Três semanas após a BYD ter reivindicado a coroa de líder mundial de vendas de veículos elétricos, a decepção com o último balanço da Tesla (TSLA34) mostra que não é apenas o reinado de Elon Musk que está ameaçado. O alerta do bilionário sobre uma nova onda de crescimento em 2024 levanta dúvidas sobre o consumo de EV’s (na sigla em inglês) no Ocidente – território que outras marcas chinesas também querem dominar.
De modo geral, a Tesla reportou números abaixo do esperado na última quarta-feira (24). As ações reagiram em queda no dia seguinte, tombando mais de 10% em Nova York, com uma das sete magníficas perdendo US$ 50 bilhões em valor de mercado em apenas um dia e cada vez mais se afastando do seleto grupo de gigantes de tecnologia.
“A Tesla não vem seguindo a alta das ‘Big 7’, em meio a um cenário em que os dados mostram certa estagnação na transição energética do setor automotivo”.
Dan Kawa, economista e portfolio manager, no LinkedIn.
De fato, números recentes mostram que o aumento da participação dos veículos a bateria na matriz automotiva apresentaram crescimento mais modesto nos últimos meses. Para se ter uma ideia, na União Europeia, os registros de EV’s caíram em dezembro pela primeira vez desde abril de 2020, conforme dados oficiais da associação de fabricantes (ACEA).
Apesar de o setor ter despontado como um “queridinho” da nova economia, o ponto de equilíbrio entre oferta e demanda pode desafiar a rentabilidade de empresas tradicionais, como Toyota, Fiat e Citroën. Muitas montadoras estão agora tentando convencer o consumidor a comprar carro elétrico usado ou limitando a fatia de EV’s no mercado.
Made in China
Além disso, a concorrência chinesa se mostra cada vez mais competitiva, beneficiando-se até da agressiva guerra de preços que a empresa de Musk iniciou no ano passado. Tanto que o bilionário sugeriu barreira comercial aos veículos elétricos chineses, afirmando que as montadoras de lá “vão demolir a maioria das outras empresas no mundo”.
Por isso, o Natixis avalia que os veículos elétricos podem ser o “próximo campo de batalha geopolítico”, depois da “guerra dos chips”, em especial entre as baterias. “O caminho para o sucesso dos fabricantes chineses de EVs provavelmente enfrentará restrições de políticas estrangeiras”, avalia a gestora, em relatório assinado pela economista-chefe para Ásia-Pacífico, Alicia Garcia Herrero, e os analistas Gary Ng e Haoxin Mu.
No entanto, a ultrapassagem da Tesla pela BYD em vendas globais de veículos elétricos e híbridos não foi nenhuma surpresa para quem já vinha acompanhando essa corrida. No terceiro trimestre, por exemplo, as vendas da chinesa no mundo foram de apenas 3,5 mil EV’s a menos que a rival norte-americana.
Já o lucro disparou mais de 200% nos seis primeiros meses de 2023, com a maior fabricante de carros elétricos conseguindo reduzir custos por controlar grande parte da cadeia de abastecimento. A BYD não só fabrica suas próprias baterias, como também tem seus navios de transporte, produzindo até 75% dos componentes dos seus automóveis.
“A BYD se diferencia das outras montadoras pela integração vertical da sua cadeia de suprimentos. Utilizando-se de substancial ajuda do governo chinês, sob a forma de subsídios, a empresa investiu em pesquisa e desenvolvimento (P&D)”, destaca a XP Investimentos, em relatório assinado pelos estrategistas Paulo Gitz e Jennie Li.
Mesmo com um mercado interno acirrado, com outras marcas chinesas como Nio e Dongfeng deixando gigantes do setor para trás, a autointitulada “maior montadora que você nunca ouviu falar” também é a empresa automotiva mais populosa do mundo. Fundada em 1995 por Wang Chuanfu e com sede em Shenzhen, a BYD possui mais de 20 fábricas e de 600 mil funcionários – números bem acima da média mundial.
Alerta global?
Outra declaração de Musk também chama atenção. Afinal, o alerta de que o crescimento das vendas de EV’s neste ano será “notavelmente menor”, mesmo com a manutenção da política de redução de preços, também acende a luz amarela das demais fabricantes – inclusive chinesas?
O especialista em administração pública chinesa, José Renato Peneluppi Júnior, explica que a indústria de carros elétricos deu certo na China porque produziu um novo padrão de transporte nacional – individual e coletivo. Residente no país desde 2010, ele conta que o mercado de EV’s faz parte da política chinesa de transição energética, que visa reduzir as emissões de gases poluentes até alcançar a neutralidade de carbono em 2060.
“A China está transformando a matriz de energia por meio de fontes renováveis para estabelecer um novo padrão de desenvolvimento, com uma nova dinâmica econômica”.
J. Renato Peneluppi Jr., especialista em administração pública chinesa.
O governo chinês, ciente dos desafios ambientais, estabeleceu metas ambiciosas para a adoção de veículos elétricos, incentivando a indústria local. É nesse cenário que se insere a história da BYD, tida como um exemplo de como políticas governamentais podem impulsionar a inovação e a adoção de “tecnologias verdes”.
Peneluppi conta que, além dos subsídios do governo chinês às empresas, também houve um incentivo ao consumo, estimulando a migração de veículos movidos a combustível fóssil pela compra de veículos totalmente elétricos e híbridos plug-in. Ao mesmo tempo, houve o investimento na infraestrutura necessária.
“Em 2012, já se encontrava em grandes cidades na China carregadores para carros elétricos de forma a viabilizar o mercado e reduzir a ansiedade em relação ao abastecimento”, conta o especialista, que participou de um documentário sobre energias renováveis na China a ser lançado este ano.
Segundo ele, foi a instalação dessa base estrutural no gigante emergente anos atrás que viabilizou a expansão do uso nos dias atuais. “Hoje há pontos de recarga das mais diversas qualidades por toda a China, demonstrando que viajar para qualquer parte do país de carro elétrico é viável e sem risco”, acrescenta.
Go Global
Trata-se de desafios que o Brasil e vários países do Ocidente enfrentam. “É difícil exportar a estratégia chinesa, uma vez que esses países têm o foco só no mercado consumidor, com pouco avanço na instalação de infraestrutura e um olhar pouco estratégico para planejamento de uma indústria que envolve diversos setores”, conclui Peneluppi.
Nesse sentido, os especialistas em Ásia da gestora de recursos ressaltam que as empresas chinesas subiram no ranking mundial muito em função da demanda doméstica ter quintuplicado entre 2020 e 2022. “Mas o sucesso interno pode não ser totalmente transferível para o exterior”, ressaltam Alicia, Gary e Mu, em relatório.
Assim, a campanha de expansão global da BYD pode apenas dobrar a participação de mercado da China no exterior em 2023, passando para 11% contra 5% em 2020, estima o Natixis. Isso porque o aumento de menos de 50% de entregas de veículos da Tesla no ano passado mostra que o problema não é preço nem modelos acessíveis, mas mobilidade.
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