Carlos Kawall está vivendo um momento de “eu avisei”. Crítico de primeira hora do arcabouço fiscal, o ex-secretário do Tesouro do governo Lula 1 e fundador da Oriz Partners diz que o governo Lula até vinha tentando manter a sensação de zelo pelas contas públicas, mas isso mudou na última segunda-feira (15), quando a Fazenda anunciou a alteração nas metas de resultado primário para os próximos anos.
Para Kawall, não há mais dúvidas: “O Brasil está sem âncora fiscal”.
A disparada do dólar e a empinada da curva de juros são evidências de que o mercado não nutre mais ilusões relacionadas a um Lula 3 supostamente fiscalista. “Foi um momento de cair na real de que não havia nenhum compromisso com a meta [de superávit]. O que há é a opinião do chefe do Executivo – a de que gasto não vai a ser variável de ajuste fiscal”, diz o economista.
“Se a receita vier maior, ok. Se não vier, o déficit será mais alto”. Deal with it.
O arcabouço nasceu da tentativa de combinar limitação no crescimento dos gastos com os compromissos assumidos por Lula durante a campanha, como política de reajuste do salário mínimo acima da inflação e contratação de funcionários públicos. Tudo embalado por metas de resultado primário – ou seja, com objetivos pré-definidos de déficit (ou de superávit).
Segundo a pregação do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o conjunto de regras foi formulado para ser viável politicamente. Dizendo de outra forma, para acomodar a pressão por mais despesas e, em tudo dando certo, demonstrar algum apreço com a responsabilidade fiscal. Afinal, uma crítica recorrente ao antigo teto de gastos centrava fogo na sua inflexibilidade, o que abriria espaço para dribles à regra fiscal, os famosos “furos” no teto.
Desse ponto de vista, o arcabouço de Haddad parecia ter potencial. Quem estragava a festa era a matemática – sempre ela.
“Alguém realmente achava que as metas dos próximos anos seriam mantidas? Alguém, que fez conta, achava que dava para chegar? Não, pelo que eu vi, não”, diz o economista.
Além da incompatibilidade matemática entre o crescimento das despesas contratado pelas promessas de campanha e o limite da expansão dos gastos a 2,5% ao ano, o governo foi dando outros sinais de que as contas públicas seriam atropeladas.
Kawall elencou alguns:
- A formulação da lei orçamentária com despesas subestimadas e arrecadação superestimada;
- À luz da peça orçamentária mal calibrada, a limitação do contingenciamento (bloqueio no Orçamento) a R$ 23 bilhões, abaixo do que os economistas calcularam como necessário para garantir o déficit zero em 2024 – por volta de R$ 40 bilhões;
- O primeiro relatório bimestral de 2024 seguido de um discretíssimo contingenciamento de R$ 2,9 bilhões;
- O dispositivo que permitiu ao governo antecipar a expansão do limite de gastos deste ano – uma alteração no próprio arcabouço – e que permite uma despesa extra de R$ 15,7 bilhões, revertendo, na prática, o contingenciamento.
E agora ainda está na pauta um possível reajuste para servidores públicos em meio a ameaças de movimentos grevistas.
Resumindo: “Quando o governo anuncia que o resultado do fiscal neste ano é zero mas que não vai contingenciar nada, ou que vai gastar mais R$ 15 bilhões, ou que ele mudou as metas dos próximos dois anos, ele está simplesmente dizendo ‘olha, eu não tenho mais a âncora fiscal’.”
LEIA MAIS: Governo vê déficit fiscal de R$9,3 bi em 2024 e deve bloquear R$2,9 bi em despesas de ministérios
Personagem do mercado financeiro, Kawall está acostumado às dificuldades da política. Trabalhou no governo entre 2004 e 2006, primeiro como diretor no BNDES, depois como secretário do Tesouro Nacional, quando Guido Mantega comandava a Fazenda.
“Os primeiros anos do PT no governo – e eu participei do governo Lula – foram de responsabilidade fiscal, mas sem teto de gastos, só com a LRF”, argumenta, referenciando à Lei de Responsabilidade Fiscal. “Havia o compromisso de obtenção de superávit primário fazendo os contingenciamentos que fossem adequados ao atingimento da meta”, relembra.
Para Kawall, o grande erro do arcabouço foi a aposta no equilíbrio fiscal com base na expectativa de aumento da arrecadação. “Sem o compromisso de conter a despesa, especialmente a despesa obrigatória, nenhuma regra fiscal funciona”.
Riscos e mais riscos
Neste cenário, os riscos não são triviais. Na leitura de Kawall, o estresse visto no mercado nos últimos dias leva em consideração as sinalizações de juros altos por ainda mais tempo nos Estados Unidos e as possíveis pressões inflacionárias advindas da expansão fiscal aqui no Brasil.
Combinados, estes dois fatores podem levar o Banco Central a diminuir o ritmo de queda da Selic. “Mesmo que o governo conduzisse a política fiscal dentro dos ditames do arcabouço, seria difícil ir para uma Selic abaixo de 9%”, pondera o economista.
“Mas agora já parece difícil que vai ficar abaixo de 9,5% e, a depender do que acontecer até lá, talvez a gente nem consiga chegar a um dígito”, pontua Kawall, que vê como hipótese mais provável um corte de 0,25 p.p. já no próximo Copom, em maio.
LEIA MAIS: FMI projeta maior déficit primário e alta da dívida pública no Brasil em 2024
Na avaliação do economista, o bom crescimento do PIB em 2023 – 2,9%, acima do que se esperava no começo do ano – ficou muito concentrado no surpreendente desempenho do agronegócio, além das commodities minerais (petróleo e minério de ferro).
Já os setores de produtos com maior valor agregado (mais sensíveis a quedas nos juros) capengam. “O desempenho ainda está muito fraco, com produção abaixo do nível da pandemia”.
Eis o novo aviso: “O risco é a gente contratar mais uma desaceleração cíclica”.
Veja também
- Ricos brasileiros lamentam crise em meio à redução de fortunas
- Dólar reage à intervenção do BC e avanço do pacote fiscal no Congresso: queda de 2,29%
- Congresso dilui ajuste fiscal — de novo — em meio a enfraquecimento do real
- Pânico cambial corre solto no Brasil diante da impotência de auxiliares de Lula
- Governo abandona tripé macroeconômico e crise de confiança vai além da política fiscal, diz Solange Srour