Pouquíssimos mercados podem se gabar de serem imunes – ou quase – ao juro alto. Esse é o caso do consumo de luxo. No Brasil, nem mesmo a Selic de dois dígitos nos últimos dois anos tem inibido o segmento imobiliário de altíssimo padrão, onde os preços do metro quadrado têm alcançado patamares nunca antes testados. E sem dar sinais de desaquecimento.
Várias cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro, Cuiabá e Florianópolis só para citar algumas capitais, observam uma aceleração de lançamentos que incorporam projetos, serviços e equipamentos exclusivos. Preços também. Alguns já superam a marca dos R$ 100 mil por m2.
Mas o que realmente buscam os clientes mais ricos? “As pessoas de altíssima renda querem hoje muito mais do que tamanho”, afirma Álvaro Marco Coelho da Fonseca, diretor-executivo da imobiliária paulistana fundada por seu pai e especializada no mercado de luxo. “Eles querem uma nova experiência imobiliária.”
Isso significa viver em apartamentos ou condomínios de casas que juntem a localização nos melhores bairros da cidade com aspectos únicos, como design assinado de projeto, paisagismo e decoração. Essa ideia de incorporar características diferenciadas ao imóvel chega até ao ponto de se buscar uma espécie de selo de aprovação de ícones do luxo.
Que tal morar na Daslu Residences ou na Versace Home? Em São Paulo, você pode. Isso se tiver vários milhões para desembolsar, é claro. No mercado imobiliário paulistano de alto padrão, o comprador pode escolher entre apartamentos com selo Armani, Pininfarina e Eli Saab. Ou ainda de marcas brasileiras, como Fasano e Charlô.
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Assim como no mercado de arte, o interessado deseja o raro e compra, muitas vezes, a história por trás do empreendimento. No mundo das residências de luxo, o cliente quer ter um imóvel com essa aura de algo único. Pelo menos é o que as incorporadoras têm tentado atribuir aos projetos.
Para os especialistas, houve uma nítida mudança de prioridades após a pandemia entre o público de alta renda. “Nossa clientela, por exemplo, passou a querer viver melhor e investir mais no imóvel”, explica Claudio André de Castro, diretor da imobiliária carioca Sergio Castro Ouro, que recentemente comercializou a mansão mais cara do país, que fica no Rio de Janeiro e foi anunciada por R$ 220 milhões. “As pessoas passaram a valorizar mais essa experiência de bem-estar em casa.”
A própria venda dessa propriedade pela Sérgio Castro pode ser vista como um termômetro do aquecimento do mercado imobiliário de luxo no país. A mansão fica em uma área de 11,2 mil m2 no Jardim Pernambuco – área (ainda mais) nobre do Leblon – e permaneceu à venda por cinco anos. Em julho, a incorporadora Mozak arrematou a antiga residência da família Amaral, do fundador dos supermercados Disco, por um valor não revelado.
A compradora pretende demolir o imóvel original e construir ao menos 10 residências ali. As novas propriedades, por sua vez, vão ser oferecidas por um preço de até R$ 150 mil o metro quadrado. O projeto tem um potencial de venda de mais de R$ 1 bilhão.
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Tanto a Sérgio Castro, no Rio, quanto a Coelho da Fonseca, em São Paulo, registram um forte crescimento neste ano em comparação a 2023. Os negócios da imobiliária carioca avançam 40% enquanto a paulistana acumula uma expansão de 30%. A tendência é de o ritmo continuar acentuado em 2025. “A procura tem sido muito grande mesmo com a alta de juros”, diz o diretor da corretora da capital fluminense.
Nas duas metrópoles, houve uma mudança de patamar no valor do metro quadrado em relação aos últimos dois anos. Os lançamentos de alto padrão nos bairros mais desejados de São Paulo, como Itaim Bibi, Vila Nova Conceição e Vila Olímpia, têm sido vendidos em uma faixa de preços entre R$ 30 mil e R$ 60 mil o m2. Há cerca de dois anos, os valores giravam bem abaixo, na faixa de R$ 20 mil a R$ 50 mil.
“O mercado se acomodou nessa faixa, mas demorou um pouco”, diz Coelho da Fonseca. “O cenário atual ainda é de valorização do metro quadrado nos bairros mais nobres. São regiões com escassez de terrenos e de localizações muito desejadas.”
No Rio, os valores de venda têm se situado entre R$ 35 mil e R$ 50 mil, em média, na zona Sul, principalmente no eixo entre Ipanema, Leblon e Lagoa. Trata-se de uma alta de 50% em dois anos. “Isso em termos de lançamentos, mas se a gente olhar para alguns dos endereços que o mercado chama de ‘prédios-troféus’ em Ipanema e Leblon, como o Cap Ferrat, o Ana Carolina e o JK, já tem apartamento sendo vendido por R$ 50 milhões”, diz Castro, da Sérgio Castro. Essa faixa de preço coloca o valor do metro quadrado desses edifícios na faixa entre R$ 80 mil e R$ 100 mil.
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Os interesses dos consumidores mais ricos do país vai muito além de piscinas particulares, equipamentos e conveniência. Em busca desse algo único, o diretor da imobiliária carioca conta que um cliente com bilhões de reais na conta escolheu ter um apartamento no antigo Hotel Glória, que se tornou um condomínio de luxo, o Residencial Glória. “Ele queria a história do lugar”, diz Castro.
Nessa nova realidade do mercado imobiliário de alto padrão, as assinaturas de escritórios renomados já não se limitam apenas à arquitetura. “O paisagismo se tornou tão importante quanto a arquitetura”, afirma Alexandre Souza Lima, CEO da Meta Incorporadora. “Cada empreendimento é muito diferente. São condomínios desenvolvidos de maneira especial, que nem podem ser comparados uns com os outros.”
Para a executiva-chefe de marketing (CMO) da incorporadora You Inc, Tatiana Muszkat, as parcerias com escritórios renomados de arquitetura e decoração permitem adicionar esse elementos únicos tão desejados pela alta roda.
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Em alguns projetos da construtora, os apartamentos contam com um pé direito, ou seja, a altura até o teto, de mais de 5 metros. Outros edifícios incorporam fachadas de concreto aparente e usam materiais pouco usuais. “É algo meio disruptivo. Então, hoje em dia, a primeira coisa que chama a atenção é, claro, a localização, mas a segunda é o projeto.”
O empresário Henrique Blecher, ex-CEO da Gafisa, é mais um que mantém visão positiva para o mercado imobiliário de luxo. Depois de deixar a incorporadora no ano passado, o executivo fundou a Origem, no Rio de Janeiro. O especialista elege a Barra da Tijuca como uma das melhores regiões da cidade para implantar novas moradias de luxo. “Os bairros dessa região são um bolsão de riqueza. Os consumidores desejam um produto que tenha ali uma exclusividade. Estar em uma área privilegiada, com um imóvel personalizado e com escassez de oferta.”
Fora do eixo Rio-São Paulo
O mundo dos imóveis de luxo vai muito além de São Paulo e Rio. No Centro-Oeste, a riqueza do agronegócio tem impulsionado o segmento. A City Soluções Urbanas, de Goiânia, especializada no alto padrão, tem crescido a uma média de 50% ao ano desde 2020. João Gabriel Tomé de Oliveira, sócio-diretor da incorporadora, afirma que o segmento tem avançado com força, principalmente, desde o fim da pandemia. “E a gente entende que esse é um movimento nacional.”
O executivo explica que os clientes na capital de Goiás tendem a preferir condomínios nos quais consigam fazer tudo por lá mesmo. “Por exemplo, ter uma academia com os mesmos equipamentos das melhores da cidade, para ser utilizada pelo morador e seu personal trainer. Mas também áreas de co-working, home schooling, salas de reunião, espaços de delivery, mercado, spa, sala de massagem, salão de beleza e painéis de recarga de veículos elétricos. Os prédios mais antigos não têm isso.”
Designs assinados também fazem a cabeça dos endinheirados de Goiânia. “Nós trouxemos também para cá essa pegada de escritórios renomados assinando o projeto junto conosco. Com isso, criamos um status de irreplicabilidade e conseguimos dar a noção de escassez e status vinculado a esses residenciais.” Oliveira cita já ter feito edifícios em parcerias com Arthur Casas, Patricia Anastassiadis, Triptyque e o estúdio Pininfarina, que por décadas projetou os carros da Ferrari.
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O sócio da City vê uma tendência de os preços por metro quadrado se manterem em alta mesmo com juros subindo em 2025. “É um mercado que costuma reagir a fatores diferentes dos segmentos imobiliários mais tradicionais. Ter lançamentos com tantos diferenciais mexe com o interesse desse público.”
Para Souza Lima, CEO da Meta, “o alto padrão é menos suscetível às altas de juros, porque os clientes podem comprar sem depender de financiamento”. Muitos milionários até fazem operações de crédito imobiliário, mas, nesse caso, é para aproveitar o fato de as taxas de financiamento terem custo muito próximo à taxa básica de juros Selic.
Isso ocorre porque, nas linhas do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), voltadas a propriedades acima de R$ 1,5 milhão, os bancos costumam captar recursos por meio de letras de crédito imobiliário (LCI). São papéis que pagam um percentual do CDI, geralmente um pouco abaixo (eles são isentos de imposto de renda, então mesmo assim fica como se pagassem mais do que o CDI).
Como o certificado de depósito interfinanceiro segue a Selic, os bancos podem oferecer um custo de crédito próximo ao nível da própria taxa básica. A propriedade fica atrelada ao contrato, por meio da alienação fiduciária, uma garantia que ajuda a manter os juros menores. Se por algum motivo o comprador deixar de pagar as prestações, a instituição pode retomar o imóvel.
Já aplicações de renda fixa como títulos de crédito privado pós-fixados, por exemplo, costumam pagar bons prêmios sobre o CDI. “Quem já tem o dinheiro para adquirir a propriedade à vista pode manter o valor em títulos com remuneração acima do custo do empréstimo e, assim, ganhar com essa diferença”, explica André Souyoltgis, diretor comercial da Coelho da Fonseca.
Imóveis de altíssimo padrão, afinal, não são para quem quer. São para quem pode. Fazer financiamento, então, só for para ganhar com arbitragem – receber mais juros do que paga. Falta de dinheiro para quitar à vista nunca será o problema.
(colaborou Rikardy Tooge)
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