Se no futebol a rivalidade entre Brasil e Argentina chega a ser uma tradição, em outro quesito os dois países também têm travado uma “disputa” acirrada: desvalorização da moeda. O real e o peso argentino têm figurado frequentemente nas duas últimas colocações nas listas das que mais perderam valor frente ao dólar. Em um ano, o dólar subiu cerca de 23% sobre o real e 45% sobre o peso argentino. No entanto, apesar desse fenômeno em comum, outros dados mostram que as economias dos países se encontram em situação bem diferente.
A Argentina é um parceiro comercial importante para o Brasil, ficando na quarta colocação na lista dos principais, atrás apenas de China, Estados Unidos e União Europeia. Por esse motivo, a grave crise econômica enfrentada pelo país vizinho acaba gerando preocupações por aqui em relação aos efeitos sobre as exportações.
Mas, apesar de interligadas, as economias de Brasil e Argentina estão em situações distantes. Os dois países enfrentam desafios fiscais, com incertezas sobre as tentativas de reequilíbrio sobre as contas públicas, mas a Argentina tem ainda agravantes que tornam a situação do país preocupante na visão dos especialistas.
Uma das principais questões é a dependência da Argentina da moeda dos Estados Unidos, o dólar. Com as reservas em moeda estrangeira em baixa, o país enfrenta dificuldade para manter sob controle uma dívida pública que tem mais de 76% de sua composição em dólar, segundo dados do Ministério da Economia da Argentina. Como o país, naturalmente, não pode emitir a moeda, a sustentabilidade da dívida ganha um forte fator de dúvida.
Além da composição da dívida, o tamanho também preocupa. A relação com o Produto Interno Bruto (PIB) é de 100,7%, de acordo com o dado mais recente do governo argentino. Isso significa que a Argentina deve mais do que o tamanho total de sua economia – o que é um fenômeno comum em diversos países, inclusive os desenvolvidos, mas preocupa em economias que não apresentam crescimento como contrapartida para o endividamento.
Enquanto tentam controlar sua dívida, os argentinos viram suas reservas caírem para US$ 39 bilhões, de acordo com o Banco Central da Argentina. O cenário torna difícil garantir a confiança de estrangeiros para atrair dólares via investimentos – motivo que levou a taxa básica de juros a subir com força no país. Atualmente, está em 38% ao ano.
A desvalorização da moeda é pano de fundo ainda para outro problema grave da economia argentina: o descontrole de preços. Segundo o órgão oficial de estatísticas do país, o Instituto Nacional de Estatística e Censos da República Argentina (INDEC), o ano de 2020 terminou na Argentina com uma inflação acumulada de 36%. Josilmar Cordenonssi, professor de economia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, menciona o controle do governo argentino sobre o câmbio para tentar segurar a inflação, assim como o fenômeno de “dolarização” da economia.
“Lá eles controlam o dólar, tentam segurar pela inflação. Na Argentina, como eles têm uma economia em que praticamente o público trabalha com duas moedas, o peso e o dólar, toda a poupança eles transformam em dólar. Não tem confiança na moeda local”, comenta o professor, citando ainda o “mercado negro de dólar” que opera no país, “e muito superior, 40% acima do câmbio oficial, criando mais distorções.”
Com a situação delicada, Cordenonssi cita a falta de confiança e crédito para a Argentina. “A única fonte de crédito que eles têm é o FMI (Fundo Monetário Internacional).”
Quem está pior: Brasil ou Argentina?
No Brasil, o crescimento da dívida pública também preocupa e vem, inclusive, mexendo com o mercado financeiro. O problema é um dos principais fatores que vêm puxando o dólar para cima em relação ao real.
Em 2020, a relação entre dívida e PIB do Brasil chegou a 89%, segundo o Banco Central. Apesar do dado acender o sinal de alerta entre os investidores, no entanto, outros números permitem afirmar que a situação não é semelhante ao descontrole argentino, conforme explica Cordenonss.
Um desses dados é justamente o perfil do endividamento brasileiro. A dívida bruta do governo central chegou à marca de R$ 6,6 trilhões, segundo o Banco Central. Já a dívida externa é menor, de US$ 308 bilhões (ou o equivalente a aproximadamente R$ 1,6 trilhão). O montante é menor também que as reservas cambiais do Brasil, de US$ 355 bilhões.
Apesar de as reservas serem utilizadas para evitar choques do câmbio, e não para custear a dívida, Cordenonssi aponta os números como sinais de uma situação mais favorável ao Brasil.
“A grande diferença é que nosso endividamento está em reais. Não dependemos de credores externos para resolver nossos problemas, enquanto a Argentina precisa convencer investidores estrangeiros porque boa parte da dívida dela é em dólar. Tem uma credibilidade menor por conta disso”, explica o professor.
Outra comparação em que o Brasil se sai melhor é da balança comercial. O resultado do Brasil foi superavitário (ou seja, com exportações superando importações) em US$ 50 bilhões, contra US$ 12 bilhões da Argentina, de acordo com os ministérios da Economia dos dois países.
O Brasil também se encontra em situação bem mais confortável no que diz respeito à inflação. Embora haja discussões sobre uma possível pressão sobre os preços por causa da alta do dólar e das commodities, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), considerado a inflação oficial do país, segue próximo à meta do Banco Central. Nos 12 meses terminados em janeiro, o índice acumulou alta de 4,56% – acima do centro da meta de 3,75%, mas ainda dentro da margem de 1,5 ponto percentual para mais ou menos.
As previsões do FMI também indicam uma situação mais delicada na Argentina do que no Brasil. Segundo estimativa do fundo, a pandemia da covid-19 causou um tombo de 4,5% na economia brasileira em 2020 (os dados oficiais só serão divulgados pelo Instituto de Geografia Estatística, o IBGE, em março). Para a Argentina, a perspectiva é de uma queda bem maior: 10,4%.
“O quadro na Argentina é o de um país sem reservas cambiais, enquanto a nossa cresceu, e não caiu. É um quadro de um país que tem déficits fiscais brutais e acumulou uma dívida externa, principalmente no final do governo Macri, com US$ 51 bilhões para a Argentina do FMI. Isso é um país quebrado. Que não tem recurso sequer para gerenciar o valor do dólar, um déficit fiscal brutal de 106%”, comentou em janeiro o economista Leonardo Trevisan, professor de Relações Internacionais da ESPM SP, em entrevista ao InvestNews.
“Esses são dados de um país economicamente quebrado. Macroeconomicamente e microeconomicamente. Não é caso do Brasil”, comparou Trevisan.
As notas dos países
A situação dos dois países é refletida nas notas das agências internacionais de classificação de risco. Os chamados ratings servem para indicar aos investidores quais são os riscos de investir naquele mercado. E, considerando as avaliações das principais agências, a situação da Argentina é mais preocupante que a do Brasil.
A Standard&Poor’s (S&P), por exemplo, atribui nota CCC+ para a Argentina, na categoria de especulação com alto risco de inadimplência. No último relatório, de setembro de 2020, a agência citou “alta inflação, baixo crescimento, grandes desequilíbrios fiscais estruturais, altas necessidades de financiamento e pressão contínua nos mercados de câmbio estrangeiro”.
Já outra agência, a Fitch atribui nota CCC, na mesma categoria, citando em relatório do mesmo mês “os desafios profundos de liquidez e sustentabilidade da dívida”. A terceira das principais agências, a Moody’s, atribui nota Ca à Argentina, também na categoria de alto risco.
Para o Brasil, a S&P e a Fitch atribuem notas BB- e a Moody’s, Baa2 – ainda classificado como especulação, mas em uma categoria acima da Argentina. As agências citam os desafios fiscais no Brasil. Em relatório de novembro, a Fitch mencionou “a severa deterioração do déficit fiscal do Brasil e da carga da dívida pública durante 2020”. Em dezembro, a S&P avaliou que a agenda de reformas fiscais no país tem evoluído de maneira lenta.