Como Boeing e Intel perderam o ‘padrão ouro’ e viraram emergência para os EUA
Empresas já foram referência em termos de qualidade e inovação; agora, seus problemas afetam os EUA
Na geração passada, qualquer lista de fabricantes mais admirados dos EUA teria a Intel e a Boeing perto do topo.
Hoje, ambas estão nas cordas. A Intel suspendeu o pagamento de dividendos, cortou empregos e gastos e é alvo de aquisição. A Boeing foi prejudicada por investigações sobre acidentes, um deles em pleno voo, atrasos na produção e uma greve. Uma cisão de ativos ou uma falência não são mais algo impensável.
Nos últimos cinco anos, o valor de mercado combinado das duas companhias caiu pela metade. Mais do que apenas uma provação para os acionistas, esse é um potencial desastre para o país.
Os EUA estão em uma disputa geopolítica com a China definida não apenas pelo poder militar, mas também por feitos econômicos e tecnológicos. Líderes de ambos os partidos políticos dos EUA afirmam estar envolvidos, pressionando por tarifas e subsídios.
Independentemente de seus méritos, essas medidas não abordam o problema fundamental que a Boeing e a Intel representam. Os EUA ainda projetam os produtos mais inovadores do mundo, mas estão perdendo seu talento de fabricação.
No final de 1999, quatro das dez empresas americanas mais valiosas eram fabricantes. Hoje, não há nenhuma delas na lista. A estrela solitária em ascensão: a Tesla, que ficou em 11º lugar.
A Intel e a Boeing já foram o padrão ouro na fabricação de produtos inovadores com especificações exigentes e qualidade consistentemente alta. Não é mais assim.
Nenhuma das duas foi vítima de concorrência estrangeira barata, mas de seus próprios erros. Sua cultura começou a priorizar o desempenho financeiro em detrimento da excelência em engenharia, o que também derrubou outro ícone da manufatura, a General Electric.
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A Intel não quis produzir os chips para o primeiro iPhone da Apple, pensando que não seria lucrativo o suficiente. Levou tempo para adotar a tecnologia mais recente para circuitos minúsculos e perdeu o boom da inteligência artificial.
A Boeing achou que seria mais barato e rápido adicionar motores mais eficientes ao seu campeão de vendas, o 737, com a ajuda de software, em vez de redesenhar ou substituir completamente o avião. Isso causou dois acidentes fatais. A terceirização de sua cadeia de suprimentos e o êxodo de especialistas durante a pandemia contribuíram para problemas de qualidade e atrasos.
Como a culpa por seus problemas é dela própria, a ideia de deixar a empresa se virar sozinha é tentadora. Os investidores provavelmente dariam de ombros: a Intel vale menos de US$ 100 bilhões, enquanto a Microsoft, a Apple e a Nvidia juntas valem US$ 10 trilhões.
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O problema: o software e os dispositivos desses gigantes da tecnologia são inúteis sem os semicondutores avançados cuja fabricação contratam, especialmente da Taiwan Semiconductor Manufacturing Co. Se a China cumprir sua ameaça de controlar Taiwan nos próximos anos, todo o setor de tecnologia dos EUA poderá estar à mercê de Pequim.
A TSMC está construindo fábricas nos EUA com a ajuda de US$ 6,6 bilhões em subsídios da Lei de Chips. Mas levará anos até que as empresas de tecnologia americanas não dependam mais de Taiwan, se é que isso um dia vai acontecer.
A Intel é a única empresa sediada nos EUA capaz de competir com a TSMC e está tendo dificuldade para fazê-lo.
Embora a SpaceX de Elon Musk tenha superado a Boeing quando se trata de transporte espacial, não há fornecedores alternativos domésticos de grandes aviões comerciais. Sem a Boeing, o negócio iria para a Airbus e, por fim, para a estatal chinesa Comac, que agora começa a entregar seu próprio concorrente do 737 e do Airbus A320, o C919.
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A perda de qualquer uma das empresas teria repercussões em todo o setor. Cada uma oferece suporte a um ecossistema multicamadas de designers, trabalhadores, gerentes e fornecedores. Se esse ecossistema se mudar para o exterior, é quase impossível trazê-lo de volta.
Rob Atkinson, presidente da Fundação de Tecnologia da Informação e Inovação, observa que a Boeing é a maior exportadora de manufatura dos EUA e “também uma das empresas mais intensivas em engenharia do mundo, por isso investe muito em P&D [pesquisa e desenvolvimento]”. A quebra da Intel seria um golpe nos esforços americanos de garantir o ecossistema de semicondutores e recuperar o mercado do leste asiático.
Então, por mais que os líderes nacionais queiram ignorar os problemas dessas empresas, isso não é possível. A segurança nacional determina que os EUA mantenham algum know-how na fabricação de aeronaves e semicondutores.
Certamente outros países pensam o mesmo: os governos europeus subsidiaram fortemente a Airbus. A China está buscando o domínio em tecnologias-chave, independentemente do custo. O país asiático investiu cerca de US$ 100 bilhões em semicondutores, enquanto a ajuda à Comac chegou a US$ 72 bilhões em 2020, de acordo com o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.
“Até que a Comac consiga garantir uma participação significativa no mercado global, ela continuará a ter grandes perdas e será resgatada pelo governo chinês”, disse Atkinson, cuja organização recebe apoio da Boeing.
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Ambos os partidos políticos compraram a ideia de que a indústria é especial e, portanto, merecedora de apoio público. E surge a questão: qual indústria e que tipo de apoio?
O objetivo da estratégia de fabricação não deve ser apenas produzir empregos, mas produtos de excelência e liderança mundiais. Washington pode ajudar incentivando os melhores fabricantes do mundo a se estabelecer nos EUA. Isso força as empresas americanas a melhorar seu jogo e ajuda a força de trabalho e a rede de fornecedores que atende a todas as empresas. A Lei de Chips, ao encorajar a TSMC e a Samsung a construir ou expandir fábricas nos EUA, ajuda indiretamente a Intel, a GlobalFoundries e a Micron (todas elas subsidiadas).
Ambos os candidatos presidenciais se opõem à Nippon Steel nos EUA. Isso em deferência ao United Steelworkers (sindicato de metalúrgicos), que questiona o compromisso da gigante japonesa com as fábricas sindicalizadas. No entanto, os bolsos profundos e a experiência da Nippon em aço especializado sem dúvida fariam do setor um empregador mais forte e seguro.
No início dos anos 1980, com as montadoras domésticas cambaleando por causa das importações japonesas, o presidente Reagan negociou restrições à exportação de montadoras como a Toyota, que instalou fábricas nos EUA. Os benefícios foram além dos trabalhadores contratados e dos consumidores atendidos; Detroit foi forçada a adotar o sistema de manufatura enxuta e a melhoria contínua da Toyota.
Em 2010, a Toyota vendeu uma de suas fábricas para uma startup americana. Ela não apenas forneceu à Tesla sua primeira fábrica: forneceu capital inicial, um executivo de produção veterano para supervisionar a fabricação e, como Musk disse na época, “a lendária experiência em engenharia, fabricação e produção da Toyota”.
Em última análise, a grandeza da indústria é antes de tudo uma missão para líderes e acionistas das empresas. Eles poderiam aprender com a disposição de trabalho de Musk e dar prioridade ao desenvolvimento de produtos, não ao lucro por ação. Quando a Boeing disse na semana passada que venderia novas ações para fortalecer suas finanças, as ações subiram, “um sinal de que os investidores entendem que o futuro da empresa está em jogo.
O trabalho também tem um papel aqui. O sindicato da Boeing, cujos líderes chegaram a um novo acordo no fim de semana passado, culpou a administração pelos problemas da empresa — o mesmo ocorrendo com os trabalhadores da indústria automobilística que entraram em greve em Detroit no ano passado. Mas estão todos juntos nisso. Os trabalhadores devem pesar não apenas o que a Boeing pagará nos próximos anos, mas se existirá daqui a uma geração.
traduzido do inglês por investnews