Aprovada com um atraso de três meses que ameaçou prejudicar o pagamento de salários de servidores, a lei orçamentária trouxe nova leva de problemas econômicos e políticos para o governo Jair Bolsonaro, evidenciando as dificuldades do Executivo e do Legislativo em lidar com os desafios fiscais do país em meio à crise da pandemia.
Técnicos do governo e economistas afirmam que, tal como aprovado, o Orçamento é um caso clássico de “contabilidade criativa”, com direito a reestimativa irreal de despesas, uma pedalada fiscal e parâmetros econômicos defasados, que vão demandar cortes draconianos para evitar o descumprimento das regras fiscais.
“O Orçamento ficou tão deformado que vai ser difícil você corrigir essas distorções por meio só de veto”, diz Gil Castello Branco, diretor-executivo da ONG Contas Abertas, que faz o acompanhamento das contas públicas, acrescentando que a avaliação técnica sugere que o mais fácil seria o governo encaminhar uma nova proposta orçamentária ao Congresso.
Como ambas as alternativas são politicamente complicadas, uma vez que a versão do texto que saiu do Congresso teve apoio da base política de Bolsonaro, o economista diz que o governo deverá ser forçado a fazer um bloqueio “brutal” de despesas, e controlar a liberação de gastos na boca do caixa.
O projeto orçamentário aprovado pelo Congresso na última quinta-feira (25) já trazia parâmetros defasados, que não foram atualizados pelo governo depois do encaminhamento da proposta, em agosto. Assim, as despesas da Previdência foram calculadas com base em um salário mínimo de R$ 1.067, enquanto o valor efetivo para o ano ficou em R$ 1.100. Já a inflação considerada foi de 3,2% (IPCA), ante projeção atualizada de 4,4%.
Na votação em plenário, os congressistas agravaram os desajustes do projeto ao promover de última hora um remanejamento de R$ 26,5 bilhões em despesas, reduzindo recursos destinados a gastos obrigatórios do governo em favor de emendas parlamentares que beneficiam principalmente o Ministério do Desenvolvimento Regional.
A medida foi feita após uma reestimativa de despesas não referendada pelo Ministério da Economia, o qual, na contramão do movimento do Congresso, já havia apontado uma necessidade de contingenciamento de R$ 17,5 bilhões para garantir o cumprimento do teto de gastos, que limita o crescimento das despesas à variação da inflação.
A principal revisão do Congresso foi feita nas despesas da Previdência, reduzidas em R$ 13,5 bilhões. Desse montante, R$ 4 bilhões estão condicionadas à aprovação de uma legislação, ainda não apresentada pelo governo, que altere as regras do auxílio doença, passando a responsabilidade do pagamento do benefício às empresas, que seriam compensadas com crédito tributário.
O segundo maior corte, de R$ 7,4 bilhões, foi feito na projeção do gasto com abono salarial. Neste caso, a revisão reflete uma nova regra, aprovada na semana passada pelo Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (Codefat), que determina que o pagamento do benefício deve ser feito dentro do ano calendário de cada exercício. Até então, o abono era pago a partir do segundo semestre. Com a mudança, haverá redução das despesas no ano de 2021.
Para Castello Branco, a mudança na regra do abono, mesmo que respaldada pelo Codefat, pode configurar uma “pedalada fiscal” (adiamento artificial de despesas).
Já a revisão do funcionamento do auxílio doença, ainda que venha a ser aprovado, seria uma burla ao teto de gastos, tal como previsto no texto orçamentário. É que, para efeitos de cálculo do crescimento das despesas, o governo precisaria retirar os gastos com o auxílio dos anos anteriores na hora de calcular se o Orçamento está de acordo com a regra do teto, o que o projeto aprovado pelo Congresso não faz.
Manobras
A indefinição orçamentária se dá em um cenário em que o governo enfrenta o desafio de promover novas medidas para enfrentar o impacto econômico e sanitário da pandemia com as contas públicas deterioradas.
Servidores do Ministério da Economia divulgaram no fim de semana uma rara nota pública apontando os problemas da lei orçamentária e criticando a subestimação de gastos obrigatórios e o que chamaram de “manobras contábeis”.
“Como se não tivéssemos problemas suficientes para resolver na saúde, na educação, na garantia de renda e de condições dignas de vida para a população, vamos precisar discutir nos próximos meses como resolver os problemas criados pelas manobras que estão sendo feitas para contornar as regras fiscais aprovadas pelo próprio Congresso”, disse a Associação dos Servidores da Carreira do Planejamento e Orçamento (Assecor), que assina o texto.
Os técnicos notam que a cobertura dos gastos obrigatórios subestimados no Orçamento vão demandar novos cortes das chamadas despesas discricionárias, que são aquelas voltadas ao funcionamento da máquina pública, como o pagamento de contas de luz e viagens, e também investimentos.
A Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado, calcula que esse corte chegará perto de R$ 32 bilhões. A estimativa do órgão técnico é que a lei orçamentária traz despesas discricionárias de R$ 139,1 bilhões, volume que levará as despesas totais do governo sujeitas à restrição do teto de gastos a superarem o limite imposto pela regra em R$ 31,9 bilhões.
“É possível afirmar que, para cumprir o teto de gastos e sob as premissas que a IFI considera mais prováveis para as despesas obrigatórias, o Orçamento terá de ser contingenciado no montante acima calculado ao longo do ano”, disse a entidade.
O próximo relatório de avaliação de receitas e despesas ordinário do Ministério da Economia, que define o montante a ser contingenciado, será divulgado em maio, mas o secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues, disse, em meados deste mês, que pode haver um relatório extraordinário em abril.
Na ocasião, Waldery disse que o governo não trabalhava naquele momento com a possibilidade de alterar a meta de déficit primário para este ano, fixada em R$ 247,1 bilhões para o governo central.