Brienna Hall tem o trabalho mais valioso que você nunca viu, em uma empresa essencial da qual talvez nunca tenha ouvido falar.
Até começar a trabalhar na holandesa ASML no ano passado, ela não conhecia a empresa. Também não sabia o que faria como engenheira de suporte ao cliente — uma “mecânica especializada”, como ela se define. E não imaginava que seria fundamental para a economia global.
Quando chega para trabalhar em uma fábrica de chips, Hall veste um traje especial impermeável. Entra em uma sala onde o ar é 100 vezes mais puro que o de um centro cirúrgico. Em seguida, dirige-se a uma máquina de extrema complexidade.
Seu trabalho é conhecer cada detalhe do equipamento — para conseguir consertá-lo.
“Acho que tenho o trabalho mais interessante de todos”, diz Hall. “Ainda não processei o fato de que o que faço é necessário para que o mundo funcione como conhecemos.”
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O equipamento no qual Hall presta manutenção se tornou essencial no mundo atual. São as chamadas máquinas de litografia ultravioleta extrema (EUVs, na sigla em inglês). É a ferramenta que produz os microchips mais avançados do planeta. É como se fosse uma “impressora de chips” – tecnologia que só a ASML domina com propriedade.
Essa big tech holandesa, então, vende essas máquinas EUV para grandes produtores de chips, como a Samsung e a gigante TSMC, de Taiwan – que as instalam em suas fábricas.
Os equipamentos são construídos com tecnologias que parecem vindos de histórias de ficção científica — avanços tão improváveis que antes eram considerados impossíveis. Ela transforma placas de silício (wafers) nos processadores que movem a vida moderna.
Mesmo hoje, existem apenas algumas centenas dessas máquinas EUV — e são extraordinariamente caras. O modelo do qual Hall presta manutenção custou US$ 170 milhões, enquanto as versões mais recentes são vendidas por cerca de US$ 370 milhões.
Isso torna a ASML o elo central do negócio dos chips. Isso porque a empresa holandesa é responsável por todos os sistemas de litografia EUV que ajudam a fabricar os chips presentes em grande parte de nossos dispositivos: celulares, computadores, tablets, TVs e até mesmo carros.
Essas máquinas tornaram-se indispensáveis. E dependem do trabalho invisível de profissionais como Brienna Hall.
Ela é uma das engenheiras que atuam nas fábricas onde os clientes da ASML produzem seus semicondutores. Hall trabalha em Boise, sede da Micron Technology, onde, depois de vestir o traje especial, a acompanhei pela fábrica.
Foi quando tive uma rara oportunidade de conhecer os bastidores do que pode ser considerada a máquina mais importante já construída.
Aos extremos
As máquinas EUV são mais um milagre que uma maravilha da tecnologia.
Sua história começa há 40 anos em um galpão na Holanda, com o nascimento da Advanced Semiconductor Materials Lithography — hoje simplesmente ASML. Na época, imprimir chips com luz ultravioleta extrema era uma ideia fantástica. Transformá-la em realidade exigiria mais tempo e recursos do que os visionários que sonharam com essa tecnologia revolucionária poderiam imaginar.
É um processo que envolve vaporizar gotículas de estanho derretido e produzir um tipo de luz que não existe naturalmente na Terra.
Ou pelo menos essa é a maneira mais simples de entender a ciência extremamente complexa da litografia ultravioleta extrema.
As gotículas são atingidas por pulsos gêmeos de laser — explosões que acontecem 50 mil vezes por segundo. O primeiro pulso as achata. O segundo as transforma em um plasma que emite a luz EUV. Essa luz é então captada usando os espelhos mais sensíveis já inventados, e direcionada para a placa de silício para gravar bilhões de padrões microscópicos de transistores.
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O desafio fundamental da indústria de semicondutores é como incluir cada vez mais transistores em um chip para torná-lo mais veloz. A solução: comprimentos de onda cada vez mais curtos. As primeiras ferramentas de litografia da ASML criavam luz em comprimentos de 436 nanômetros. As máquinas atuais reduziram esse número para 13,5 nanômetros. Isso permite que fabriquem chips em resoluções dez mil vezes mais finas que um fio de cabelo.
Quanto mais eu aprendia sobre litografia ultravioleta extrema, mais extraordinária ela parecia.
E há dois aspectos dessa tecnologia EUV que não consigo esquecer: foram necessárias décadas para que essas máquinas extremamente sofisticadas saíssem dos laboratórios para as fábricas. E até pouco tempo, não havia certeza se a aposta ousada da empresa valeria a pena. Em 2012, precisando de capital, a ASML vendeu uma participação de 23% para Intel, Samsung Electronics e Taiwan Semiconductor Manufacturing (TSMC), o que significou que seus maiores clientes estavam literalmente investindo no sucesso da empresa.
A ASML então aumentou a produção — muito gradualmente. Entregou o primeiro sistema EUV em 2010. Só em 2020 chegou ao centésimo. O ano passado foi intenso: vendeu 42 máquinas EUV.
Até agora, apenas seis empresas possuem essas máquinas para fabricação de chips. Mas muitas outras dependem indiretamente da ASML — incluindo as companhias mais valiosas da história.
A Apple e a Nvidia projetam seus próprios chips e terceirizam a produção para as fábricas da TSMC. Isso significa que a tecnologia da ASML é fundamental para fazer desde centros de processamento de inteligência artificial até iPhones.
As máquinas EUV são hoje tão essenciais que a empresa mantém uma equipe de dez mil profissionais de suporte ao cliente para mantê-las funcionando.
“Eles são nossa tropa de elite”, afirma Jim Koonmen, diretor de relacionamento com clientes da ASML.
Os clientes da ASML esperam que seus equipamentos de litografia funcionem ininterruptamente, mas as pausas são inevitáveis e imprevisíveis, como relata o jornalista holandês Marc Hijink em “Focus”, seu livro sobre a empresa.
A TSMC se preocupa com terremotos. Já a Intel uma vez identificou um problema na litografia com origem inusitada — uma mudança nos padrões do vento que transportava gás metano de fazendas leiteiras próximas.
“Gases dos bovinos”, escreveu Hijink.
Deixando de lado o caso inusitado, as falhas são raras. Mas a máquina EUV é o ponto crítico de todas as fábricas. A produção inteira para se o equipamento não funciona — e é por isso que a ASML mantém profissionais disponíveis 24 horas por dia em todo o mundo.
Pessoas como Brienna Hall.
Formação
Muito antes de conhecer a ASML, havia sinais de que ela se encaixaria perfeitamente.
Hall, 29 anos, cresceu em Seattle, onde foi uma escoteira dedicada à perfeição em fazer nós. Foi presidente do clube de foguetes do Edmonds College quando obteve seu primeiro diploma. Na Universidade Estadual de Washington, formou-se em ciência e engenharia de materiais — e transcreveu anotações para um professor que escrevia um livro sobre mecânica quântica. Adora planejar acampamentos, mesmo não gostando de acampar. Nas horas vagas, trabalha com as mãos, fazendo patchwork e montando elaborados quebra-cabeças da marca Ravensburger.
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Toda essa experiência acabou sendo uma excelente preparação para lidar com uma máquina que tem mais de cem mil peças.
“Você está sempre resolvendo problemas”, explica Alex Jordan, outro engenheiro da ASML. “Como posso ser mais eficiente? Como posso otimizar isso? E se já tivermos tentado essa solução?”
Quando a ASML contrata profissionais de suporte ao cliente, busca engenheiros meticulosos, disciplinados e detalhistas. Hall tinha o perfil técnico e o temperamento ideais para o trabalho. Quando um de seus professores soube que uma empresa de semicondutores estava contratando, ela enviou seu currículo e logo recebeu contatos da ASML pedindo que se candidatasse.
A maioria dos universitários não conhece a ASML. Na verdade, provavelmente sabem mais sobre ASMR.
Hall ficou intrigada quando seu entrevistador perguntou como ela se sentia trabalhando em espaços apertados com trajes especiais. Depois descobriu que o cargo inicial incluía muitas viagens. Era tudo o que precisava ouvir para aceitar a proposta da ASML. “Sempre quis viajar”, conta, “e mal conhecia a Costa Oeste”.
Em sua primeira viagem longa, passou um mês em Taiwan para o curso Fab Ready 1 no centro de treinamento da ASML, onde se familiarizou com as partes da máquina EUV: o scanner (seção com os espelhos que focalizam a luz na placa de silício), a fonte (parte que gera a luz) e o laser de acionamento (componente com os lasers).
E aprendeu que cada parte tem sua própria personalidade. Na fábrica da Micron, o scanner é chamado de “Monica” — como a personagem de “Friends”.
“Porque tudo tem que ser perfeito”, explica Hall, fazendo referência ao perfil metódico da personagem de Courteney Cox no famoso seriado. “As condições precisam ser exatas para que ela funcione.”
Hall conheceu a “Monica” quando voltou a Boise para o treinamento prático. Enquanto isso, ampliava sua experiência em meses de aulas do Fab Ready 2 em Taiwan, San Diego e Alemanha, onde aproveitou para visitar a cidade-berço dos quebra-cabeças que tanto aprecia, Ravensburg.
Passou quase um ano como aprendiz antes de ser autorizada a trabalhar sozinha na máquina EUV. Quando não está em outros continentes, Hall fica no escritório da ASML, próximo ao campus da Micron. Trabalha em turnos de 12 horas, das 6h às 18h. No inverno, chega bem antes do nascer do sol e sai muito depois que ele se põe.
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Em alguns dias, vai direto para a fábrica. Em outros, permanece em sua mesa, analisando dados em suas várias telas até “ter certeza de que a máquina não vai apresentar problemas”, diz. Nesse momento, Hall passa a planejar a série de ações que executará durante a “parada programada”, uma interrupção rotineira para manutenção preventiva que visa minimizar o risco de uma “parada não programada”.
Afinal, a única coisa mais gratificante que consertar uma máquina é ter uma que não precisa de consertos.
Mas qualquer tipo de intervenção no equipamento é o que ela considera mais interessante. Lidar com pessoas é que a deixa tensa.
“Nossa máquina é complexa o suficiente para ter personalidade, mas ainda é uma máquina. Se você apertar os botões certos, ela funciona. Só precisa descobrir quais botões apertar. Eu consigo resolver isso. Nós conseguimos resolver isso”, diz Hall. “Os humanos são muito mais complexos que qualquer máquina que eu conheça.”
Vida na fábrica
Há quase 50 anos, quando quatro empresários em Boise fundaram a Micron no porão de um consultório odontológico, um de seus investidores era um grande produtor local de batatas. Por coincidência, em Idaho, até os microchips têm origem nas batatas.
Hoje, a Micron está construindo uma fábrica de US$ 15 bilhões para trazer a produção de memória avançada de volta ao solo americano. A instalação terá o tamanho de quase oito campos de futebol. Sua fundação exigiu quatro vezes o volume de concreto usado no Empire State Building.
E, ao lado das dezenas de enormes guindastes no campus da Micron, fica a fábrica de pesquisa da empresa.
Lá dentro está uma máquina que pesa quase 140 mil quilos e foi transportada da Holanda em três aviões Boeing 747 cargueiros.
Brienna Hall nunca passa mais que alguns dias sem entrar na fábrica para verificar aquela máquina EUV.
“A essa altura, sinto necessidade”, conta ela, “e encontro um motivo para entrar”.
Foi o que fizemos.
Sempre que entra na sala limpa, ela se veste da cabeça aos pés, pois até uma partícula de poeira pode causar problemas graves. Também se certifica de não precisar ir ao banheiro. “Bebo menos água e nada de café”, explica.
Sob as luzes amarelas fracas, o ambiente é quente, barulhento e confuso. Mas não para Hall. Na fábrica, ela geralmente está completamente concentrada.
Ela fala sobre solucionar problemas de uma máquina EUV como Stephen Curry fala sobre arremessar uma bola de basquete.
“Quando estou corrigindo um problema, é como se tudo ao redor silenciasse — fico totalmente focada no que estou fazendo”, explica. “E não há nada melhor que se concentrar em um problema até resolvê-lo.”
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A máquina estava fora do modo de produção quando entramos no andar inferior da fábrica.
Tínhamos duas horas — e o tempo estava correndo.
Ela consultou o laptop para revisar os detalhes do plano de serviço. Depois, atravessamos um labirinto até que Hall parou, removeu uma porta e se acomodou dentro da máquina. Enquanto ela manipulava um emaranhado de cabos em espaços apertados, observei os botões vermelhos de emergência em toda parte. Antes que eu me preocupasse em esbarrar em algum deles, Hall reapareceu.
“É uma mangueira que não está funcionando como deveria”, informou.
Um bloqueio na água significava que a mangueira não estava resfriando adequadamente o equipamento — e agora havia alguns problemas de temperatura. Quando tocou a mangueira, percebeu uma pequena torção. Algo aparentemente simples poderia se tornar um grande problema. Mesmo esse detalhe quase imperceptível poderia paralisar a máquina caso a mangueira estourasse. Essa ruptura ativaria o sensor de vazamento e provocaria uma parada imediata — o equivalente a apertar um daqueles botões vermelhos de emergência.
Os engenheiros da ASML sabiam que esse circuito estava sob pressão e tinham planejado resolver a questão na próxima parada programada. Mas isso só aconteceria em três semanas.
Poderiam esperar até lá. Ou ela poderia resolver o problema agora.
Hall explicou a situação a um funcionário da Micron e recebeu autorização para fazer o reparo no local.
Foi quando pegou dois baldes da Home Depot, conhecida rede americana de materiais de construção.
Ela precisava dos baldes de US$ 3,98 para consertar uma máquina que custa centenas de milhões de dólares. Para trocar a mangueira sem derramar água, Hall drenou o líquido até quase encher os dois baldes. Substituiu cuidadosamente a mangueira de Teflon, conectou sensores térmicos para monitoramento e fechou a porta.
Era hora de as máquinas voltarem ao trabalho.
“Do ponto de vista da engenharia, é algo relativamente simples”, disse Hall. “Mas aprendi a me orgulhar do fato de que minhas máquinas estão funcionando e produzindo para nossos clientes.”
Ela tinha feito exatamente o que deveria fazer, exatamente da maneira que deveria fazer.
E ninguém fora dali jamais saberia disso.
Envie e-mail para Ben Cohen em [email protected]
Traduzido do inglês por InvestNews
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