Como Pequim assumiu o controle do centro financeiro de Hong Kong — e deixou o Ocidente para trás
O centro de investimentos mundial entre o Oriente e o Ocidente se torna cada vez mais chinês
Em frente aos gongos dourados que esperavam para serem tocados, Bonnie Chan, líder da bolsa de valores de Hong Kong, começou a discursar no primeiro semestre deste ano. O que ela disse, exaltando a posição de Hong Kong como centro financeiro internacional, não foi algo notável. O notável foi o modo em que disse.
Chan, formada em Harvard, falava em mandarim. A língua em que o pronunciamento seria feito foi escolhida em uma votação de 2 a 1 contra o inglês pelos três gestores de ativos chineses que lançavam novos fundos de criptomoeda naquele dia. A bolsa não ofereceu tradução simultânea em inglês ou em qualquer outro idioma.
Quando os gongos soaram e as negociações começaram, os poucos ocidentais presentes assistiram em silêncio. Eles haviam entendido o discurso de Chan, perguntou um repórter? Não, responderam em uníssono.
Em muitos e diversos aspectos, a conquista do setor financeiro de Hong Kong por Pequim parece irreversível. Em uma velocidade impressionante, o importante centro de investimento mundial entre Oriente e Ocidente vai se tornando cada vez mais chinês com a saída de instituições financeiras, corporações internacionais e expatriados.
Os bancos estrangeiros tiveram papel importante em um quinto das ofertas públicas iniciais de Hong Kong este ano, em comparação com cerca de metade há apenas dois anos. Os bancos chineses assumiram o lugar dos ocidentais como os principais ganhadores no mercado de capitais de dívida da cidade.
Os banqueiros privados estão cada vez mais atendendo aos milionários chineses de primeira geração, em vez dos ricos expatriados que fizeram fortuna nas décadas passadas. Os recrutadores corporativos dizem que o mandarim conversacional é essencial para ser contratado.
Um porta-voz da bolsa de Hong Kong disse que os eventos e cerimônias de listagem são realizados em formato bilíngue na medida do possível e são adaptados às preferências de emissores individuais. Ele acrescentou que Chan, que se tornou CEO em março, costuma fazer discursos em inglês.
A mudança parece dramática no The Iron Fairies, bar próximo da bolsa de valores de Hong Kong que durante anos foi um refúgio para banqueiros ocidentais.
Ele agora é dominado por clientes chineses, que preferem garrafas de uísque e tequila a bebidas individuais, disse Sandeep Sekhri, executivo-chefe da empresa que administra o estabelecimento. A banda de jazz da casa aprendeu algumas músicas em mandarim no início do ano, incluindo um sucesso de mandopop dos anos 1970 chamado “The Moon Represents My Heart”.
Com um declínio nas taxas outrora altas em Hong Kong, empresas como Goldman Sachs, Morgan Stanley e UBS realizaram várias rodadas de demissões em suas divisões de banco de investimento em toda a Ásia. Alguns dos maiores escritórios de advocacia internacionais do mundo seguiram os bancos nas demissões, pois têm dificuldade de competir com seus pares chineses, que geralmente cobram taxas mais baixas, de acordo com advogados do mercado de capitais.
No longo prazo, a mudança significa que as instituições financeiras ocidentais precisam de uma nova estratégia para suas operações na China. Muitas mudaram seu foco de banco de investimento para gestão de patrimônio na esperança de ainda atender clientes chineses. Outras transferiram recursos para a Índia e o Oriente Médio.
O relacionamento já tenso entre os EUA e a China pode sofrer outro golpe. O presidente eleito Donald Trump falou sobre a imposição de uma tarifa de 60% ou mais sobre produtos da China, uma medida que, se cumprida, pode levar as empresas a afastar ainda mais suas cadeias de suprimentos do país asiático e prejudicar o crescimento chinês.
Trump nomeou o senador Marco Rubio, da Flórida, como secretário de Estado e pediu ao deputado Mike Waltz para ser seu conselheiro na Casa Branca em assuntos de segurança nacional. Ambos têm atitudes agressivas em relação à China e pediram ao governo dos EUA que adote posturas mais duras.
A receita de bancos de investimento na região da Ásia, excluindo o Japão, caiu no ano passado para o nível mais baixo desde pelo menos 2010 para Goldman Sachs, JPMorgan e Morgan Stanley, de acordo com dados da Dealogic. Os bancos chineses, incluindo o Citic Securities e o China International Capital Corporation, se tornaram os maiores ganhadores da região desde 2022.
Os bancos internacionais têm outras fontes de receita, como taxas de gestão de patrimônio e negociação de títulos, mas não detalham sua composição na Ásia. Globalmente, as taxas de outras fontes compõem a maior parte de suas receitas.
Executivos de Wall Street disseram que estão comprometidos em fazer negócios na China. O presidente e executivo-chefe do JPMorgan, Jamie Dimon, que visitou Hong Kong em maio como parte das comemorações do centenário do banco no país, pediu um envolvimento contínuo com a China, que, segundo ele, estabeleceu um novo curso com mais foco na segurança nacional, na capacidade militar e no desenvolvimento interno.
Em particular, muitos banqueiros e investidores ocidentais lamentam as mudanças nas negociações e na cultura, que, de acordo com eles, podem levar a uma erosão da diversidade de Hong Kong e resultar em menos transparência e menos escrutínio sobre o comportamento financeiro de alto risco.
Os bancos chineses costumavam estar mais dispostos a canalizar seu próprio capital para o mercado imobiliário da China continental e para veículos de financiamento de governos locais altamente endividados, alguns dos quais agora correm o risco de inadimplência. Muitos bancos chineses endureceram os padrões depois que esses empréstimos de alto risco deram errado.
O chefe de investimentos de um banco de Wall Street, que é de um país ocidental, disse que se sente alienado em Hong Kong agora, com tanto mandarim e tanta concorrência dos bancos chineses.
“Ela ainda é uma cidade de classe mundial”, disse ele. “Mas acho que não podemos mais chamá-la de cidade mundial.”
Bobagem, dizem os executivos chineses, muitos dos quais preferem os bancos chineses, que dizem tratá-los melhor, cobrar menos e ter redes mais amplas na China continental, embora sua presença em outros lugares seja pequena. Hong Kong ainda é vital para qualquer um na China que queira emitir ou investir em ações e títulos fora do continente — eles só não precisam que os banqueiros ocidentais controlem o acesso, dizem.
Um executivo de uma incorporadora imobiliária chinesa, que estava trabalhando em um acordo de dívida privada de pequena escala, disse que alguns bancos ocidentais recusaram esse papel devido à sua visão pessimista do mercado imobiliário da China. Um banco chinês, continuou o executivo, designou vários diretores de nível sênior e cerca de 20 associados.
“Os bancos chineses são diferentes”, afirmou. “Se o preço for justo, eles aceitam.”
Em um comunicado, o porta-voz do governo de Hong Kong disse: “Qualquer sugestão de que, com mais empresas chinesas presentes aqui, Hong Kong está se tornando menos internacional e cada vez mais parecida com uma das cidades da China continental, é completamente falsa”.
Ele acrescentou que Hong Kong continua um centro financeiro internacional, sendo classificado em setembro novamente como um dos três principais centros financeiros globais do mundo, ao lado de Nova York e Londres, segundo o Índice de Centros Financeiros Globais.
Vários bancos globais anunciaram recentemente planos de expansão em Hong Kong e a cidade continua atraindo capital estrangeiro, como o aprofundamento das conexões com investidores e mercados do Oriente Médio, acrescentou.
Troca da guarda
Até agora, este ano, 56 empresas foram listadas na bolsa de valores de Hong Kong, e 79% delas não contrataram nenhum banco estrangeiro como principal patrocinador, de acordo com prospectos de negócios. Esse número foi de cerca de 50% em 2022 e 2021, de acordo com documentos compilados pelo provedor de dados financeiros Wind.
Em 2022, as empresas da China continental com sede regional em Hong Kong superaram as americanas pela primeira vez em pelo menos três décadas, mostram dados oficiais. A diferença aumentou em 2023.
As empresas da China continental também solidificaram sua posição dominante no mercado de ações de Hong Kong, ocupando 80% do valor total do mercado até o final de outubro, em comparação com 60% há uma década.
Toda essa atividade está ajudando a compensar algumas das perdas econômicas sofridas por Hong Kong como resultado da pandemia e da saída de executivos ocidentais. Os preços dos aluguéis residenciais de Hong Kong voltaram aos níveis anteriores à pandemia, de acordo com dados do Departamento de Classificação e Valuation da cidade.
Mas o clima é menos exuberante do que antes, agora que a economia da China enfrenta dificuldades. Nos prédios da cidade, os preços dos aluguéis são mais baixos do que os níveis pré-pandêmicos, criando mais opções para as empresas chinesas que desejam aqui se instalar.
Uma empresa chinesa de gestão de patrimônio recentemente expandiu o tamanho de seus escritórios, alugando outro andar em seu prédio na área de Causeway Bay, em Hong Kong. O aluguel total é menor do que o pago pelo espaço original em 2019, de acordo com um executivo de lá.
O Sevva, bar com vista para os escritórios do HSBC em Hong Kong e frequentado por banqueiros ocidentais da cidade, fechou em abril após 16 anos. Unidades de redes de restaurantes da China continental, como o Yang Guo Fu, que serve pratos picantes de hot pot, foram abertas.
Parte da mudança em Hong Kong reflete a realidade de que o mercado de negócios está fraco, dados os problemas econômicos da China. As novas listagens na bolsa de valores de Hong Kong caíram para o menor acumulado em mais de 20 anos em 2023. Nos últimos meses, houve um aumento depois que a listagem de US$ 4 bilhões da fabricante chinesa de eletrodomésticos Midea Group alimentou o otimismo entre banqueiros e investidores.
Mesmo assim, as mudanças parecem mais estruturais do que cíclicas.
Cedida ao Reino Unido pela dinastia Qing da China em 1842, Hong Kong foi por décadas a principal porta de entrada para os investidores estrangeiros conseguirem abocanhar uma fatia do mercado chinês, especialmente depois que as reformas econômicas começaram no final dos anos 1970. Os bancos ocidentais garantiram taxas gordas ajudando empresas chinesas a abrir seu capital em bolsas de valores estrangeiras, a emitir dívidas e a comprar empresas europeias e americanas.
O boom continuou depois que Hong Kong foi devolvida à China em 1997. Durante a década de 1990 e início dos anos 2000, chefs famosos como Nobu Matsuhisa e Alain Ducasse abriram endereços na cidade. A Lan Kwai Fong, rua estreita no centro de Hong Kong, deixou de ser um beco tranquilo com barracas de flores para se tornar uma das zonas de pubs de expatriados mais agitadas da Ásia.
Essa era começou a minguar em 2019, depois que milhões de habitantes de Hong Kong foram às ruas protestar contra uma controversa lei de extradição imposta por legisladores pró-Pequim. O governo central da China reprimiu, prendendo dissidentes, restringindo a liberdade de imprensa e impondo uma lei de segurança nacional que incluía punições pesadas por interferência estrangeira. A pandemia isolou ainda mais a cidade.
Hoje, Hong Kong mantém muitas vantagens que a tornaram um importante centro financeiro, incluindo — em contraste com a China continental — uma moeda livremente negociada atrelada ao dólar, a livre circulação de capital através de suas fronteiras e um sistema de leis que tende a ser mais eficiente do que o sistema legal socialista do continente.
Porém, as coisas nas quais os bancos estrangeiros são competitivos — conectar grandes empresas chinesas de rápido crescimento com investidores globais, especialmente os da Europa e dos EUA — não são mais prioridades para muitos clientes chineses em Hong Kong. Os negócios estão ficando menores e as empresas se preocupam mais em levantar dinheiro a um custo baixo do que em cortejar investidores globais, dizem os banqueiros.
“Hong Kong passou de um centro bancário de investimento pan-asiático para um centro bancário de investimento da China. O mercado de Hong Kong agora é realmente apenas um mercado chinês”, disse Joseph Gallagher, que passou em Hong Kong a maior parte de suas quatro décadas de carreira em bancos de investimento e foi presidente do comitê de banco de investimento da Ásia-Pacífico no Credit Suisse até o final de 2022.
Nos últimos anos, a maioria dos banqueiros da cidade trabalha apenas em negócios com a China. Isso ocorre em parte porque outros mercados asiáticos agora justificam ter suas próprias operações no local, disse ele, e o crescimento da China requer equipes bancárias grandes e dedicadas.
Ao contrário das instituições financeiras ocidentais, os bancos do continente em Hong Kong têm uma posição vantajosa no tipo de negócio que está se tornando mais prevalente na China, conforme investidores do governo e empresas estatais desempenham papéis maiores na economia.
Desde 2023, os governos locais chineses assumem cada vez mais o papel de investidores de IPO de Hong Kong, à medida que Pequim foi direcionando o capital para as prioridades do governo, como semicondutores, e os investidores internacionais perderam o interesse em ativos chineses.
Os bancos chineses também estão mais dispostos a fazer negócios envolvendo principalmente investidores “familiares e amigos”, que normalmente são indicados pelas próprias empresas listadas, e não pelos bancos que atuam como subscritores.
Os bancos internacionais normalmente não aceitam essa prática, o que limita sua capacidade de fazer a devida diligência sobre os investidores e supervisionar os negócios. Os bancos de Wall Street, incluindo o Goldman Sachs, saíram de vários negócios desde 2023, em parte por esse motivo, dizem pessoas familiarizadas com o assunto.
Os banqueiros chineses apelidaram a obsessão dos bancos estrangeiros em encontrar investidores independentes — em vez de apenas fechar os negócios — de “transtorno obsessivo-compulsivo moral”.
Os bancos chineses usaram seus balanços maiores para continuar financiando partes de maior risco da economia da China nos últimos anos, incluindo complexos veículos de investimento estatais que as cidades usaram para construir rodovias, atrações turísticas e outras infraestruturas que agora são pouco utilizadas em partes altamente endividadas do país. Algumas instituições financeiras ocidentais rejeitaram esses acordos porque os consideravam muito arriscados e opacos.
Até US$ 800 bilhões dessa dívida têm agora em alto risco de inadimplência. Na semana passada, o principal órgão legislativo da China assinou um pacote de US$ 1,4 trilhão para ajudar a aliviar o fardo da dívida dos governos locais.
Escreva para Rebecca Feng em [email protected]
traduzido do inglês por investnews