A partir desta quarta-feira (20), o democrata Joe Biden assume a presidência dos Estados Unidos. Com isso, a relação entre a maior economia do mundo e seus pares globais, incluindo o Brasil, pode mudar daqui para frente.
Depois de confusões e tensões, o Congresso norte-americano validou no dia 7 de janeiro os 306 votos do Colégio Eleitoral dados a Biden e os 232 ao então presidente do país e candidato à reeleição, o republicano Donald Trump. O mínimo para ser eleito presidente dos Estados Unidos são 270.
Em uma eleição com a maior participação popular dos últimos 100 anos, em um país onde o voto não é obrigatório, os norte-americanos elegeram a primeira vice-presidente mulher, Kamala Harris, e o mais velho presidente do país. Biden, aos 78 anos, candidato à Casa Branca mais votado da história dos Estados Unidos em números absolutos, é o 46º a ocupar o cargo.
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Ele ficou conhecido mundialmente depois de ter sido o vice-presidente de Barack Obama, entre 2009 e 2017, quando viajou pelo mundo, inclusive ao Brasil, e foi um dos responsáveis pela política externa do país na época. Antes de ser vice, já era um político notório pelos norte-americanos. Ele foi senador por seis mandatos consecutivos, de 1973 a 2009. Biden também é muito conhecido por ter uma boa relação política, mesmo com os partidos de oposição.
Ideologia
O partido democrata, um dos dois maiores dos Estados Unidos, fundado na década de 1820, adota uma linha de centro-esquerda e defende uma maior intervenção do Estado na economia e uma filosofia mais liberal. Entre os ideais econômicos, está o de que os impostos sejam maiores para quem tem renda mais alta. Além disso, defende também que a regulamentação do mercado é necessária para proteger os consumidores.
Estas posições, junto da defesa do meio ambiente, apoio a sindicatos, políticas de assistência social, entre outros, integram a base ideológica do partido.
Entre os principais presidentes do partido que os Estado Unidos tiveram estão Woodrow Wilson (1913-1921), Franklin Roosevelt (1933-1945), John F. Kennedy (1961-1963), Bill Clinton (1993-2001), Jimmy Carter (1977-1981) e Barack Obama (2009-2017).
Relação com outros países
Com o fim do governo republicano de Trump e um novo comando partidário nos Estados Unidos, diversas são as expectativas de como serão as relações da maior potência econômica do mundo com os demais países e suas possíveis consequências.
Para Janina Onuki, doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), professora e diretora do Instituto de Relações Internacionais da USP, o novo governo norte-americano assume a presidência em um momento importante e cercado de expectativas. Segundo Onuki, Biden já fez mudanças consideráveis, visíveis nas indicações para o seu secretariado. Para ela, o novo mandatário norte-americano deve investir em uma agenda de política externa mais multilateralista, mais cooperativa, mas não deve haver rupturas.
Onuki avalia ainda que a disposição para o diálogo será importante, mas os Estados Unidos não deixam de ser realistas e continuarão atentos a temas de segurança internacional, terrorismo e migrações. “Agendas de meio ambiente, comércio e direitos humanos podem sofrer alguma mudança positiva, pelo menos no que se refere à amenização de um discurso mais raivoso”, destaca.
Já para a doutora em ciência política Carolina Moehlecke, professora da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a política externa do novo presidente norte-americano, além de ser pautada por um retorno ao multilateralismo e pela ênfase na questão ambiental, focará também na tentativa de reparação das relações dos Estados Unidos com seus aliados, principalmente os países europeus.
“Essas prioridades contrastam fortemente com a política externa de Donald Trump, que buscou enfraquecer instituições internacionais, como a Organização Mundial do Comércio, desmobilizar esforços globais no combate às mudanças climáticas, como pela saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris, e, em muitos momentos, antagonizou com aliados históricos, como a Alemanha e a França”, explica.
Para Moehlecke, a política comercial do novo mandatário norte-americano deverá seguir marcada por vários aspectos protecionistas ainda que, diferente de Trump, Biden busque por soluções multilaterais.
Brasil x EUA
A relação entre Brasil e Estados Unidos não é recente. O governo norte-americano foi o primeiro a fazer o reconhecimento da independência brasileira, em 1824.
Os Estados Unidos já foram o principal parceiro comercial do Brasil por muitos anos. Hoje, o país é o segundo maior depois da China, que atualmente compra mais de 30% das exportações brasileiras, enquanto os norte-americanos, 10%.
Nas trocas comerciais em 2019, o Brasil importou US$ 30 bilhões dos Estados Unidos. Já as exportações naquele ano totalizaram US$ 29,7 bilhões.
Recentemente, em outubro de 2020, os dois países assinaram o Acordo de Comércio e Cooperação Econômica, com o objetivo de aumentar o comércio bilateral e favorecer o fluxo de investimentos.
Uma das expectativas com a nova presidência norte-americana é em relação à alteração na condução ideológica da política externa dos Estados Unidos com o Brasil. Afinal, desde a campanha eleitoral de Biden, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, deixou claro seu apoio à reeleição de Trump.
O governo Bolsonaro priorizou as relações comerciais entre os países desde sua posse, em 2019. O presidente brasileiro sempre demonstrou suas intenções de ampliar as relações, além de se mostrar ideologicamente alinhado a Trump e com boas relações pessoais. Aproximação que, para Pedro Feliú Ribeiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi fundamentalmente eleitoral no plano doméstico e não teve muito ganho de política externa como no passado.
Para ele, a relação Biden e Jair Bolsonaro ficará no campo pragmático. “Acho que esse tipo de proximidade maior pode ser prejudicada, mas se o Brasil mantiver, e acho que vai manter, os canais tradicionais muito consolidados, é difícil um presidente em dois anos começar a destruir isso tudo. Acredito que até possa melhorar, ser uma relação mais objetiva, ter um ganho material nas negociações, mas não espero nenhuma proximidade pessoal”, avalia Feliú.
Visão esta também defendida por Moehlecke. Para ela, o fato de Bolsonaro ter procurado construir uma relação de proximidade com Trump, e de ter marcado essa posição durante a campanha eleitoral, mesmo após a eleição, não significou avanços, indicando que o Brasil pouco recebeu em troca. “Por exemplo, em termos de política comercial, o Brasil concedeu vantagens aos Estados Unidos no etanol, aço e alumínio, e não houve reciprocidade dos americanos”, aponta.
Questão ambiental: o ponto de atenção
Para os especialistas ouvidos pelo InvestNews, em linhas gerais, o Brasil não é prioridade aos Estados Unidos e, por isso, as relações entre os países não devem ter mudanças significativas do que já está em curso. Porém, eles destacam que um dos principais pontos de atenção é a questão ambiental.
Assuntos que aproximavam Bolsonaro e Trump, como direitos humanos, mudanças climáticas e saúde pública, por exemplo, têm outra visão com Biden, que se coloca em um posicionamento antagônico nestas questões.
O democrata destacou entre suas prioridades de governo a questão do enfrentamento às mudanças climáticas, além de buscar avançar em uma agenda ambiental ambiciosa para reverter políticas de Trump.
Biden já ameaçou “reunir o mundo” para fazer pressão pela preservação da Amazônia e condicionou a assinatura de acordos comerciais à adoção de medidas pelo governo brasileiro.
Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Brasil terminou 2020 com o maior número de focos de queimadas em uma década. Foram registrados no ano passado 222.798 focos, contra 197.632 em 2019.
Para Moehlecke, a forma como o governo Bolsonaro tem lidado com as questões ambientais pode trazer o país para o centro da agenda de política externa americana. Ela explica que, nos debates presidenciais, Biden sugeriu que poderia oferecer ajuda externa para combater o desflorestamento da Amazônia e que haveria consequências caso Bolsonaro não cooperasse.
“Tanto Bolsonaro quanto o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, reagiram fortemente a essa sugestão, o que indica pouca disponibilidade de cooperar com a administração Biden nesse assunto”, diz.
Onuki também destaca esta temática como preocupante ao Brasil. Para ela, ainda não se sabe como Biden vai tratar o presidente brasileiro, mas, certamente, o tema do meio ambiente será uma aresta a ser trabalhada entre os dois governos.
A mesma posição é defendida por Feliú, que diz não ver muitas mudanças nas questões essenciais entre os dois países com a chegada de Biden, mas na pauta meio ambiente, na avaliação dele, pode ocorrer uma deterioração.
“A questão ambiental é onde Brasil vai ter que corrigir a rota para manter o alinhamento com os Estados Unidos. O que certamente vai mudar é a neutralidade que Trump tinha em relação ao meio ambiente. Isso Biden já deixou claro. É uma pauta eleitoral muito importante para os democratas, que não é para os republicanos”, afirma.
Ele disse esperar que, com qualquer pressão norte-americana neste assunto, o Brasil recue e comece a tentar “mostrar serviço” pelo menos em relação à proteção da Amazônia, pois esta questão pode prejudicar o Brasil, na avaliação de Feliú. Para ele, Biden pode usar o Brasil como um trunfo eleitoral no âmbito doméstico.
Contenção chinesa e o Brasil
A relação Estados Unidos e China está embutida em um cenário de, entre outros fatores, acusações de espionagem, sanções e ameaças. Os dois gigantes travam uma disputa que passa por diversas temáticas, como tecnológicas, armamentistas e comerciais, na luta por uma hegemonia e influência mundial.
Feliú defende como um ponto-chave do Brasil nas relações com os Estados Unidos a posição que o país pode representar como um instrumento para os norte-americanos conterem a influência chinesa.
O professor da USP explica que a primeira coisa que o Brasil precisa ter em mente é que o principal interesse da política externa norte-americana hoje é na contenção do país asiático. Com isso, Feliú estima que os democratas continuem com essa agenda e que o Brasil tem relevância neste aspecto. “Temos que entender qual é o lugar do Brasil nessa contenção à China. E, nesta questão, o país tem um lugar relativamente significativo. O Brasil não é fundamental aos Estados Unidos, mas podemos ter alguma importância”, ressalta.
Ele aponta ainda que, neste contexto, o que seria importante para a agenda brasileira é tentar balancear um pouco essa relação entre Estados Unidos e China e fazer uma barganha entre as potências.
“A política externa no Brasil está abaixo do interesse eleitoral. Então isso é um problema. Na minha visão, o Brasil deveria se equilibrar entre Estados Unidos e a China e ver quem dá mais. A gente precisa de investimento externo direto e crédito. E a China pode dar isso. Os Estados Unidos também. São dois principais países que podem ofertar isso ao Brasil. Então, esperaria uma barganha mais autônoma”, explica Feliú.
Onuki compartilha da mesma opinião. Para ela, a China continuará sendo um competidor dos Estados Unidos na área comercial e o impacto sobre o Brasil não deve mudar, pois ambos são os dois mais importantes parceiros do Brasil. “Resta-nos saber como lidar com as duas potências de maneira a garantir ganhos em áreas que são centrais para nosso país, como agronegócio e tecnologia”, diz.
O futuro do Itamaraty
Rumores no ano passado deram conta de que Bolsonaro estaria em conversa com o ex-presidente Michel Temer para assumir o Itamaraty. A estratégia seria uma possibilidade de fortalecimento das relações com a China e Biden.
O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, é defensor de uma política alinhada a Donald Trump. Com a chegada de Biden, geram expectativas sobre o futuro do chanceler.
Para Onuki, o presidente brasileiro vem dando indicativos de uma possível mudança, mas ainda é cedo para avaliar. “O fato é que Ernesto Araújo sempre se mostrou um dos ministros mais alinhados à presidência e ao governo Trump. Ainda não é possível avaliar os impactos da mudança no ministério para a relação com os Estados Unidos”, avalia.
Moehlecke também aponta a possibilidade de que haja esse ajuste ministerial e avalia que é claro que a política externa tem sido um instrumento muito utilizado pelo governo Bolsonaro para agradar sua base mais radical.
“Ao substituir Araújo por Temer, Bolsonaro corre um risco de alienar seus eleitores mais fiéis. Esse é um cálculo que o presidente deverá fazer considerando como ficará sua popularidade nos próximos meses, que enfrentará um desafio grande com o provável fim do auxílio emergencial, o agravamento da pandemia e da crise econômica e as dificuldades de implementar um plano de vacinação nacional”, explica.