A queda do dólar é um fenômeno mais amplo e menos pontual do que parece. Não é só a desvalorização de 15% contra o real no ano, e de 10% contra o clube das moedas fortes. O buraco é mais embaixo: o papel da moeda americana nas reservas internacionais dos países está diminuindo – devagar, mas sempre.

Desde 2015, a fatia dela caiu 23%. Em termos absolutos, o dólar segue líder, claro. 46% das reservas globais estão na moeda americana. Mas há 10 anos eram 60%. E o nível atual é o menor desde 1995. 

Reservas, sempre vale lembrar, são o colchão de segurança dos bancos centrais. Elas servem de antídoto contra eventuais desvalorizações. 

Se o real começa a cair demais, por exemplo, o BC pode vender dólares de suas reservas no mercado. Isso aumenta a oferta de moeda americana na praça, e o preço do dólar cai. Em outras palavras, o real valoriza.   

Mas é aquilo: o dólar está perdendo o protagonismo nas reservas internacionais dos países. A maior perda, amplamente noticiada, é para o ouro. A fatia do metal amarelo nas reservas dos bancos centrais já era grande lá atrás, perto de 10%. Agora dobrou, para 20% – tanto pelo fato de os BCs estarem comprando mais ouro como pela valorização do metal. Uma coisa alimenta a outra. 

Mas não é só o ouro que tem atrapalhado o dólar. São as outras moedas também. O gráfico aqui embaixo deixa claro. Se você tira o ouro da jogada, e deixa a comparação só entre moedas mesmo, a perda de terreno da moeda americana segue evidente. Veja:    

É isso. Mesmo num embate só entre moedas, a fatia do dólar diminui 12% desde 2015 – de 65,7% do total para 57,8% agora.

E para quem o dólar mais perde terreno? A resposta não é óbvia: para o iene. A fatia da moeda japonesa foi a que mais subiu em pontos percentuais: de 3,75% do total há uma década para 5,81% agora. Já o maior crescimento relativo é do yuan. Não faz nem 10 anos que bancos centrais começaram a usar a moeda chinesa na composição de suas reservas. As primeiras compras aconteceram em 2016. De lá para cá, a fatia do yuan dobrou, de 1,1% para 2,2%. 

Destaque também para duas moedas de economias menores, mas estáveis: dólar canadense e dólar australiano (que formam o grosso do “outras” no gráfico lá de cima). Veja melhor aqui:  

E fica a pergunta: o que está acontecendo com o dólar, afinal?

O peso da dívida americana 

Há duas tempestades sobre o dólar. Uma é a questão da dívida americana. Ela é a maior, em relação ao PIB, desde a segunda guerra mundial: 120%. 

Para quem os EUA devem? Para todo mundo que tem títulos públicos americanos. É o caso do Banco Central do Brasil – nossas reservas em dólar, como a de qualquer país, fica na forma de títulos, rendendo juros. E pode ser o seu caso também: basta entrar numa corretora global e comprar um ETF que siga esses papéis. 

E como o governo americano pagam a dívida? Como qualquer outro: fazendo mais dívida. Mas isso não pode durar para sempre, por motivos de lógica pura. No longo prazo, é como pagar a fatura de um cartão de crédito com outro cartão de crédito. Uma hora a bomba explode. 

Isso vale para nós, mortais, e vale para países também. Em algum momento, o país precisa fazer superávit, ou seja, gastar menos do que arrecada, e usar o que sobra para ir abatendo a dívida. Nem que seja “só” superávit primário – quando você não contabiliza o gasto com juros da própria dívida.

Isso ao menos mostra que o país tem condições de honrar seus compromissos sem precisar de mais dinheiro emprestado o tempo todo. Pode chamar de “responsabilidade fiscal”.

Mas os EUA não fazem superávit primário desde 2007. Pior que o Brasil até, que fez seu último em 2013.  

A coisa está tão feia que já existem gestores de investimentos trocando títulos públicos americanos por títulos privados, ou seja, dívidas de empresas.

O risco de os EUA deixarem de pagar é basicamente zero. Em última instância, eles podem imprimir dólares para honrar os títulos. Mas isso equivaleria a um calote. A produção extra de dólares desvalorizaria a moeda americana. Veríamos isso na forma de uma inflação violenta do dólar.

Mesmo esse cenário é improvável. Mas não impossível. É o que mostra uma pesquisa recente do Fórum Oficial de Instituições Monetárias e Financeiras (OMFIF). Essa organização, que congrega bancos centrais, perguntou a vários gestores de reservas se achavam plausível a ideia de que a dívida americana possa causar alguma grande turbulência no futuro. Metade respondeu que sim, acha plausível. 

Aí pronto. É simplesmente natural que os países diminuam ao menos em parte a exposição ao dólar, trocando por moedas de outros países e, principalmente, por ouro. 

A questão do ouro

O dólar vive seu momento de crise. Mas nenhuma moeda é blindada contra a má gestão. Até a Alemanha, paraíso da responsabilidade fiscal, conseguiu transformar sua moeda em lixo, na década de 1920. A única forma de se garantir contra a eventual incompetência alheia é tendo nas reservas um ativo que não possa ser emitido a partir do nada. Um ativo ao mesmo tempo líquido (fácil de vender) e escasso. 

E isso pede uma pausa. Hoje, falou em escassez, falou em bitcoin. O suprimento da cripto é limitado para sempre a 21 milhões de unidades, enquanto o bolo de moeda fiduciária (o dinheiro as we know it) cresce o tempo todo – por isso a inflação quase nunca é zero, em lugar nenhum.

Mas o único país com reservas em bitcoin é El Salvador – uma país que nem moeda própria tem; usa o dólar. Há o caso do Butão, onde uma estatal usa a energia hidrelétrica abundante de lá para minerar cripto. Ainda assim, o que entra conta como caixa dessa empresa, não como reservas. 

O único “ativo não financeiro” que entra em reservas internacionais é, claro, o ouro – escasso e com liquidez garantida há 6 mil anos. 

Com a desconfiança em relação ao dólar, e outro fator que veremos logo mais, a proporção do metal amarelo nas reservas dos Bancos centrais sobe – como nunca. Veja aqui:

O país com mais ouro nas reservas são justamente os EUA. Eles guardam 8,1 mil toneladas – bem à frente do segundo colocado, a Alemanha, que tem 3,3 mil. Isso dá 80% das reservas internacionais do Fed. O resto são euros e ienes. 

O fato é que BCs de países desenvolvidos costumam ter ouro saindo pelo ladrão. Na Alemanha, na França e na Itália, por exemplo, o metal compõe quase 70% das reservas. 

Mas não são eles que puxam a fila das compras. As reservais desses países são as mesmas há décadas. Quem está indo atrás de ouro são os emergentes: Rússia, China, Turquia, Índia, Polônia e Hungria têm liderado as compras de ouro, de olho em tornar suas reservas tão sólidas, digamos assim, quanto a dos países ricos.

Leia também

No caso de Rússia e China o buraco é mais embaixo. Deixar as reservas dos bancos centrais na forma de títulos públicos americanos ou europeus é um risco real. Em caso de conflito, os EUA e seus aliados confiscam e pronto. É o que aconteceu com a Rússia. O equivalente a US$ 300 bilhões das reservas foram bloqueadas – só para visualizar melhor como é simples fazer isso: é igual você ter dinheiro no Tesouro Direto e o governo tirar sua senha. 

Por essas, a China tem reduzido a parcela em dólares de suas reservas e aumentando as de ouro. Há 10 anos, 58% estava no “Tesouro Direto” dos EUA. Hoje, são 50%. Enquanto isso, a parcela em ouro subiu de esquálidos 1,5% para 7,5%

É isso. E caso você queira saber como estamos aqui no Brasil, a situação é a seguinte: 

O BC não foge da tendência global. O auge na proporção do dólar veio em 2018, com 89%. De lá para cá, caiu bem, para 78%. E a do ouro subiu 400% nesse intervalo, de 0,7% do total para 3,5%.

Mas num ponto estamos fora da média. As reservas de dólar canadense e australiano caem. Quem é que sobe? O yuan.

E muito. A primeira compra de moeda chinesa pelo BC aconteceu em 2019. E em 2022 ela já era a segunda moeda mais presente nas nossas reservas, junto do euro, com 5% – patamar que segue até hoje. 

Não se trata de uma idiossincrasia. Uma pesquisa do OMFIF apontou que os bancos centrais mundo afora pretendem triplicar a fatia do yuan, que saltaria para 6% na média global até 2035. Ou seja: o Banco Central do Brasil antecipou a tendência.