Ilustração: João Brito

Filhos que abandonam os pais idosos podem perder o direito à herança. Essa é uma proposta que consta no texto da reforma do Código Civil que está em discussão no Congresso. Ela pretende transformar o abandono familiar em critério para exclusão de herdeiros e promete reescrever as regras do afeto e da responsabilidade dentro das famílias brasileiras.

A discussão tem timing. O Brasil enfrenta um acelerado envelhecimento populacional, com a projeção de que, até 2050, cerca de 30% da população será composta por pessoas acima de 60 anos, segundo aponta o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Outro dado engrossa a discussão: um estudo publicado em 2020 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) revelou que aproximadamente 28% dos idosos no país vivem sozinhos e enfrentam dificuldades financeiras.

LEIA MAIS: Transferência de riqueza para herdeiros acelera o mercado da arte

O texto do novo Código Civil, portanto, busca reagir a esse cenário em que muitos pais, já em idade avançada e com diversos problemas de saúde, tentam contar com o apoio de seus filhos, mas acabam se deparando com o abandono.

De certa forma, a medida deve reorientar a transmissão da herança, sobretudo, para os herdeiros diretos que, segundo as regras atuais, não precisam fazer muita coisa para ter direito aos bens deixados pelos pais.

Será o fim da “profissão herdeiro”?

LEIA MAIS: Fale sobre a herança agora ou aguente problemas depois

Antes de esmiuçar as novas regras, é preciso entender como funciona as normas atuais. No texto em vigor do Código Civil, filhos podem perder o direito à herança em duas situações:

Por indignidade: se praticarem condutas consideradas gravemente reprováveis, como tentativa ou homicídio; acusação caluniosa e ofensa à honra dos progenitores ou por uso de qualquer meio violento para manipular a herança.

A exclusão de herança por indignidade depende de decisão judicial, conforme determina o artigo 1.815 do Código Civil. Nesse caso, é preciso comprovar ao longo da tramitação de um inventário que um dos possíveis beneficiados cometeu uma atitude grave contra o dono da herança em análise.

O caso mais emblemático de indignidade no Brasil é o de Suzane von Richthofen. Ela foi condenada a 39 anos de prisão por planejar a morte dos pais, Manfred e Marísia, em sua própria casa, em São Paulo. Suzane permaneceu presa, em regime fechado, por mais de 20 anos.

Os bens deixados por Manfred e Marísia, avaliados em cerca de R$ 10 milhões, pararam nas mãos de Andreas, o filho caçula do casal, porque Suzane foi considerada pela Justiça como indigna de receber a herança dos pais que ajudou a matar.

Por deserdação: incluem as hipóteses de indignidade e outras situações específicas previstas em lei. Por exemplo, o artigo 1.962 do Código Civil autoriza a deserdação de filhos que agridem fisicamente seus pais, praticam injúrias graves, mantêm relações ilícitas com a madrasta ou o padrasto e desamparam os pais em caso de alienação mental ou doença grave.

A deserdação é um ato de vontade do autor da herança. Ou seja: o dono dos bens registra em testamento antes de morrer que não quer repartir seus bens com uma pessoa específica. Mas há um detalhe: a deserdação só atinge os herdeiros necessários (filhos, pais e cônjuges).

O que muda?

A proposta de alteração do Código Civil prevê a introdução de um artigo que estabelece a possibilidade de deserdar filhos que abandonam os pais em situações de necessidade. A ideia é clara: assegurar que os filhos mantenham uma obrigação moral e legal em relação à assistência e ao cuidado dos seus progenitores.

Do ponto de vista legal, a proposta se inspira em legislações de outros países. Na Alemanha e na Itália, por exemplo, já existem normas que permitem a exclusão da herança para aqueles que não cumprem com suas obrigações familiares.

A legislação atual, por exemplo, não prevê o abandono afetivo como causa legal para exclusão de herdeiro da sucessão. O Código Civil estabelece um rol taxativo (fechado) de condutas que autorizam a exclusão por indignidade ou deserdação, e o abandono afetivo não está entre elas.

LEIA MAIS: Mais barato e rápido, inventário fora da Justiça cresce no Brasil

Mas o novo texto em discussão do Código Civil aborda a questão e explica que o abandono afetivo voluntário e injustificado é caracterizado pelo afastamento do vínculo familiar sem qualquer causa atribuível à pessoa abandonada.

E isso inclui também os pais ou as mães que constituem nova família e deixam de procurar os filhos, não mantêm contato mesmo em datas importantes ou períodos de enfermidade, e não oferecem qualquer tipo de apoio emocional ou material — ou fazem isso apenas por obrigação judicial; filhos que abandonam pais idosos, deixando-os sob os cuidados exclusivos de terceiros (parentes, cuidadores ou instituições), sem demonstrar preocupação, carinho ou qualquer forma de afeto.

LEIA MAIS: Imposto sobre herança: como as holdings podem aliviar o bolso?

Embora a medida tenha o potencial de reduzir injustiças, também cria desafios. O principal deles é sobre a compreensão do que é abandono. Será necessário avaliar, por exemplo, se o afastamento foi realmente voluntário e injustificado, ou se decorreu de conflitos familiares anteriores, questões de saúde mental ou limitações externas; se houve omissão consciente e prolongada dos deveres de cuidado, presença e apoio afetivo ou material; e se a responsabilidade pelo distanciamento pode ser atribuída exclusivamente à parte acusada de abandono.

Para isso, será necessário comprovar o abandono familiar por meio de provas materiais. São aceitos depoimentos testemunhais, laudos médicos e psicológicos, mensagens, correspondências, registros em órgãos de proteção ao idoso, mensagens ou falta delas seja de e-mails ou telefônicas, registros de clínicas e hospitais, câmeras de segurança, declarações de conhecidos e prestadores de serviços, fotografias, entre outros documentos.

Como fica o planejamento sucessório?

As mudanças em análise no projeto de reforma do Código Civil podem tornar o planejamento sucessório mais estratégico, cuidadoso e personalizado, sinalizam os especialistas em direito de família consultados pelo InvestNews. Na prática, será possível deserdar filhos que estiveram ausentes, o que fortalece o papel da autonomia da vontade do autor da herança e, consequentemente, valoriza o testamento como principal instrumento de manifestação dessa vontade.

LEIA MAIS: Quem fica com o quê na ausência de um testamento

O testamento deve passar a ter função ampliada, permitindo que o testador:

Em resumo: as novas regras devem impulsionar um planejamento sucessório mais consciente e afetivo, com foco não apenas na distribuição dos bens, mas também na valorização dos vínculos humanos e na prevenção de conflitos familiares.

Agradecimentos: Marina Dinamarco, advogada especializada em Direito de Família e Sucessões; Fábio Botelho Egas, advogado especializado em Direito Sucessório e de Família; e Mariana Pimentel, sócia-diretora da área de Direito de Família e Planejamento Patrimonial e Sucessório do Medina Guimarães.