlados por instituição financeira: categoria formada por grandes bancos, já acostumados com a complexidade financeira.
- Controlados por instituição de pagamento e não integrados por uma instituição financeira: neste grupo, se encontram empresas de maquininhas, como a PagSeguro, Stone e Cielo. Segundo Alessandra Lanza, a régua deve subir para este grupo, que terá a sua exigência de capital elevada de 2% até 4,5% a depender do volume de transações e ativos.
- Controlados por instituição de pagamento e integrados por uma instituição financeira: nesta categoria instituições como o Nubank precisarão se enquadrar durante um período de transição de três anos (2022-2025) no Segmento 4 do BC, destinado atualmente a bancos e instituições não bancárias, com ativos inferiores a 0,1% do PIB, e que possuem uma maior simplificação nos requisitos prudenciais e gerenciamento de risco. Já os requerimentos de capital, serão os mesmos que o grupo 2, segundo especialistas.
Faz sentido?
Para os especialistas consultados pela reportagem, era inegável a necessidade de o Banco Central implementar uma nova regulação, principalmente para aquelas fintechs que se tornaram grandes conglomerados.
Segundo Segatto, da Xsfera, deste movimento surgiu a reclamação de grandes bancos sobre a desproporcionalidade das exigências regulatórias, contudo, era natural que conforme as fintechs fossem crescendo e ganhando espaço no mercado brasileiro que as necessidades de regulamentação fossem readequadas.
Para ele, embora o grupo 2 seja o mais impactado, pela exigência de um capital maior o que gera mais custo para as fintechs, estes ajustes devem de certa forma ser compensados com a chegada do open finance, no qual tanto os bancos como as fintechs devem trabalhar em pé de igualdade no acesso a histórico e informações do consumidor.
“Este ajuste por parte do regulador não deve deixar o mercado mais concentrado. Com o open banking, vivemos em um período que vai na contramão da concentração bancária”, aponta.
Para Fernanda Garibaldi, da Felsberg, a atuação do Banco Central nos últimos anos frente ao surgimento destes novos players entre fintechs e bancos digitais foi realizada com sucesso, auxiliando na criação de um novo ecossistema menos concentrado e com mais soluções para a população desbancarizada que eventualmente os grandes bancos não conseguiam atender.
Contudo, ela esclarece que este sucesso não significa que uma hora não seriam necessários ajustes para regular principalmente aquelas instituições que cresceram e se tornaram gigantes do mercado.
Segundo ela, o segredo do sucesso está no equilíbrio. “É importante fazer ajustes para os grandes players sem sufocar os pequenos negócios, que não teriam capacidade nem patrimônio de lidar com uma regulação engessada”, explica Fernanda.
Regular e fomentar uma concorrência mais justa entre bancos e fintechs, mas considerando as particularidades de cada uma sem engessar o sistema ou impedir o desenvolvimento dos pequenos, é para a advogada a missão do Banco Central. Ela também acredita que graças ao open banking, um movimento de concentração bancária deve ser improvável. “Com a nova regulação, o consumidor ganha, com taxas de juros mais compatíveis, serviços melhores de ambos os lados, uma concorrência mais equilibrada”, defende.
Para Alessandra Lanza, diminuir as diferenças entre os novos unicórnios e os bancos tradicionais é um movimento concorrencial necessário, que vai aumentar a qualidade na oferta de produtos e serviços. De acordo com a advogada e consultora, vale o mesmo princípio, regular de forma saudável sem engessar.
Ela também descarta que esta nova regra das fintechs possa trazer de volta o fantasma da concentração bancária, com o open banking e compartilhamento de dados em andamento, informações que antes eram exclusivas dos grandes bancos, como rating de crédito dos clientes, agora também estarão no poder das fintechs facilitando ainda mais a concorrência e o crescimento das instituições de pagamento. “Isso por sua vez justifica também um equilíbrio entre as obrigações dos bancos e meios de pagamento”, defende.
Com o público desbancarizado, que por muito tempo foi o consumidor principal destas fintechs, Alessandra torce para que as novas regras não engessem demais as novas operações.
O olhar das fintechs
Para Diego Perez, presidente da Associação Brasileira das Fintechs (ABFintechs), precisam ser levados em conta dois aspectos na hora de analisar essa nova regulação.
Ele aponta que, do ponto de vista de modernização das estruturas, o Banco Central foi muito sábio tentando criar medidas para diferenciar quem é grande de quem é pequeno no mercado das fintechs. Contudo, ele destaca que no aspecto regulatório em debate há ainda alguns cabos soltos.
Por exemplo, ainda não foi definido o percentual que será considerado como patrimônio para fintechs controladas por bancos ou instituições financeiras. “Por ter se tratado de um edital aberto, o Banco Central deve adotar as sugestões apontadas pelo mercado durante o período em que ocorreu a consulta”, explica.
Perez também cita que embora algumas fintechs ou instituições de pagamento trabalhem com bancos digitais. Isso não necessariamente significa que tenham a mesma estrutura que os grandes bancos. “Se aplicar uma equivalência de banco para fintechs, vai prejudicar a chegada de novos players, ou desencorajar que fintechs atinjam tamanhos maiores, concentrando o mercado”, aponta.
Do ponto de vista tributário, o presidente da ABFintechs vê como injusta a exigência dos bancos de que sejam elevadas as alíquotas para fintechs utilizado um discurso de igualdade.
Ele explica que não existem condições iguais de mercado, produtos ou serviços, embora os clientes possam ser os mesmos. Enquanto um banco tradicional tem autorização pública para captar dinheiro e usar o recurso para empréstimos, movimentando contas correntes, poupanças entre outros, no próprio nome, uma fintech não tem esta autorização.
Para a fintech captar recursos precisa de veículos de investimento, cotas de fundos no mercado de capitais, exigências muito maiores do que os bancos tradicionais. Já no caso das instituições de pagamento, Perez cita que mesmo para antecipar recebíveis a fintech de pagamento precisaria adquirir títulos públicos do Tesouro em nome da instituição para poder efetivamente movimentar o dinheiro.
“Os serviços ofertados pelas fintechs são mais travados do que os bancos, e por isso que o custo tributário é menor”, aponta. Perez conclui que usar o discurso de equiparação tributária para as fintechs seria falacioso.
É importante destacar que embora o edital da consulta pública 78 já foi encerrado e passa por avaliação dos reguladores, as normas estipuladas no documento podem ainda ser alteradas de acordo com as propostas do mercado, segundo apontam os especialistas.