A ideia era simples: guardar um dinheiro que seria do trabalhador, mas que só poderia ser sacado em situações bem definidas. Como uma espécie de poupança forçada, o FGTS foi criado em 1966 para garantir um colchão financeiro a quem tem carteira assinada e, ao mesmo tempo, captar recursos para o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), que oferece linhas de crédito imobiliário a juros menores. Só que, de uns anos para cá, o fundo passou a ser muito mais do que isso.
De Michel Temer a Luiz Inácio Lula da Silva, passando por Jair Bolsonaro, esse cofrinho virou um dos instrumentos preferidos para tentar dar tração à economia em tempos de aperto — sem a inconveniência de mexer diretamente no Orçamento.
Saques extraordinários, saque-aniversário e, agora, empréstimo consignado com garantia do saldo. O FGTS virou estímulo ao consumo e uma forma de contornar amarras fiscais — um verdadeiro chapéu no antigo teto de gastos e no agora vigente arcabouço fiscal. Tudo isso com aparência de benefício, mas sem um debate claro sobre o que se quer do fundo daqui para a frente.
Um fundo cada vez mais versátil
A cada novo desafio econômico, o governo foi puxando o FGTS para o centro do tabuleiro. A lógica se repetiu em diferentes momentos: liberar uma fatia do saldo das contas inativas, permitir um saque anual, incentivar operações de crédito com o fundo como garantia. O objetivo era o mesmo — dar liquidez para a população e, com isso, girar a roda da economia.
O movimento ganhou tração. Lançado em março de 2025, o novo modelo de consignado com garantia do FGTS permite que trabalhadores comprometam até 10% do saldo e 100% da multa rescisória como garantia para empréstimos. A expectativa do governo é que a modalidade movimente mais de R$ 100 bilhões em apenas três meses.
É o capítulo mais recente de uma história que começou com o saque das contas inativas em 2016, quando o governo Temer liberou R$ 66,9 bilhões (em valores corrigidos). Desde então, a lista cresceu: Bolsonaro liberou R$ 39,2 bilhões em 2019 e mais R$ 32,8 bilhões em 2020, já no contexto da pandemia. Em 2022, meses antes das eleições presidenciais, liberou mais R$ 25 bilhões. Agora, com Lula, R$ 12 bilhões foram sacados no começo de 2025.
No total, quase R$ 176 bilhões foram liberados de forma extraordinária nos últimos oito anos.
Gabriel Barros, economista-chefe da ARX Investimentos, acompanha de perto essa trajetória. “O FGTS virou um instrumento parafiscal. É dinheiro do trabalhador usado conforme a conveniência da política econômica.” Segundo ele, o uso do fundo fora da sua função original é um sintoma da dificuldade do Estado em criar políticas anticíclicas dentro das regras fiscais convencionais.
Barros não nega os efeitos positivos de curto prazo. Mas alerta para o acúmulo de funções que o fundo vem assumindo. “Hoje, o FGTS tenta ser muitas coisas ao mesmo tempo — poupança, seguro, política habitacional, ferramenta anticíclica [de combate a ameaças de recessão], e agora também garantia de crédito. Isso exige clareza sobre suas prioridades.”
O saque-aniversário, por exemplo, já retirou R$ 142 bilhões do fundo desde que foi criado, em 2019. Mais da metade desse valor — 66% — foi parar nos bancos, por meio de operações de antecipação de crédito. Esse modelo, na prática, compromete o saque total em caso de demissão. Ou seja: dá liquidez no presente, mas reduz a proteção futura.
Barros defende que essa discussão seja feita com menos pressa e mais transparência. “Não se trata de dizer que um modelo é certo ou errado. Mas de admitir que há trade-offs. Se o fundo for cada vez mais voltado para o consumo e o crédito, sua capacidade de proteger o trabalhador em momentos críticos pode ser comprometida”. Na outra ponta, a do SFH, a descapitalização do fundo tende a limitar sua capacidade de financiar moradia.
A quem o FGTS serve hoje?
Há outro ponto que costuma ficar de fora da discussão: o FGTS é um instrumento relativamente restrito hoje.
Dados da PNAD Contínua referente ao trimestre encerrado em fevereiro mostram que apenas 39,6 milhões de brasileiros têm carteira assinada no setor privado — no setor público, 12,4 milhões. Enquanto isso, 38,1% da população ocupada está na informalidade — significa que 39,1 milhões de trabalhadores não estão contribuindo.
Ou seja: o fundo que virou uma das principais ferramentas de política econômica do país atende a menos da metade dos trabalhadores. “Falar de FGTS é falar de uma parcela formalizada da população. É uma política que não chega a todos”, lembra Barros.
E esse descompasso tende a crescer. Com o aumento da informalidade, a base de contribuição encolhe, ao mesmo tempo em que o Estado amplia o número de funções atribuídas ao fundo. Definitivamente, não estamos diante de um modelo sustentável.