‘Xi in Rio’: como a China capitalizou a indiferença dos EUA na América Latina
Visita de Xi Jinping à América Latina ilustra o poderio chinês na região que já foi o quintal dos Estados Unidos
A China está em ascensão.
O líder chinês Xi Jinping desembarcou nesta semana em uma região onde a China está a frente dos EUA como parceira comercial dominante na maioria das grandes economias, com exceção do México e da Colômbia. Pequim incluiu a maior parte da América Latina e do Caribe em um programa de infraestrutura que exclui os EUA. E no Peru, Xi inaugurou um megaporto para acelerar o comércio com a Ásia.
A China é uma compradora voraz do lítio argentino, do petróleo bruto venezuelano e do minério de ferro e da soja brasileiros. Os US$ 286,1 bilhões em projetos chineses na região — que incluem linhas de metrô em Bogotá e Cidade do México e barragens hidrelétricas no Equador — estão se aproximando do valor do trabalho desenvolvido pela China na África, mas com um modelo de empréstimo renovado e menor reação. Os valores foram contabilizados pelo laboratório de pesquisa AidData da Universidade William & Mary em Williamsburg, na Virgínia.
Xi está visitando a América do Sul para participar de cúpulas de liderança, incluindo um fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico esta semana em Lima, no Peru, e uma cúpula do G-20 na semana que vem no Rio de Janeiro. Essas reuniões provavelmente exemplificarão o que alguns chamam da “marginalização econômica dos EUA pela China” na região. Embora a presença do presidente Biden também seja aguardada, sua estatura ficará muito diminuída após a vitória eleitoral de Donald Trump — e Xi, como líder chinês, visitou a região mais do que os dois americanos.
Poucos veem a América Latina como o quintal dos EUA.
As nações da região são geralmente sinceras em seu desejo de manter relações calorosas com os EUA, mas muitas vezes são vistas como uma prioridade secundária em Washington. Os diplomatas e executivos de Pequim, por sua vez, se envolvem ativamente com os governos locais e nacionais, quase que independentemente de suas inclinações políticas.
“É muito frustrante porque esta região tem tudo aquilo que você acha que as empresas americanas gostariam”, disse Ryan Berg, diretor do programa das Américas do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais de Washington.
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Além de aprofundar os vínculos econômicos, Xi promove um modelo de governança que rompe com a ordem do pós-guerra liderada pelos EUA, que para ele é uma relíquia ultrapassada do colonialismo. A atenção sustentada de Xi à região “é simbólica, e os países do Sul Global precisam desse reconhecimento”, disse Alvaro Mendez, diretor de uma unidade da London School of Economics and Political Science que estuda a influência da China.
Trump, que em seu primeiro mandato se concentrou principalmente na região como fonte de imigração indesejada, agora pode forçar alguns de seus países a escolhas difíceis se os pressionar a limitar seus vínculos com a China. “Muitos latino-americanos estão apreensivos com o que lhes acontecerá nos próximos quatro anos nesta questão crítica”, disse Michael Shifter, estudioso da América Latina no grupo de políticas do Diálogo Interamericano em Washington. Ao mesmo tempo, o aumento de tarifas proposto por Trump pode levar algumas nações mais para perto de Pequim.
O comércio e o investimento chineses cresceram em aproximadamente 40 nações da América Latina e do Caribe, lar de mais de 660 milhões de pessoas em uma área que se estende do México ao Chile e Argentina, além de nações insulares como Jamaica e Cuba.
A construção de infraestrutura pela China, incluindo portos para transportar commodities, reflete como, em toda a Ásia e África, a China sob Xi consolidou sua presença construindo pontes, usinas de energia e estádios. A China também tem uma reputação mais leniente em relação às dívidas na América Latina do que em outras partes em desenvolvimento do mundo. Principalmente porque Pequim desacelerou os compromissos de novos projetos e ajustou a forma de financiamento de alguns deles.
A generosidade de Pequim nem sempre é benéfica, e suas exportações de bens de capital e de consumo, além de produtos químicos e máquinas, em particular para o México, dão à China um superávit comercial com a região em geral.
A China vem ocupando espaço com exportações de produtos manufaturados, como o hardware de telecomunicações da Huawei Technologies e os veículos elétricos da BYD, que assumiu uma ex-fábrica da Ford no Brasil. Um influxo de aço chinês recentemente forçou o fechamento de uma grande usina chilena. Alguns países já estão aumentando as tarifas sobre produtos chineses, e outros veem ameaças nos grandes participantes chineses em setores tradicionais, como a pesca. A imagem da China também foi manchada por construções de má qualidade, como em um projeto hidrelétrico no Equador, e pelo descaso com o meio ambiente e povos indígenas, como no entorno de minas de cobre no Peru.
Novo modelo
A China é atraída pelas mesmas características que deveriam deixar as multinacionais americanas ansiosas para competir na região amplamente democrática: recursos naturais abundantes, incluindo minérios críticos, capital humano para a fabricação de produtos como os farmacêuticos, bases crescentes de consumidores e estado de direito.
O comércio deu um impulso à influência mais ampla de Pequim em uma região que tradicionalmente se alia aos EUA. O Brasil recentemente se juntou à China na apresentação de uma proposta para encerrar a guerra na Ucrânia e enfatizou a visão de um Sul Global para desafiar a ordem tradicional liderada pelos EUA. A Argentina permite que a China opere uma estação de rastreamento por satélite para seu programa espacial, uma entre várias de ligações quase militares. E os inimigos de Washington na região — Cuba e Venezuela — consideram a China amiga e protetora.
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Washington teme que a crescente influência econômica chinesa proporcione a Pequim uma profunda influência sobre os governos latino-americanos. A comandante do Comando Sul dos EUA, Gal. Laura Richardson, alertou repetidamente sobre a difusão de Pequim na região. Em resposta aos avanços da China, a Casa Branca tem procurado estabelecer instituições duradouras nos países em desenvolvimento para atrair investimentos.
O governo Biden “se concentrou muito em tentar levar investimentos do setor privado para o exterior” e causar impacto por meio de altos padrões que contribuem para “a estabilidade de longo prazo ou a estabilidade fiscal de longo prazo dos países”, disse um alto funcionário do governo, acrescentando que a China desacelerou seus compromissos em meio a ventos contrários em casa e problemas com alguns projetos no exterior.
Uma das principais motivações para a atenção de Xi à América Latina e ao Caribe é isolar a ilha democraticamente governada de Taiwan. Sete das 11 nações em todo o mundo que mantêm relações diplomáticas com Taipei estão na região, incluindo Guatemala, Paraguai e Haiti. Cinco que mudaram o reconhecimento para Pequim sob a supervisão de Xi, incluindo Honduras e Panamá, foram inundados com negócios chineses.
Provavelmente com Taiwan em mente, Pequim fechou acordos de compra de minérios e alimentos, de operações portuárias em países como o Peru e de comercialização em yuan, para fortalecer as linhas de suprimentos contra os riscos de que o militarismo chinês um dia desencadeie entre as potências ocidentais uma pressão para impor um embargo. Nesse cenário, pode-se esperar que Pequim ofereça incentivos a nações do G-20 como o Brasil para neutralizar o tipo de pressão que a Rússia enfrentou depois de invadir a Ucrânia, de acordo com um novo relatório do Rhodium Group e do Atlantic Council.
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Nem tudo é do jeito que Pequim quer. Pouco antes da viagem de Xi, o Brasil pareceu rejeitar suas propostas de aderir formalmente à iniciativa da Nova Rota da Seda, um golpe para um programa que, segundo cálculos do think tank Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), inclui 22 das 26 nações elegíveis da América Latina e do Caribe e um sinal de descontentamento da maior economia da região sobre o acesso recíproco limitado ao mercado chinês.
Estrada esburacada
Já se passaram 110 anos desde que os Estados Unidos concluíram o Canal do Panamá e mais de meio século desde que Washington procurou conter a disseminação do comunismo durante a Guerra Fria, intrometendo-se nas democracias da América Latina. Hoje, a formulação de políticas dos EUA para a região está fortemente inclinada para a imigração ilegal e os narcóticos, e não em como a estabilidade política e a crescente classe média poderiam funcionar a favor dos Estados Unidos.
O pouco envolvimento de Washington proporcionou espaço para a China ganhar reconhecimento regional, dada sua ousadia. Quando duas das nações pró-comércio da região, Uruguai e Equador, não conseguiram acordos de livre comércio com os EUA por volta do início do governo Biden, ambas se voltaram para Pequim. No ano passado, o Uruguai e a China disseram estar buscando um acordo, enquanto o Equador concluiu outro, o quinto de Pequim na região em comparação com os 11 dos EUA.
A prioridade do Equador continua sendo estabelecer um acordo comercial com os EUA, mas em reconhecimento ao atual clima político de Washington, “o país “está priorizando estratégias alternativas para aumentar as exportações para os EUA”, de acordo com o embaixador do país em Washington, Cristian Espinosa Cañizares.
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A China aproveitou oportunidades incontestáveis, disse Jorge Guajardo, ex-embaixador mexicano na China agora na empresa de consultoria DGA Group, em Washington. Como ele explica, “os EUA veem a América Latina como ‘nossa para ignorar’”.
A indiferença vai contra uma pesquisa do Centro de Pesquisa Pew publicada em julho, que mostrou que os EUA têm uma classificação de favorabilidade mais alta do que a China nas economias da Argentina, Brasil, Chile, México e Peru.
Guajardo disse que o dinamismo econômico dos EUA faz deles o mercado de exportação mais atraente para as nações latino-americanas e caribenhas diante da desaceleração da demanda de importação chinesa e da cautela de Pequim no financiamento de projetos em comparação com a última visita de Xi, em 2019.
Uma das ferramentas de Washington para combater as incursões chinesas é o financiamento da Corporação Internacional de Financiamento do Desenvolvimento. A agência americana divulgou como sucesso US$ 30 milhões em financiamento para um projeto de mineração de cobalto e níquel no Brasil para apoiar a produção de baterias de íons de lítio. Mas nas Américas, sob o mandato atual da agência, todos, exceto Bolívia, Honduras, Nicarágua e Haiti, são ricos demais para se qualificar para a maior parte de seu apoio a projetos; o financiamento da mina no Brasil foi aprovado somente após uma revisão especial do governo dos EUA.
Mais característica é a situação na Guiana, que buscava financiamento para expandir um porto para o petróleo produzido pela Exxon Mobil e a Hess, mas que não se qualificou para o apoio dos EUA, porque suas reservas de petróleo faziam dela um país muito rico. Isso abriu as portas para empreiteiros chineses. “Os EUA estão fazendo todo o bombeamento de petróleo, mas a China faz grande parte da infraestrutura”, disse Berg, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.
Uma autoridade da Corporação Internacional de Financiamento do Desenvolvimento não abordou questões sobre nações específicas, mas disse que uma prioridade da agência é obter uma nova autorização de financiamento no Congresso.
Silêncio retumbante
Quando John Feeley chegou ao Panamá como embaixador dos EUA no início de 2016, havia planos em andamento para uma quarta ponte sobre o Canal do Panamá, e ele queria a participação de uma empresa americana. “Foi o canal que nos uniu”, explicou ele.
No entanto, Feeley contou que seus telegramas para Washington não conseguiram chamar muita atenção para o projeto da ponte. Ele disse que até ligou para a gigante da engenharia Bechtel, em Reston, na Virgínia, para despertar seu interesse. “Eu estava tentando chamar a atenção para isso e a resposta foi um silêncio retumbante”, disse Feeley. A Bechtel não respondeu às perguntas.
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Em 2018, o Panamá deu o projeto de US$ 1,42 bilhão a um consórcio de empresas pertencentes e operadas pelo governo da China. O interesse de Pequim seguiu-se à decisão do Panamá no ano anterior de romper relações com Taiwan, e a mídia estatal chinesa alardeou o acordo como a maior vitória do país nas Américas.
Os EUA, disse Feeley, “olham para a América Latina como um problema, não como uma oportunidade”.
Escreva para James T. Areddy em [email protected], Ryan Dubé em [email protected] e Roque Ruiz em [email protected]
traduzido do inglês por investnews