Muitas grandes empresas só fazem mudanças drásticas na estratégia quando o negócio não está bem, só que aí já pode ser tarde.
A Kodak, por exemplo, é lembrada por ter perdido o tempo certo de inovar. Ela acreditou que as pessoas sempre gostariam de revelar suas fotos. A Kodak inovou e popularizou a fotografia desde sua fundação em 1888, mas cometeu um grande erro de estratégia: achou que aquilo que funcionou no passado, funcionaria no futuro.
O curioso é que foi justamente um engenheiro da Kodak que inventou, em 1975, a primeira câmera digital. No entanto, mesmo tendo o protótipo dentro de casa, a empresa não agiu.
No caso do Netflix (NFLX34), mesmo diante de uma jornada impressionante que massacrou com a blockbuster, inovou constantemente e desafiou analistas em Wall Street.
A primeira transformação foi quando, depois de 2010, decidiu fazer o streaming para que as pessoas pudessem assistir aos conteúdos online, em vez de apenas enviar DVDs às suas casas por correspondência – o modelo de correspondência foi a origem do Netflix em 1997.
Depois, teve coragem de transformar a empresa, que era basicamente um serviço de streaming para filmes e conteúdos de TV feitos por outros produtores de conteúdo, para criar seus próprios conteúdos. A estratégia fazia sentido, pois havia uma percepção de que vários outros originadores de conteúdos abririam seus próprios serviços de streaming e dificultariam a distribuição em outros canais, como o Netflix, culminando na redução do catálogo.
Apesar disso, muita gente questionou esse movimento, afinal, como um distribuidor de conteúdo poderia competir com estúdios tradicionais?
A resposta estava nos dados que a empresa tinha. O sistema de recomendação que o Netflix construiu, além dos dados da preferência do usuário medido pelas estrelas e avaliações que os assinantes fazem sobre os conteúdos, tornaram-se critérios para a geração de conteúdo original do Netflix.
Na prática, isso quer dizer que o Netflix não precisava ficar no achismo sobre quais novos programas poderiam ser sucessos, ou se basear em processos tradicionais que as TVs e estúdios percorriam ao criar suas produções.
A empresa poderia aproveitar a grande massa de dados em sua plataforma e conhecer, com profundidade, o comportamento do seu assinante. Isso permitiu tomar decisões sobre quais tipos de programas os espectadores gostariam, quais atores eles preferiam, quais diretores contratar e assim por diante.
Não é à toa que depois de marcar ampla presença com seu filme original, Roma, com várias indicações ao oscar em 2019, o Netflix recebeu 24 indicações ao oscar em 2020 e 35 indicações ao oscar em 2021, se destacando pelo segundo ano seguido à frente de estúdios consagrados.
Os números de fato impressionam: cresceu de 75 milhões de assinantes no mundo, em 2015, para alcançar 214 milhões em 2021. Teve receita bruta de US$ 7 bilhões e meio só no terceiro trimestre de 2021 e um lucro líquido de mais de US$ 1,4 bilhões no mesmo período.
Netflix se destaca também no market share. Nos Estados Unidos, por exemplo, de acordo com a Nielsen, em setembro de 2021 o streaming já representou 28% do tempo gasto das pessoas assistindo TV, enquanto a televisão aberta representou 26%. Dentro do streaming, Netflix e Youtube estão na primeira colocação com 6% de participação cada, à frente da Amazon Prime Video com 2% e Disney Plus (DISB34) com 1%. No Brasil, Netflix lidera em streaming, tendo a Amazon Prime Video em segundo, e depois Disney Plus, Globo Play e HBO Max.
Apesar desses números, nem tudo é perfeito e, como todo negócio, há desafios. Desde 2012, com exceção de apenas um ano, o Netflix tem operado com o fluxo negativo. Em outras palavras, os pagamentos excederam o caixa gerado.
A justificativa do caixa predominantemente negativo, segundo a empresa, é pelos altos custos para aumentar o catálogo de conteúdos originais. De fato, enquanto a lucratividade do Netflix tem melhorado, a queima de caixa aumenta. Isso acontece porque o Netflix contabiliza seus investimentos no desenvolvimento de conteúdo próprio, amortizando apenas uma parte dele a cada ano em sua demonstração de resultados.
A empresa diz que 90% do valor gasto em uma produção é contabilizado em 4 anos a partir de sua estreia. Por outro lado, é assim que ela atrai e retém seus assinantes.
Em 2020 o caixa livre foi positivo, e isso ocorreu com a diminuição dos gastos com a produção de conteúdo próprio por causa do isolamento social em decorrência da pandemia. Em contrapartida, essa redução fez com a empresa enfrentasse uma desaceleração do número de assinantes no início de 2021, afinal, havia menos conteúdo novo e de sucesso.
É verdade que acertar na produção é importante, veja Round 6, por exemplo. Especula-se que a série tenha aumentado o valor das ações do Netflix e que contribuiu para o lucro da empresa reportado no terceiro trimestre de 2021. Ao mesmo tempo, custou quase US$ 22 milhões. Só que a série não é feita do dia para a noite, envolve um alto valor pago lá atrás, que é amortizado à medida que ajuda o Netflix a atrair mais assinantes ou a reter os que já tem.
Quando Netflix lança uma produção de sucesso, o mercado tem reagido positivamente. Porém, quando a empresa cresce a base de assinantes menos do que o mercado espera, isso gera pessimismo e questionamento, como aconteceu no segundo trimestre de 2021, quando mesmo diante de aumento de receita, o crescimento da base de assinantes ficou um pouco abaixo do esperado e as ações caíram no período da divulgação do resultado.
Então o trade off está claro: mais assinantes ou mais conteúdo de sucesso? Sem conteúdos novos, perde assinantes. Com conteúdo, ganha assinantes, mas queima caixa. Será que o Netflix vai conseguir quebrar essa regra?
Vale lembrar também que a Amazon (AMZO34) adquiriu o MGM, um dos mais prestigiados estúdios de Hollywood e, com isso, vai usar a estrutura do estúdio para otimizar custos de produção de conteúdo.
Além disso, a Amazon pode se dar ao luxo de cobrar um preço mais atrativo, pois, no fim do dia, oferece vários benefícios no Amazon Prime com o objetivo de ter clientes recorrentes que comprem os produtos na plataforma.
Já o Youtube é um grande marketplace e tem a plataforma aberta, não precisa gastar para ter conteúdos sempre novos, embora o controle de qualidade seja um desafio, e disso Netflix não abre mão.
A HBO Max e Discovery Plus também anunciaram que em 2022 devem se unir e se tornar uma super plataforma. A HBO Max vai oferecer shows ao vivo e também tem transmitido a Champions League. Porém, Netflix ainda ganha na experiência do cliente.
O Netflix anunciou ainda, em julho de 2021, aumentos de cerca de 20% nos planos de assinaturas para ampliar o catálogo e renovar as séries. Isso pode ajudar a amenizar a queima de caixa, mas poderá afetar o número de assinantes. A empresa também está entrando na vertical de games, querendo buscar protagonismo em cloud gaming, ou jogos online utilizando computação em nuvem.
Há dúvidas se isso vai ajudar a atrair e reter clientes sem queimar ainda mais caixa. No curto prazo, talvez não. De toda maneira, a empresa se diz otimista para que em 2022 tenha um fluxo de caixa livre positivo. É preciso aguardar, pois é um setor que promete muitas emoções não só na telinha, mas nas estratégias também.
Leandro Guissoni é Ph.D., professor de estratégia no Brasil e Estados Unidos, empresário, palestrante e autor de livros, artigos e casos de empresas por Harvard. Assessora grandes empresas em inovação digital e analytics. |
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