Não é difícil passar desapercebido por um dos muitos avisos de “Aluga-se quarto” na maior cidade brasileira.
Basta um olhar atento para os prédios da zona central da cidade de São Paulo, contudo, para ver as placas que se espalham na entrada dos chamados cortiços, um tipo comum de moradia que ajuda a contar a história de como a cidade se transformou de um centro da cultura cafeeira para uma megalópole industrial e comercial.
Com as primeiras aparições datadas do final do século 19, os cortiços surgiram para abrigar trabalhadores à medida que São Paulo fazia a transição de uma grande cidade para uma metrópole – e, finalmente, para uma megalópole de mais de 20 milhões de pessoas.
Geralmente convertidas de construções já existentes, essas habitações se proliferaram nos anos 1970 e 1980 enquanto as famílias de classe média saíam do centro de São Paulo, deixando grandes casas que foram transformadas em moradias para múltiplas famílias.
Condenados pelas autoridades em diversas ocasiões ao longo dos anos, os cortiços têm a reputação de serem lugares degradados e, muitas vezes, perigosos, onde as pessoas vivem porque precisam, não porque desejam.
É esse tipo de moradia, contudo, que tornou a vida urbana possível para muitos, permitindo que pessoas de baixa renda vivessem perto dos locais de trabalho e proporcionando um ponto de apoio para os recém-chegados à capital paulista. À medida que a população de maior renda volta para o centro de São Paulo, entretanto, o futuro dessas pouco quistas, mas críticas habitações se torna incerto.
Onda de renovação
As qualidades que tornam os cortiços atraentes, apesar das más condições, podem, em última análise, acelerar o seu desaparecimento. Como em muitas cidades ao redor do mundo, classes de maior renda têm retornado ao centro de São Paulo, gentrificando áreas antes consideradas perigosas e indesejáveis. Prédios anteriormente vagos ou abandonados em áreas históricas foram amplamente reformados e agora abrigam apartamentos para inquilinos mais abastados, muitos deles, para alugueis sazonais, além de livrarias e cafés.
A cidade tem incentivado ativamente esse processo. Desde 2021, uma nova lei oferece benefícios fiscais e estímulos aos construtores que fizerem o retrofit das propriedades mais antigas no centro da cidade. Segundo dados do Secovi/SP, sindicato patronal do setor imobiliário, a prefeitura autorizou um retrofit a cada 18 dias no ano passado até outubro.
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A onda de renovações tem mudado a demografia da região, aumentando o custo de moradia no coração de São Paulo. “Cortiços vão ser empurrados do centro com certeza,” diz Sanches. “Uma característica dos cortiços é estarem em áreas com empreendimentos saindo, valorizadas.”
Como resultado, moradores de baixa renda podem estar sendo forçados a migrarem de bairro. O programa de renovação de prédios inclui um subsídio para projetos que visam famílias de até seis salários mínimos, mas o projeto não tem conseguido atrair interessados e foi, inclusive, recentemente simplificado na tentativa de aumentar a atratividade.
O fato de ainda existirem em tão grande número é, por si só, revelador. Eles podem estar degradados e carentes de serviços, mas o aluguel de moradias de baixa qualidade no centro da cidade continua sendo uma fonte de receita. Os cortiços resistem porque ainda são lucrativos para os seus proprietários.
Uma megacidade é construída
Habitação eclética em tamanho e aparência, os cortiços são definidos pela legislação brasileira como unidades habitacionais multifamiliares coletivas com acesso compartilhado a espaços comuns, como banheiros, por exemplo. Normalmente superlotados, eles são encontrados em várias cidades do Brasil.
O clássico “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo, leitura obrigatória nas escolas brasileiras, por exemplo, se passa no Rio de Janeiro. Mas é em São Paulo que eles estão mais concentrados. Em 2022, mais de 80 mil pessoas viviam em 31,8 mil cortiços, segundo Censo.
Cortiços não têm um padrão justamente porque costumam ocupar propriedades abandonadas ou vazias. No centro de São Paulo, ocupam prioritariamente antigos casarões. Vistos de fora, têm a fachada de uma casa tradicional, muitas vezes estreitas, com um portão que dá acesso a um longo corredor ou pátio que conecta os quartos.
Eles surgiram, inicialmente, como uma solução rápida para o fluxo de trabalhadores depois dos anos de 1870. Antes disso, a riqueza de São Paulo vinha principalmente do boom do café. Contudo, ao final do século XIX, fábricas têxteis, serrarias e fundições também apareceram e atraíram não apenas pessoas da região, mas também da Europa, que chegaram em maior número após o declínio da escravatura e a abolição final do regime em 1888, aumentando a procura pela mão-de-obra de trabalhadores urbanos livres.
De uma cidade de 31mil habitantes em 1870, São Paulo cresceu para 240 mil habitantes em 1900, e mais do que dobrou novamente em 1920. À medida que a região, cada vez mais rica, se expandia e construía novos edifícios de alvenaria de estilo europeu (e, depois, arranha-céus), prédios baixos mais antigos e casas com estilo colonial desceram na escala social, subdivididas em cortiços e repletas de recém-chegados.
Ao longo do século seguinte, o que inicialmente poderia ter parecido uma solução habitacional temporária, tornou-se permanente e generalizado. Em 1968, 10% da população de São Paulo vivia em um cortiço.
Essas habitações estão longe de serem idênticas. Às vezes, eram pequenos cômodos construídos nos fundos de lotes residenciais ou comerciais. Em outros casos, eram casas grandes, que pertenceram a famílias ricas, subdivididas em unidades menores para vários inquilinos de baixa renda.
Alguns cortiços se autodenominam pensões, mesmo que os locatários vivam nos mesmos quartos por décadas. Os estudantes também são inquilinos comuns, assim como as muitas pessoas que vêm de outras cidades e regiões em busca de tratamento médico de melhor qualidade.
Solução temporária permanente
Apesar de por fora variarem, por dentro essas unidades tendem a ser muito semelhantes. Um apartamento típico é um cômodo individual, que serve de quarto e cozinha, com espaço para cama, fogão e guarda-roupa. Uma pequena pia pode ser colocada dentro ou na porta do quarto.
Os moradores, geralmente, compartilham um banheiro comum, e a roupa limpa fica pendurada ao longo de um corredor ou pátio, dependendo do tipo de construção. Uma pesquisa de 2022 da Secretaria de Habitação de São Paulo mostra que um cortiço tem em média 11 quartos e dois banheiros compartilhados. O quarto típico mede 12 metros quadrados, com uma média de quase 2 pessoas por quarto.
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Os custos mais baixos atraem a maioria dos residentes para os cortiços. Em 2022, os quartos eram alugados por uma média de R$ 750, de acordo com a cidade. Muitos inquilinos são trabalhadores informais, que não têm os comprovantes de renda necessários para alugar um apartamento regular, disse Luiz Kohara, do Centro Gaspar Garcia, uma organização sem fins lucrativos que fornece consultoria jurídica para famílias em cortiços. “Geralmente são pedreiros, diaristas, eletricistas ou algum outro tipo de bico”, acrescentou.
As autoridades municipais tentaram regulamentar o fim da existência de cortiços em diversas ocasiões, proibindo a construção de quartos para abrigar este tipo de moradia, primeiro no final da década de 1870 e novamente na década de 1910. Para evitar a propagação de doenças, a cidade também tentou reduzir o número de ocupantes por quarto. Sem fiscalização, porém, continuaram a ser uma importante opção de residência para os mais pobres – ao lado das favelas, que começaram a se formar na década de 1950 nas regiões periféricas da cidade.
Com a falha em erradicar os cortiços, o estado introduziu uma lei para melhorar a qualidade de vida, estabelecendo condições mínimas aceitáveis em relação a itens como altura do teto, iluminação e ventilação, em 1991.
A lei Moura também instituiu, no mínimo, um banheiro para cada 20 domicílios e proibiu os proprietários de aumentar os alugueis depois que as melhorias fossem implementadas. Essa lei foi aplicada de forma imprecisa até, pelo menos, 2005, quando o primeiro programa significativo foi criado a fim de monitorar as condições sanitárias e estruturais dos cortiços e punir os proprietários que violam as regras.
Liberdade de deslocamento
Apesar das precárias condições comuns, há boas razões para escolher esse tipo de morada em vez das favelas, frequentemente distantes. Os gargalos de deslocamento da extensa megalópole brasileira tornam atraentes até mesmo as moradias precárias no centro da cidade
“Em São Paulo, transporte público é caro, ineficiente, e tem gente que não quer levar três horas pra ir e três horas para voltar no seu cotidiano e se sujeita a isso.” diz Débora Sanches, arquiteta e co-autora de um livro sobre cortiços. “E existe demanda pelos quartos.”
Deslocamentos mais curtos não são a única vantagem. Serviços, como educação pública e saúde, costumam ser melhores nos bairros centrais do que na periferia, e há um espírito comunitário que torna a vida menos difícil, diz Lucimeire Morette, agente comunitária de saúde de 43 anos, que compartilha um quarto de 20 metros quadrados em uma casa antiga na conhecida Rua 13 de Maio, em São Paulo, com a filha. “A gente cuida uns dos outros”, diz ela.
As crianças vão e vêm entre os 12 quartos da casa, assim como os gatos de estimação que afugentam os insetos e ajudam a manter os “fantasmas” da antiga mansão afastados, segundo a crença popular. O corredor central, por onde se estende a roupa recém lavada, funciona como uma espécie de rua principal do edifício. Os inquilinos também se uniram para melhorar as condições. Instalaram o próprio banheiro e garantiram instalação elétrica regular. Obter acesso legal à água municipal ainda é um problema para muitos cortiços e alguns recorrem à ilegalidade.
Nesse cortiço em particular, os moradores tentam na justiça conseguir o Usucapião — direito de propriedade adquirido por tempo de uso —, já que o local não foi reclamado pelos donos nas últimas décadas. Também conseguiram se livrar da clássica figura do intermediário – uma espécie de administrador, muitas vezes exploratória, que é responsável por lidar com os serviços básicos, como coletar os aluguéis e até despejar os inadimplentes.
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