Quase todo o dinheiro do mundo já é “digital”. No Brasil, dos R$ 9,5 trilhões de reais que existem neste momento na economia, só 4,6%(R$ 440 bilhões) está materializado na forma de notas. Mas dinheiro digital para valer é um conceito mais amplo.
Essa versão, a “para valer”, nasceu com o bitcoin (BTC). Não porque ele só existe na forma códigos de computação, pois isso se aplica ao dinheiro normal. Mas porque o histórico das transações fica registrado numa rede aberta, transparente, que qualquer um pode acessar. Uma rede de blockchain – tecnologia que nasceu com o BTC.
Depois, veio o dinheiro digital capaz de produzir contratos inteligentes. Caso do Ethereum (ETH). Esse tipo de cripto permite transferências instantâneas de certificados de propriedade. Se o tal certificado estiver na mesma blockchain do dinheiro, o bem “passa para o seu nome” automaticamente. É assim que acontece hoje no mercado de NFTs. E um dia poderá se aplicar a bens do mundo real, como carros ou imóveis.
Mesmo assim, nenhuma criptomoeda clássica é vista como substituta do dinheiro – dificilmente você vai conseguir tirar um carro da concessionária transferindo bitcoins para o vendedor (se o BTC cair 10% em um dia, a concessionária vai registrar um prejuízo com a venda). Mas existem duas soluções que casam bem com o papel de moeda direta de troca, diogamos assim: as stablecoins e as CBDCs.
Se você não está familiarizado com esses conceitos, vamos rapidamente às explicações:
Stablecoins: Como o nome diz, são moedas digitais estáveis. Criadas por empresas, elas buscam manter seu valor equiparado ao de um outro ativo, desde moedas reais como dólar e euro, até commodities, como o ouro. As mais conhecidas, caso da Tether (USDT) e da USD Coin (USDC), seguem o dólar. Para garantir a cotação de um para um, as instituições emissoras mantêm um lastro em moeda americana.
CBDCs: Esta é a sigla para Central Bank Digital Currency, ou Moeda Digital de Banco Central. Como o nome entrega, é uma moeda criada e controlada por um governo. Seu principal conceito é ser a representação digital da moeda corrente de um país, podendo substituir, eventualmente, o dinheiro físico. De novo: “digital” no sentido de rodar numa blockchain (que garante a rastreabilidade) e de produzir contratos inteligentes – duas coisas que o dinheiro normal não faz.
As diferenças são profundas.
As stablecoins não são ligadas diretamente ao sistema financeiro dos países. “Elas não possuem um emissor estatal nem curso legal, o que significa que sua aceitação depende da confiança dos usuários e da empresa responsável por sua emissão”, explica Rony Szuster, head de research do Mercado Bitcoin.
É nesse ponto que as CBDCs se destacam. Por serem criadas pelos próprios governos, elas podem ser muito mais que apenas um dinheiro digital, mas sim um sistema financeiro completo. Por exemplo, o usuário, ao realizar um pagamento para uma corretora, pode ter um título público automaticamente transferido para o seu nome (24 horas por dia, sete dias por semana), ou então receber a titularidade de um carro ou imóvel assim que o pagamento for feito.
A polêmica sobre as CBDCs, porém, está exatamente sobre o controle estatal. Esse tipo de ativo sofre críticas porque, em tese, o governo passa a ter um controle maior sobre o dinheiro das pessoas, já que sistemas digitais podem, por exemplo, permitir bloqueio de recursos e restrição de uso. Mais: numa realidade em que todo o dinheiro em circulação estivesse na forma de CBDCs, seria impossíve burlar o fisco, porque o governo saberia exatamente de quem você recebeu e onde gastou cada centavo.
Vale notar que, recentemente, Donald Trump assinou uma série de ordens executivas para criptomoedas, entre elas uma proibindo que o Fed, o banco central dos EUA, tenha qualquer tipo de CBDC. Segundo ele, essas moedas digitais “ameaçam a estabilidade do sistema financeiro, a privacidade individual e a soberania dos EUA”. (sobre a parte da soberania carecem explicações).
O caso DREX
As CBDCs são uma tecnologia em fase de testes pelo mundo. E um dos projetos mais avançados é o do Brasil. Aqui, o governo já acelerou bastante a digitalização da economia com o lançamento do PIX em 2020. Ainda que ele por si só não seja uma versão digital para valer do real, no sentido em que descrevemos aqui.
É aí que surge o DREX (“D” de “digital”, “R” de “real”, “E” de “eletrônico” e “X” para dar um verniz futurista). O próprio BC deixa claro que não é bem uma moeda. É todo um novo sistema, do qual a moeda é só um pedaço. O dinheiro e as coisas a serem compradas com esse dinheiro rodariam na mesma blockchain – estariam “tokenizados”, no jargão. Isso abre para aquelas possibilidades de contrato inteligente que mencionamos aqui, como a da transferência automática da propriedade de um carro no ato da compra, com zero burocracia.
“O Drex não é uma rede de registro distribuído, com tokenização de depósitos e ativos em uma estrutura de contratos inteligentes”, resumiu recentemente Gabriel Galípolo.
Riscos e problemas
Uma CBDC pode impactar o sistema bancário tradicional. Se as pessoas optarem por manter seu dinheiro diretamente em contas digitais do Banco Central em vez de nos bancos comerciais, isso vai reduzir a liquidez das instituições privadas, o que comprometeria a concessão de crédito.
Um desafio para o Banco Central, então, é criar um modelo que evite isso. Uma solução, que o BC já adiantou, é não permitir que o Drex seja usado para pagamentos dos dia a dia. Por exemplo: você faria um Pix da sua conta normal para a do sistema Drex quando quisesse comprar algo que envolva contratos inteligentes, como um título público tokenizado – ou uma debênture, ou qualquer outra coisa que dê para “subir” numa blockchain. Mas não poderia usar o dinheiro que foi para o sistema do Drex para comprar pão na padaria.
Agora, sobre as stablecoins: o risco aí seria a falta de idoneidade das empresas por trás dos ativos. Se a companhia gastar o dinheiro que tem como lastro, a stablecoin perde o sentido. Passa a valer zero.
A Tether, por exemplo, apresenta relatórios auditados mostrando que possui em caixa os dólares que garantem a paridade com a moeda americana. Mesmo assim, ela é pressionada pelo Consumer’s Research (um Procom dos EUA), que questiona a veracidade dos dados.