Economia
Possível recessão nos EUA pode afetar cadeia global e impactar Brasil; entenda
País vive a maior inflação dos últimos 40 anos; taxa de juros norte-americana teve, em junho, a maior alta desde 1994.
Em meio aos impactos econômicos da pandemia de covid-19 e da guerra na Ucrânia, têm crescido as expectativas de que os Estados Unidos entrarão em recessão com possíveis efeitos para a cadeia global, incluindo o Brasil. Essa também é a perspectiva de economistas consultados pelo InvestNews. Segundo eles, a desaceleração da economia norte-americana, a inflação elevada e a intensidade da alta dos juros no país são alguns dos indícios.
Davi Lelis, economista da Valor Investimentos, explica que o conceito técnico de recessão é a fase na qual a economia de um país tem um período de contração. Com isso, geralmente, a atividade econômica desaquece, tem uma queda forte no nível de produção, aumento de desemprego e queda na renda familiar, além das margens das empresas ficarem mais pressionadas.
“A desaceleração da economia norte-americana, o estresse da inflação e as medidas que terão que ser tomadas para contê-la são sinais de recessão. Além disso, a taxa de desemprego pode estourar, com a retomada de pessoas na busca por trabalho depois do fim dos auxílios durante a pandemia”, avalia Lelis.
Leonardo Paz Neves, analista de inteligência do FGV NPII (Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da FGV), argumenta que, no início da pandemia, o governo dos Estados Unidos adotou uma política monetária expansionista, o que ajudou a elevar a inflação.
Segundo Neves, em meio a este cenário, o Federal Reserve, o banco central americano, demorou a agir na elevação dos juros, acreditando que, uma vez que a pandemia arrefecesse, a oferta voltaria mais rapidamente, o governo reduziria as políticas de ajuda para as pessoas, o que diminuiria a demanda, algo que se iria equilibrar naturalmente.
“Isso não aconteceu e o Federal Reserve teve que correr atrás do prejuízo, aumentando juros. A preocupação agora é como o Fed vai conseguir achar o ponto ideal para não entrar em um crash mais forte e, sim, em uma recessão leve, ajustada, calculada para que possa reaquecer a economia de forma controlada”, afirma Neves.
Vai ter recessão nos EUA?
O Bank of America (BofA) projeta 40% de risco de recessão nos Estados Unidos no ano que vem, em meio à combinação de crescimento econômico fraco e inflação persistentemente elevada no país. Para o banco, o Federal Reserve ficou “atrás da curva”, demorando para agir no combate à escalada inflacionária, e enfrenta um horizonte desafiador.
Nesse cenário, a instituição prevê que os juros chegarão ao pico acima de 4%, antes de a inflação se estabilizar em cerca de 3%, superior à meta de 2% do Fed.
Já para economistas do JP Morgan, a economia americana tem 35% de chances de entrar em uma recessão no próximo ano.
O economista Fabio Astrauskas, professor do Insper e CEO do Siegen Consultoria, avalia que uma recessão pode, de fato, acontecer, pois a alta de juros só terá pleno efeito a partir do final deste ano e começo de 2023. Além disso, Astrauskas acrescenta que o risco de recessão pode aumentar com a chegada do inverno no Hemisfério Norte, quando haverá uma demanda maior por energia, que vem sendo uma das pressões da inflação.
“Se até lá não forem encontradas alternativas para realinhar a cadeia de abastecimento, principalmente de energia, o risco de recessão aumenta muito e vamos ver isso em 2023”, considera Astrauskas.
Além disso, Astrauskas destaca que a guerra é um obstáculo para a economia norte-americana, não, necessariamente, por causa do conflito armado, mas dos desarranjos causados nas cadeias produtivas, que demoram para ser restabelecidos e, portanto, causam lacunas de fornecimento de alimentos e energia, por exemplo, que pressionam a inflação.
Cenário econômico nos Estados Unidos
Os Estados Unidos enfrentam a maior inflação dos últimos 40 anos. Em maio, o índice de preços ao consumidor acelerou para 8,6% no acumulado de 12 meses, após avanço de 1% no mês com preços recordes dos combustíveis.
A elevação da inflação no país é causada, de forma geral, pelo aumento do preço global dos combustíveis, em meio à guerra da Rússia com a Ucrânia, que ocasiona alta também no custo de alimentos, aluguéis, saúde, entre outros.
Por lá, em maio, os preços da energia, em geral, subiram 34,6% em relação ao mesmo mês de 2021, impulsionados por um salto de quase 50% nos preços da gasolina, que registrou um aumento de 4,5% em maio.
No mês passado, houve também a elevação dos preços dos alimentos, em 10,1%, sendo o primeiro aumento de dois dígitos desde o ano de 1981. Já o índice de moradias avançou 5,5%, o maior ganho em 12 meses desde 1991.
A expectativa em maio era que a mudança dos gastos de bens para serviços poderia colaborar para arrefecer a inflação, mas o mercado de trabalho apertado no país está elevando os salários, contribuindo para o aumento dos preços dos serviços.
Em meio a este cenário, para conter a elevação da inflação, o banco central norte-americano vem subindo a taxa básica de juros do país, que, em 15 de junho, foi elevada em 0,75 ponto percentual, para uma faixa de 1,5% a 1,75%. Foi o primeiro aumento dessa magnitude, e também o maior desde 1994.
Em discurso feito no Senado no último dia 23, o presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, garantiu que o compromisso da instituição para combater a inflação é “incondicional” e admitiu que “claramente subestimamos” a inflação anteriormente, atribuindo a inflação atual no país, em grande medida, a uma demanda mais forte do que o previsto.
No mercado de trabalho, a economia norte-americana abriu 390.000 postos de trabalho fora do setor agrícola no mês passado, representando um ritmo mais lento de contratação, enquanto a taxa de desemprego permaneceu em 3,6% em maio, porcentual registrado pelo terceiro mês seguido.
A atividade empresarial dos Estados Unidos desacelerou consideravelmente em junho, uma vez que a inflação elevada e uma queda na confiança do consumidor reduziram a demanda de forma generalizada, resultando na primeira contração em quase dois anos da medida de novas encomendas.
Já o Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos no primeiro trimestre deste ano foi revisado para baixo em maio, com um recuo maior ante abril, de 1,5%. Foi o primeiro declínio desde a recessão do início da pandemia. A terceira estimativa do PIB do país será divulgada em 29 de junho.
A queda do PIB acontece após um crescimento de 6,9% da economia do país no último trimestre de 2021, quando empresas fizeram o reabastecimento dos estoques esgotados para atender à forte demanda por bens, favorecendo a atividade dos Estados Unidos a registrar seu melhor desempenho em quase quatro décadas em 2021. No ano passado como um todo, a economia norte-americana cresceu 5,7%, sendo o ritmo mais rápido desde 1984.
Como especialistas avaliam uma possível recessão nos EUA?
Uma recessão econômica é frequentemente definida como dois trimestres consecutivos em que a economia de um país encolhe. Há economistas, no entanto, que consideram a recessão com outros critérios de profundidade, difusão e duração.
Claudio de Moraes, professor de macroeconomia e finanças do Coppead/UFRJ, afirma que é preciso pensar ciclo econômico do ponto de vista de ciclos financeiros, que se caracterizam por um inter-relacionamento entre o mercado financeiro e a economia de uma maneira em geral.
“Uma forma de analisar a recessão por meio de ciclos financeiros é via Non-Performing Loan, a inadimplência, que, à medida que começa a subir nos Estados Unidos, tem um efeito muito severo sobre todo o mercado, associado ao que chamamos de desinflação de ativos, que são as vendas de ativos e desalavancagem”, destaca Moraes.
Segundo Moraes, os Estados Unidos podem acionar a ferramenta chamada de macroprudenciais para fazer alívios setoriais. “Essas ferramentas não têm sido usadas pelo país, mas foram usadas na Europa com alguns sucessos, que é exatamente ter medidas regulatórias para aliviar níveis de capitais dos bancos e criar condições favoráveis no crédito, principalmente, no mercado imobiliário, de mudar restrições”, diz o professor do Coppead/UFRJ.
Para o economista Fabio Astrauskas, professor do Insper e CEO do Siegen Consultoria, a recessão é definida quando se tem uma consistência de 2 ou 3 trimestres consecutivos ou alternados de baixo crescimento ou queda. Ele destaca, no entanto, que ao analisar o caso dos Estados Unidos existe a base de comparação fraca, ou seja, o ano de 2021, quando a economia do país sofreu ainda mais os impactos da pandemia.
“Não devemos falar de recessão do ponto de vista técnico para 2022. O ponto que se observa é o ano de 2023, quando a base de comparação estará limpa, comparando crescimentos que poderão ser comparáveis, com exceção da guerra na Ucrânia”, defende Astrauskas.
Para o economista Davi Lelis, da Valor Investimentos, ainda dá tempo de os Estados Unidos evitarem uma recessão, mas as medidas que teriam que ser tomadas seriam muito prejudiciais à economia.
“Os Estados Unidos podem preferir entrar numa recessão em um período de crescimento mais fraco do que tomar medidas muito drásticas e extremas, que prejudicam ainda mais a economia. É possível desaquecer a economia controlando a inflação, sem que entre num período recessivo? É, mas será extremamente difícil, quase impossível”, aponta Lelis.
A economista Bruna Centeno, especialista em Renda Fixa da Blue3, defende que evitar uma recessão é uma escolha do Fed de subir a taxa de juros e controlar inflação ou não fazer isso e ter um fenômeno de descontrole dos preços e uma inflação maior.
“É a primeira vez que a âncora inflacionária foi colocada em cheque. A expectativa de inflação de longo prazo que, até então, estava controlada, hoje já começou aumentar. Essa expectativa está desancorada. Não aumentar os juros não é recomendável, pois se a expectativa está desacordada, gera uma inflação permanente. Estamos falando da saída de uma inflação transitória e entrada em um problema maior, que necessita um remédio amargo”, diz Centeno.
Quais os impactos de uma recessão nos EUA?
De acordo com o economistas consultados pelo InvestNews, são vários os impactos econômicos de uma possível recessão nos Estados Unidos. Leonardo Paz Neves, analista de inteligência do FGV NPII, defende que dependerá do nível da recessão.
“A economia norte-americana faz parte de boa parte das cadeias de produção global, tem produção americana espalhada pelo mundo inteiro. Se uma crise nos Estados Unidos for muito dura, ela impacta essas cadeias como um todo. Se for mais leve, tende a atacar o mercado doméstico e menos as cadeias globais. Vai depender da profundidade desta crise”, acredita Neves.
A economista Bruna Centeno afirma que os principais impactos de uma recessão em um mundo globalizado, com dependências comerciais grandes, pode ser piora na renda, queda nas balanças comerciais e deterioração de níveis econômico, por causa da codependência das economias com os Estados Unidos.
Quando se faz um recorte para economias específicas, o economista Fábio Astrauskas explica que, provavelmente, uma recessão nos Estados Unidos impulsiona uma recessão ainda maior na Europa, pois o problema na região é parecido e a dependência com os Estados Unidos é grande.
Já em relação à China, Astrauskas considera que pode causar uma redução de crescimento, mas que a economia do país asiático não é totalmente dentro das regras capitalistas e, por isso, tem outras ferramentas para abordar o problema da recessão.
Recessão nos EUA prejudicaria a recuperação do Brasil?
Em relação aos impactos no Brasil de uma possível recessão nos Estados Unidos, os economistas entrevistados pelo InvestNews divergem.
Claudio de Moraes, professor de macroeconomia e finanças do Coppead/UFRJ, avalia que o Brasil pode ser severamente prejudicado, já que é grande o volume de exportações brasileiras para os Estados Unidos. Além disso, o economista destaca que os Estados Unidos são um grande player global, que, em um possível recessão, pode reprecificar todos os ativos, impactando também o Brasil.
Para Davi Lelis, economista da Valor Investimentos, apesar de uma recessão nos Estados Unidos prejudicar a economia brasileira por causa da diminuição do poder de compra da economia norte-americana, por outro lado, com a economia dos Estados Unidos mais fraca, o dólar tende a se desvalorizar frente a outras moedas, favorecendo o real.
“Com o dólar mais barato, o Brasil acaba pagando menos em ativos dolarizados comprados, que repassam os preços aos produtos internos, ajudando a conter a inflação no Brasil”, afirma Lelis.
Já Leonardo Paz Neves considera que uma recessão nos Estados Unidos pode prejudicar o Brasil, mas que, não necessariamente, o impacto pode ser muito duro.
“Se a recessão for leve nos Estados Unidos, impacta pouco o Brasil, que tem muita oportunidade de investimento ainda e, com os juros altos no Brasil, o país acaba sendo um atrativo para financiamento externo. Se a recessão for muito dura, ela impacta nosso país, especialmente se o Fed subir o juros. Aí fica mais difícil de o Brasil competir, é uma trava muito forte para a expansão da economia brasileira”, destaca Neves.
Astrauskas, professor do Insper e CEO do Siegen Consultoria, lembra que o Brasil tem uma característica que, neste momento, é até um ambiente desejável para outras economias: ser um forte produtor de commodities, justamente as que hoje estão pressionadas no preço e pode causar um efeito mais amortecido no país de uma recessão nos Estados Unidos. Para Astrauskas, a preocupação é o cenário interno brasileiro.
“O nosso problema aqui é outro, doméstico, interno, polarização política forte, uma expectativa grande no próximo governo, podendo levar o país a se beneficiar ou prejudicar. O mercado internacional não olha o Brasil como uma economia tão frágil nesse momento como muitos de nós olhamos”, alerta Astrauskas.
Já a economista Bruna Centeno, especialista em Renda Fixa da Blue3, destaca o fator taxa de juros como preocupação. Segundo Centeno, juros elevados nos Estados Unidos aumentam os juros estruturais e obrigam o patamar de juros no Brasil a também a ficar elevado. De acordo com a economista, se o Brasil não fizer essa compensação, haverá uma grande fuga de capital, com investidores começando a avaliar o peso de investir nos Estados Unidos e no Brasil.
“Com isso, temos um impacto muito grande no nosso câmbio, gera depreciação da moeda e o efeito é cascata, pois puxa inflação, que puxa os juros para cima e, consequentemente, puxa o crescimento brasileiro para baixo. E o principal fator dessa compensação de juros vai influenciar no nível de investimento que vai ser colocado no país”, conclui Centeno.
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